Spinoza, Thomas Mann, Francisco de Oliveira e o fascismo bolsonarista.
Por Carlos Russo Jr.
Baruch Spinoza, o autor da “Ética”, filósofo holandês do século XVII, traçava o caminho para a cidadania em meio à opressão: o ensino! Indivíduos amedrontados podem ser transformados em cidadãos livres exclusivamente através do processo educativo e participativo.
“Uma cidade onde a paz é o efeito da inércia dos sujeitos conduzidos como rebanho, e, formados apenas para a servidão, merece o nome de isolamento, nunca o de Cidade”. (Tratado Político)
“O ideal democrático deve sempre estar unido ao ideal educacional”. O racionalismo do filósofo o conduz à conclusão de que “o homem conduzido pela razão é mais livre no Estado, onde ele vive segundo um decreto comum que na solidão, na qual ele obedece somente a si mesmo”. (Ética)
A tirania enclausura o indivíduo no corpo e no intelecto, arrancando-o do convívio social. A democracia, o oposto da tirania, é o regime que respeita os entes humanos como singulares, mas coaduna tal cuidado com a força e os direitos coletivos.
“Ninguém transfere seu direito natural a ninguém, mas à maioria da sociedade, da qual ele é parte.”
Spinoza ainda tinha particular desprezo por esses senhores “cheios de fausto, com sábia “desrazão” e imoralidade.” Esses são os integrantes mais perigosos da elite, pois ao privarem a massa da verdade, dela retiram o poder de julgar.
É um erro, diz Spinoza, a insolência que marca todos os homens ao assumirem algum Poder. Mesmos aqueles que recebem apenas parcelas do poder e temporariamente, tornam-se insolentes. O despotismo dos ricos é adornado por uma “tolice refinada” e pela “elegante imoralidade”.
Quando a multidão desencadeia sua violência e passa a assumir o espaço público, esses tacanhos de alma, ricos e poderosos, tremem com toda a razão e reagem com violência decuplicada. O guarda civil torna-se insolente se tem alguma oportunidade de poder, tanto quanto o empresário que enriqueceu sob as asas do Estado ou graças à sua “esperteza”. Dizia Spinoza que se trata apenas de uma questão de “adereços”.
O policial que hoje em dia tem os cassetetes, os sprays de pimenta, balas de borracha; os milionários que desfilam em carros blindados ou em helicópteros, que bancam campanhas milionárias em troca de negócios, onde trapaceiam seus concorrentes e os cofres públicos, são ambos portadores de igual insolência, mesma arrogância, apenas apresentam diferentes “adereços” que os dos policiais.
Hitler e o Partido Nazista chegaram ao poder na Alemanha através do voto democrático e imediatamente devotaram-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade.
Thomas Mann, o maior dos escritores alemães do século XX, compreendendo os perigos que a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante do mundo, exilou-se e engajou-se na luta democrática. Em 1937, publicou uma crônica sob o título:
“Advertência à Europa!” A Advertência era dirigida muito particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a outros depositários do patrimônio cultural da humanidade.
Firmemente Mann assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a “integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou de outro aos interesses de uma ordem política decadente, reacionária e por isso mesmo inimiga figadal da cultura e do espírito.
“A democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade, mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso é indiferença moral.”
A ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se, omitir-se, quando sabemos que sua natureza e seu destino o colocaram na posição mais exposta da “polis”?
O espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”.
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito em 1956, após a Segunda Guerra e no auge da guerra fria, ele espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente vinte e cinco anos, entre 1920 e 1945.
O personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu.”
Para Mann, o adepto das luzes, o termo e o conceito “povo” sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
Pessoas como o escritor alemão têm, afinal de contas, sérias dúvidas a respeito do acerto dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto, perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória… Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade.
Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “Nesse momento só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas se ampliando cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De produndis’!”
O mundo criado pelo nazi fascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes.
“Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocrático-medievais.”
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de legitimar a força.
O Pedagogo, personagem de “Dr. Fausto”, por exemplo, sabia que, sob o nazi fascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à barbárie.
Mann, pela boca de Serenus, o narrador, expressará seu ódio ao nazismo nas últimas páginas do portentoso livro:
“Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia “pendurou em seu pescoço” o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso”.
O filósofo Francisco de Oliveira nos alertou que “o caminho do progresso, o caminho da modernidade havia sido lograr sínteses que ampliavam o espaço da liberdade”. No entanto, a égide do neoliberalismo, sob a qual vivemos nas últimas décadas, formatou uma nova síntese e esta deixou de ser positiva, na medida em que restringiu os espaços da liberdade para espaços meramente virtuais. Esta síntese negativa caminhou no sentido da negação total da liberdade dos indivíduos, enquanto por outro lado estendeu absurdamente a liberdade do capital.
“A indústria cultural transforma o conhecimento em informação, provocando a perda da radicalidade do conhecimento: tudo é transformado em informação”. Como decorrência, o espaço da informação cresceu enormemente e encurtou-se, novamente, o espaço público.
“Quem perde com a redução do espaço público é a polis; e a política perde, pois a polis é lugar de interlocução”.
“Em sociedades tão desiguais como a nossa, a privatização da vida é uma das piores marcas que reforça a desigualdade”.
“No fundo, é a eles (aos dominados) que se endereça a privatização da vida, pois é o alvo preferencial dessa privatização e do encolhimento do espaço público”.
Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes já haviam criado importantes categorias dos processos elitistas e antipopulares que caracterizaram as transformações sociais no Brasil. Eles demonstraram que o Brasil conservou traços coloniais e não conseguiu, efetivamente, se configurar como nação.
Com a política neoliberal das últimas décadas, o país perdeu instrumentos de fixação de uma política nacional, autônoma e soberana. De certa forma regrediu à situação colonial denunciada por Caio Prado e Florestan.
Desde 2019, entretanto, a sociedade brasileira passou a viver um dos períodos mais dramáticos e absurdos de toda a sua existência.
A maioria dos brasileiros elegeu um dos Presidentes da República mais despreparados intelectualmente de toda a história republicana, um indivíduo portador de desequilíbrio emocional, ardoroso amante de soluções simplistas e populistas, saudosista da ditadura militar, patrono e patrocinador das milícias para- militares que pululam diversos estados da federação, que se alinha à intolerância e à violência contra todos os que dele e de seu núcleo divergem.
Pois somente agora, após dezoito meses, a maioria desta mesma população começa a se dar conta da destruição em escala do patrimônio natural e sócio- cultural de nossa civilização, que Bolsonaro promove, exclusivamente em benefício de seu grupo, dos militares e milicianos que o sustentam e da maioria dos grandes empresários.
Como entender, então, o Brasil a partir desta eleição? Havia claros sinais de esgotamento do reordenamento democrático: as revoltas de 2013 dos ainda sem partido contra o “sistema”; a recessão e o desemprego explosivo pós era Dilma, a Lava Jato unidirecional escancarando apenas determinados atores da corrupção generalizada; a greve dos caminhoneiros; a politização do negócio da fé bancado pelas igrejas evangélicas donas de meios de comunicação poderosos; a campanha “Lula Livre” contrapondo-se a um poder judiciário cesarista e, finalmente, o triunfalismo petista desprezando alianças fora de sua hegemonia.
A corrupção moral e política desarticularam e amedrontaram uma sociedade fragilizada pela violência e pelo desemprego. Bolsonaro surge, então, como um “Mito” salvador que se estrutura na intolerância e na virilidade do estamento militar e paramilitar, miliciano.
Na quebra dos valores ligados à cidadania afloraram forças históricas conservadoras, de viés torcionado: nação (simbolizada pela camisa da decadente seleção brasileira de boleiros), família (no seu viés machista e autoritário), religião, bons costumes (com sua homofobia). O bolsonarismo invocou espectros que se imaginavam exauridos no pós-modernismo, como o falecido comunismo ateu, o “kit gay”, a misoginia, o empoderamento da violência.
Deixando a superestrutura, Jair Bolsonaro traz aquilo que se denomina o culto ao deus Mercado. Principia pelos interesses antinacionais de mineradoras e de petrolíferas, de parcela do agronegócio predador de nossa já combalida natureza, passa pela indústria armamentista, pelos empregadores de mão de obra intensiva que conseguiram a abolição do que restava dos direitos trabalhistas, assim como dos mercadores da saúde e da educação que, na destruição do Estado e da Seguridade Social, aumentarão seus lucros. Alinha também consigo o enorme negócio livre de impostos dos exploradores da fé religiosa.
Entretanto, pouco mais de um ano após sua posse, o Brasil atravessa agora talvez sua pior crise dos últimos dois séculos. Se a pandemia do COVID 19 aniquila principalmente as populações mais pobres, ela também desestrutura toda uma economia já enfraquecida, empobrece ainda mais a maioria esmagadora da população, desemprega mais milhões e milhões de brasileiros.
E o governo aposta sempre no quanto pior, melhor. Na pandemia, a sociopatia criminosa de Bolsonaro, da súcia que o acolhe e dos militares que o cercam, mira todo o tempo o caos e a permanente destruição das estruturas de uma democracia deteriorada, com o fim de exterminá-la.
E para atingir este objetivo é vital que o “vulgo” se deixe manipular, enganar pelo consumismo barato, pelo ódio destilado, por notícias falsas ou deturpadas, através de whatsApps e facebooks, pelas palavras dos pastores venais que comandam rebanhos.
De um modo ou de outro, é nas ruas, no espaço público que se formam cidadãos; é nas escolas, na educação, nas Universidades que se produzirão as políticas capazes de reverter a situação do avanço das tendências fascistas, antidemocráticas e antinacionais que emergem contra o país e a sociedade civil.
Precisamos nos preparar para retomá-las! Irmanemo-nos no combate à pandemia e ao fascismo miliciano- militar bolsonarista!
A Advertência à Europa de Mann atualiza-se numa Advertência aos Brasileiros!
“Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil”.
( Fonte: https://www.proust.com.br/post/spinoza-thomas-mann-francisco-de-oliveira-e-o-fascismo-bolsonarista)