Tempos de mau senso
Vladimir Araújo
No final da década de 1940 o escritor italiano Primo Levi publicaria “É isto um homem?’, livro no qual relata toda a série de torturas às quais foi submetido durante o período em que permaneceu prisioneiro no campo de concentração de Auschwitz na Segunda Guerra Mundial. Talvez a grande conclusão a que se chega ao final da obra é perceber que aquele era um lugar onde os responsáveis pela barbárie imposta haviam perdido quaisquer resquícios de humanidade.
Anos antes, mais precisamente em 1939, Dalton Trumbo, escritor estadunidense escreveria “ Johnny vai à guerra”, onde relata os horrores daquela que ficou conhecida como a Mãe de todas as guerras. Outra vez, nada além da miséria humana. Pergunta-se: haverá um limite?
Há semanas morte e destruição fazem parte dos noticiários televisivos em cenas que retratam acima de tudo a falência da própria definição do que é ser humano. O senso foi perdido. Importante não esquecer, porém, que a indignação ante o míssil que mata crianças na Europa não pode suplantar (como se houvesse medida para a desgraça) aquela gerada pelo assassinato covarde de um negro a pauladas numa praia do Rio de Janeiro. Desgraças e dores, não esqueçamos, são infinitas quando não há mais vida. Os assassinos do negro, pobre e estrangeiro disseram que o mataram porque ele estava bêbado. E se estivesse?
Dias depois, um Oficial da Marinha atira em outro negro desarmado e o mata afirmando ter pensado tratar-se de um bandido. E se bandido fosse?
Um deputado estadual (falando nisso, já há no Brasil os cargos de vereador internacional e de deputado estadual internacional?) viaja para um país em guerra e justifica suas falas misóginas, sexistas, machistas e criminosas afirmando que sua opiniões são aceitáveis por haver se pronunciado em grupos privados de redes sociais. Ou seja, caso sigamos o raciocínio torto do parlamentar (um escroto, há que se dizer) as pessoas seriam formadas por dois caráteres: um para ser usado quando se estivesse em público e que serviria para angariar os votos do eleitorado e outro para os “de casa”, onde toda a canalhice e sordidez poderiam ser exercidas.
Em frase atribuída ao irlandês Oscar Wilde e do qual o tal congressista nunca deve ter ouvido falar, temos como “ética o conjunto de coisas que as pessoas fazem quando todos estão olhando. O conjunto de coisas que as pessoas fazem quando ninguém está olhando chamamos de caráter.” Tempos difíceis esses onde o derretimento moral grassa ao vivo e diariamente. O que em tempos idos chamávamos de bom senso parece haver escoado pelo ralo torpe e fétido da indecência. Que nos reste um mínimo de revolta.
Vladimir Araújo é professor, advogado, mestrando em Tradução e editor do LetraseLivros.