Minha bibliofilia – e outras obsessões
Por Paulo Cruz
“Colecionar livros é uma obsessão, uma ocupação, uma doença, um vício, um fascínio, um absurdo, um destino. Não é um hobby. Quem o faz precisa fazê-lo. Quem não o faz vê isso como primo da filatelia, irmã da estante de troféus, bastardo de uma conta bancária saudável e de uma mente fraca.” (Jeanette Winterson)
Hoje é feriado em São Paulo e passei uma parte de meu dia reorganizando minha biblioteca, que já conta com mais de 2,6 mil livros. Tive a felicidade de, em minha primeira mudança depois de casado, ter começado a catalogá-los, quando ainda preenchiam apenas metade de uma estante metálica, daquelas que costumávamos encontrar em escritórios. Atualmente, quatro estantes metálicas, entupidas em duas fileiras por prateleira, e cinco estantes menores não são conta de tudo; há livros pelo chão, em banquetas, nichos… enfim, minha casa está apinhada de livros e minha esposa fica só olhando a cada novo toque do carteiro na campainha. E os mais de 90 livros em minha lista da Amazon, com mais outros tantos numa lista da Estante Virtual, garantem que esse número vai aumentar.
Os livros são minha obsessão há muitos anos – inclusive já escrevi sobre isso aqui, nesta Gazeta do Povo. Nascida, primeiro, pelo simples prazer de ler romances e poesia, e, posteriormente, pela curiosidade das descobertas que foram aumentando a partir do interesse por teologia e filosofia e artes, depois de sair comprando tudo o que via pela frente nos assuntos que me interessavam, atualmente posso dizer que compro livros de modo um pouco mais direcionado, mas não menos obsessivo. Recentemente, por exemplo, após minhas viagens a Ouro Preto, adquiri, até o momento, nove livros sobre Aleijadinho, Mestre Ataíde e o barroco brasileiro.
Livros não são meu único vício. Descobri que me torno um aficionado por tudo o que me proporciona um certo prazer cultural
Isso não me faz um bibliófilo como um colecionador, por exemplo. Não tenho, pelo menos ainda, o interesse por obras raras, autografadas etc. Compro pelo prazer de tê-los à mão quando os quiser ler, mas também porque, em minha atividade de professor e intelectual, os livros são uma indispensável fonte de cultura.
José Mindlin diz, em No mundo dos livros, que seu prazer pela leitura converteu-se, primeiro, no momento em que começou a se “perguntar como seriam as primeiras edições” dos livros que tinha; depois, no interesse por exemplares autografados; até que se viu dedicado àquela “loucura mansa”, como denominou sua bibliofilia. Não sou assim. Mas confesso que sofro da mesma ilusão que ele tinha no início, de que conseguiria ler todos os livros que tinha. Depois ele compreendeu que seu interesse pelos livros se tornou “paralelo à leitura”. O meu (ainda) não; quero lê-los, todos.
Mas os livros não são meu único vício. Descobri que me torno um aficionado por tudo o que me proporciona um certo prazer cultural. Há pouco mais de três anos foram os vinis. Depois de muitos anos sem lembrar deles, acabei por trazer para minha casa grande parte dos LPs que estavam na casa de minha mãe. Comprei uma vitrola simples e voltei a garimpar e comprar vinis em lojas físicas e on-line. Já troquei a vitrola por um toca-discos decente. Agora preciso comprar um móvel para colocá-los, pois a caixa em que estão já lotou. Para o leitor ter uma ideia, recentemente, por ocasião da morte da inigualável Roberta Flack, dei-me conta de que tinha apenas um vinil e um CD dela. Pois comprei outros cinco LPs de uma vez.
De vez em quando ainda compro CDs e DVDs, quando são obras especiais (como o box com cinco CDs de John Coltrane ou o box com quatro filmes, em Blu-Ray, de Spike Lee) ou só porque não quero me tornar vítima dos streamings para obras que gosto de ver/ouvir muitas vezes, como os filmes de David Lynch. O problema é, de novo: as estantes e gavetas dedicadas e eles já estão cheias.
Minha mais recente obsessão são os charutos. Convidado por um amigo, também professor de Filosofia, para visitar um famoso lounge aqui em São Paulo, fui imediatamente seduzido por toda aquela atmosfera que envolvia aquela atividade: o ambiente, os aromas, o relaxamento proporcionado e até uma certa elitização, sobretudo naquele contexto específico – uma das charutarias mais diferenciadas (e caras) da capital.
Fora o ritual envolvido na degustação de um charuto: a escolha da marca, da bitola, do tipo de recheio e da fortaleza; o corte e o acendimento, mas, sobretudo, a relação com o charuto. Fumar um charuto exige uma ritualística sem a qual a experiência pode se tornar extremamente desagradável.
Fumar um charuto exige uma ritualística sem a qual a experiência pode se tornar extremamente desagradável
Fumar rápido é certeza de passar mal – é preciso respeitar o tempo do charuto, o tempo que ele lhe cede. Iniciantes devem escolher charutos para iniciantes, de pouca fortaleza. Um charuto de folhas inteiras (long filler) oferecerá uma evolução de sabores e aromas que um charuto de folhas em pedaços (medium filler) ou picadas (short filler) não proporcionarão. Procure harmonizar com uma bebida, seja café, chá, uísque, qualquer outra bebida que combine.
Em meu mergulho na cultura dos charutos descobri algo semelhante ao que apreciam os aficionados por vinho: há uma imensa variedade de tipos, procedência, sabores, aromas, preços e um ritual que envolve a degustação adequada. E há, também, a mesma elitização injustificada (vira-latas) de dizer que o tabaco nacional não é bom – mas é. Sim, os cubanos são inigualáveis; mas, atualmente, há uma imensa variedade de charutos provenientes da Nicarágua, de Honduras, de Moçambique e outras regiões do mundo que são excelentes. E o nosso Recôncavo Baiano produz um tabaco muito apreciado na Europa. Ou seja, há uma infinidade de marcas para todos os gostos e preços. Já comprei um umidor pequeno, de madeira, com vedação e higrômetro digital, e tenho uma quantidade e variedade razoável de charutos para degustar.
Enfim, não quero fazer apologia num país profundamente antitabagista como o Brasil. Mas, sim, os charutos são muito diferentes dos cigarros. A começar, porque não tragamos a fumaça, e eles são produzidos com tabaco puro, sem a infinidade de produtos químicos que tem o cigarro. Mas isso não quer dizer que, em alguma medida, não façam mal e não viciem. Mas o que não faz mal e não vicia – ainda mais hoje em dia? A maioria de nossas atividades envolve algum risco: beber café – que, aliás, consumo do melhor jeito e tipo que posso –, Coca-Cola, comer carne de porco, consumir açúcar refinado e praticar esportes radicais. E, não, não é pecado.
Pois sigo, entre livros, discos (CD, DVD e Blu-Ray), cafés e charutos, lidando com minhas obsessões e fazendo disso uma experiência de vida no auge dos meus quase 50 anos.
Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil. Formado em Filosofia e mestre em Ciências da Religião, é professor de Filosofia e Sociologia na rede paulista de ensino público. Em 2017 foi um dos agraciados com a Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, anualmente, por indicação popular, a nomes que se destacaram na produção e divulgação cultural. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
FONTE : https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/paulo-cruz/bibliofilia-livros-cds-vinil-cafe-charutos/
PS. Para a reprodução desse artigo foi tentado, sem sucesso, contato para a autorização formal do autor. Segue, no entanto, informação acerca da fonte, nome do autor e publicação de onde foi transcrito. Reiteramos que esse site não tem fins lucrativos. Ficamos à disposição.
IMAGEM : Der Bücherwurm (“O Bibliófago”) (1850). Óleo de Carl Spitzweg.