Pessoa: uma biografia
Se levássemos em conta todos os personagens fictícios que povoaram a mente de Fernando Pessoa, o número ultrapassaria a marca dos cem nomes. Ainda que três deles ? Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos ? tenham se destacado como seus heterônimos mais prolíficos e celebrados, esse dado revela a intensa vida interior de um poeta que foi regido por uma imaginação pulsante e irrefreável.
Ao longo de mais de três décadas, Richard Zenith se notabilizou como um dos mais respeitados especialistas na obra do autor de Mensagem. Em Pessoa: uma biografia, o norte-americano radicado em Lisboa empreende uma pesquisa monumental nos mais de 25 mil papéis deixados pelo poeta, combinando prosa saborosa e vasta erudição.
Finalista do prêmio Pulitzer 2022 e eleito um dos melhores livros do ano por publicações como The New York Times, The Spectator, The NewStatesman, Kirkus Reviews e Publishers Weekly, Pessoa: uma biografia é um tour de force da história cultural e das biografias literárias. Uma verdadeira obra-prima.
“Definitivo e sublime.” The New York Times
“Uma das grandes biografias do século.” The New Statesman
“Erudito, sensível e divertido.” Financial Times
A mítica biografia de Fernando Pessoa por Richard Zenith materializa-se em língua portuguesa
Finalmente, a segunda biografia do poeta Fernando Pessoa. Após a de João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração, publicada em 1950, chega esta semana às livrarias a gigantesca investigação de Richard Zenith, com 1183 páginas. Pessoa – Uma Biografia foi já publicada nos Estados Unidos no ano passado e esteve entre os livros finalistas do Prémio Pulitzer. ( LEIA COMPLETO)
Fernando Pessoa ganha biografia a partir de textos inéditos descobertos
Por Matheus Lopes Quirino
O projeto literário, a religião e as tendências políticas são temas abordados pelo biógrafo, Richard Zenith
Aos 20 anos, o escritor Richard Zenith, 66, teve contato pela primeira vez com alguns versos de Fernando Pessoa (em espanhol). O estudante, em Chicago, percebeu de antemão que o autor que acabara de conhecer possuía não só qualidade literária, mas também um mistério.
Na década de 1980, Zenith esteve no Brasil e teve acesso à obra do escritor português por meio de edições compradas em sebos. No País, aprendeu o idioma de Pessoa, o que facilitou sua ida a Portugal, em 1987, onde mora desde então.
No Velho Continente, o norte-americano começou a estudar a obra de Pessoa, dono de mais de uma centena de heterônimos (alguns famosos, como Álvaro de Campos e Ricardo Reis, outros menos conhecidos, como Maria José, única figura feminina entre as personas criadas pelo luso). Zenith descreve a figura excêntrica do poeta, cujo projeto literário se emaranhou tão bem em sua vida pessoal que essa atmosfera íntima ficou reduzida a especulações com o passar dos anos, como a questão da suposta homossexualidade de Pessoa, tema trazido pelo próprio escriba em 1912, no poema Antinous. O autor de Pessoa: Uma Biografia (Companhia das Letras) conta, na entrevista a seguir, sobre como foi mergulhar em todas as vidas do escritor de múltiplas faces.
A biografia trata as particularidades desse sujeito poeta fragmentado, mostra as ambiguidades do autor que fez críticas ao governo, mas ganhou um prêmio por seus poemas nacionalistas, com o livro ‘Mensagem’, como foi se acostumar com esse camaleão que foi Fernando Pessoa durante o processo de escrita e pesquisa?
Foi um processo extremamente estimulante. Pessoa disse, meio brincando, que um intelectual moderno tem a obrigação cerebral de mudar de opinião várias vezes no mesmo dia e ele possuía uma flexibilidade mental fora do vulgar. Em parte queria provocar, desafiando princípios estabelecidos e ideias largamente aceites, mas também queria testar e pôr em causa as suas próprias convicções. Insistia em ver um determinado assunto de diversos pontos de vista. Tinha mais interesse em viajar pelo pensamento do que em chegar a conclusões definitivas. Para ele, aliás, não havia nada definitivo. Dito tudo isso, é possível traçar uma evolução nas suas ideias políticas, nos seus interesses espirituais e nos seus gostos literários.
Quanto a Mensagem, é preciso lembrar que o nacionalismo dos seus poemas é sui generis. O livro apresenta uma visão idealizada de Portugal, da sua história e do seu futuro. O Portugal de Pessoa não corresponde exatamente ao país que ocupa o canto sudoeste da Europa. André Luiz Oliveira, ao musicar os poemas de Mensagem (com a participação de Caetano, Elba Ramalho, Ney Matogrosso e muitos outros), soube celebrar este “Portugal” entre aspas, que é um país específico mas também universal.
A biografia de Pessoa escrita por João Gaspar Simões, em 1950, foi a primeira e, claro, ficaram pontas soltas, como interpretações equivocadas acerca da intimidade do autor. Em que sentido a biografia do senhor avança nesses aspectos e esclarece episódios da vida pessoal de Pessoa, um homem arisco e reservado, segundo os seus?
Através de cartas inéditas, pesquisas em arquivos, uma viagem a Durban (onde Pessoa passou nove anos da infância), entrevistas com descendentes de parentes e amigos do poeta e um exame aturado de todos os cadernos e papéis deixados por Pessoa, foi possível elaborar um retrato dele muito mais rico em pormenores. Também me beneficiei de todo o trabalho feito por outros pessoanos durante as últimas sete décadas.
Apesar de ser sociável, com um bom sentido de humor, Pessoa era, de fato, um homem “arisco e reservado”. Não tive a presunção de revelar o mistério de Pessoa — até porque seria uma tarefa condenada ao insucesso — mas espero ter escrito uma biografia que nos permite sentir o homem. Espero ter humanizado a figura do grande gênio.
Em que medida a vida pessoal de Fernando Pessoa se emaranha em sua obra literária? Como o autor trabalhou cada um de seus heterônimos e suas ambiguidades?
No caso de Pessoa, estamos perante uma obra-vida ou, se preferirmos, uma vida-obra, pois neste autor é difícil separar uma coisa da outra. Pessoa era sempre literário, mesmo nos aspectos mais quotidianos da vida, e a sua obra está impregnada de autobiografia, embora de uma forma quase sempre distorcida. A poesia e prosa de Pessoa são a fonte mais importante para o biógrafo, mas este tem de proceder cautelosamente, uma vez que o, poeta português nunca deixa de ser um fingidor. Não é um mentiroso, mas inventa, altera, reconfigura. Os heterônimos são como atos poéticos, impregnados também de muita autobiografia e fingimento. Além de contar a história individual de cada heterônimo ou autor fictício, a biografia traça a longa história do fenômeno da heteronímia, desde os amigos imaginários da infância, um dos quais escrevia cartas para Pessoa (isto é, Pessoa redigia cartas a si próprio em nome do amigo), até Maria José, uma corcunda tuberculosa que, por volta de 1930, escreve uma desesperada carta de amor para um serralheiro bonito que passa pela sua janela todos os dias. Durante minha estadia em Durban, descobri o heterônimo Karl P. Effield, autor do primeiro poema em inglês publicado por Pessoa, com 15 anos de idade, num jornal daquela cidade.
Desde pequeno Pessoa (como Alexander Search, seu primeiro heterônimo em inglês) buscava algo que chamava de Verdade – um conceito que vai ser estudado pelo escritor em sua busca esotérica. Em dado momento, o senhor dá a entender que a busca literária de Fernando Pessoa é também espiritual, concluindo que o autor seria capaz de criar essa própria ‘Verdade’. Que verdade é essa?
No seu Fausto Pessoa escreveu, “O segredo da Busca é que não se acha”, mas isso não o impediu de buscar sempre. No seu entender, foi o buscar, não o encontrar, que valia a pena. Se encontrasse a Verdade, não haveria mais jogo, e Pessoa era um lúdico apaixonado, adorava brincar. Com coisas frívolas e com coisas sérias. Sabia que o raciocínio jamais poderia atingir a Verdade, se é que a Verdade existe, e por isso levou sua busca para caminhos espirituais. Interessou-se sobretudo em caminhos esotéricos, pois queria (pelo menos teoricamente) apreender o mistério da existência, a gnose. Toda a busca de Pessoa foi feita com palavras, a mesma matéria com que construía as suas obras literárias. Sendo a Verdade afinal inalcançável, se não inexistente, Pessoa foi criando verdades provisórias, com “v” minúsculo. Com os heterônimos, por exemplo, Pessoa teorizou um Neopaganismo em que Alberto Caeiro era o mestre, quase um deus, enquanto Ricardo Reis e Álvaro de Campos eram os seus discípulos. Estudando os muitos apontamentos que Pessoa deixou sobre assuntos esotéricos, fiquei espantado quando percebi que não só investigou intensamente correntes como a Cabala, a Rosa Cruz e a Maçonaria, ele também inventou as suas próprias ordens iniciáticas — com sistemas de graus e ritos de iniciação. Portanto a religião, para Pessoa, também era um jogo, uma outra forma de literatura.
Tão solitário, mas nem por isso tão religioso quanto (o monge) Kierkegaard, embora a cultura portuguesa (a formação da sociedade) seja muito ligada à religião, ao catolicismo. Pessoa, em um de seus últimos escritos, teria citado um versículo do capítulo 9 da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: “Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar a todos”. Fernando Pessoa busca a redenção por meio da espiritualidade ( o místico) em algum momento?
Pessoa tinha pouco interesse na autoperfeição ou na redenção de si próprio. O fato de ele ter citado o dito versículo da Epístola de São Paulo mostra a sua preocupação em redimir os outros. Dotado de uma forte veia pedagógica, Pessoa queria ajudar a elevar o nível cultural de Portugal e queria, sobretudo, contribuir à civilização da humanidade. As suas investigações espirituais visavam a publicação de vários livros didáticos, que começava a escrever sem nunca acabar. Preocupava-se em indicar possíveis caminhos para os outros. No que respeita ao seu próprio caminho, ia atrás da gnose, como já indiquei. Rezar não era com ele, exceto literariamente, em poemas escritos em forma de preces.
O conservadorismo do mercado editorial português da década de 1940 soterrou trabalhos primorosos de Pessoa, quais trabalhos são esses e qual a importância deles? Quais foram redescobertos depois?
Não foi culpa do mercado editorial. Pessoa era um escritor promíscuo, bagunçado, Uma mesma folha de papel podia acolher alguns versos de um poema, a ideia para um conto, uma lista de pequenas dívidas, etc. O caso do Livro do Desassossego é emblemático. Pessoa não tinha sequer um caderno dedicado a sua maior obra em prosa, embora vários trechos da obra figurem nos seus cadernos. Depois, há quase 500 trechos adicionais escritos ao acaso, quando lhe apetecia, ao longo da sua vida adulta. Estes trechos encontravam-se dispersos entre os mais de 25,000 papéis que o autor deixou. Ainda por cima, a caligrafia de Pessoa é por vezes hieroglífica. Por isso os investigadores levaram tantos anos a recolher e decifrar os originais até poderem publicar a primeira edição do livro, apenas em 1982. Vários compêndios de textos em prosa tinham saído nos anos 60 e 70 e muitos outros inéditos têm sido publicados apenas nas últimas décadas. Quase podemos dizer que Pessoa, pelos conteúdos da sua obra — mais facilmente apreciados por nós do que pelos seus contemporâneos — e também pela sua fortuna editorial, é um escritor da segunda metade do século e mesmo do século atual. Para a nossa época, preocupada com questões de identidade, de fluidez de gênero, de diversidade e por aí fora, a relevância da obra de Pessoa só vai aumentando.
FONTE:
Editora Companhia das Letras; 1ª edição (14 dezembro 2022)
Idioma Português
Capa comum 1160 páginas
ISBN-10 6559211487