Perto do coração selvagem: edição com manuscritos e ensaios inéditos

Perto do coração selvagem: edição com manuscritos e ensaios inéditos

Perto do coração selvagem é o terceiro volume das edições especiais com os manuscritos e datiloscritos de Clarice Lispector, iniciadas com A hora da estrela e Água viva.

São aqui reproduzidos quatro ensaios inéditos especialmente escritos para a presente edição por renomados especialistas na obra de Clarice: “O nascimento da escrita ou ‘o girassol é ucraniano'”, de Marília Librandi; “Clarice, Joana e a recusa da banalidade”, de Maria Clara Bingemer; “A pulsação da vida: Perto do coração selvagem”, de Faustino Teixeira; “Clarice-Joana: Vozes perto do selvagem coração da vida”, de Evando Nascimento.

Ensaios imprescindíveis para o entendimento não apenas da estreia literária de Clarice Lispector, como também de toda a sua obra.

Editora ? : ? Rocco; 1ª edição (18 novembro 2022)

Idioma ? : ? Português

Capa comum ? : ? 304 páginas

ISBN-10 ? : ? 6555323132

ISBN-13 ? : ? 978-6555323139

 

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Jean Pierre Chauvin1 CHAUVIN, J. P. A Confissão de Lídia.

Resumo: Perto do coração selvagem, romance de estreia de Clarice Lispector, apresenta os principais ingredientes que aparecerão com maior densidade em suas obras posteriores. A protagonista, Lídia, está diante de um impasse de ordem afetiva que envolve autocrítica e questionamentos de maior espectro, ligados à posição da mulher na sociedade brasileira contemporânea.

Palavras-Chave: Clarice lispector; Mulher contemporânea; Sociedade brasileira. Abstract: Perto do Coração Selvagem, first Clarice Lispector’s novel, presents the main ingredients which will appear with more density in her further works. Lídia, the main character, is before an affective issue involving her self-criticism and broader queries related to the position of woman within contemporary Brazilian society. Keywords: Clarice Lispector; Contemporary woman; Brazilian society.

1 Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Colégio da Polícia Militar de São Paulo – Unidade Centro. jpchauvin@terra.com.br Recebido em Junho./2008 Aceito em Agosto./2008 4 Akrópolis, Umuarama, v. 16, n. 4, p. 3-6, jan./mar. 2009 CHAUVIN, J. P.

 

Quem reza, reza para si próprio, chamandose de outro nome. (CL)

Alguns livros existem para serem decifrados. Outros nos decifram. Perto do coração selvagem, primeiro romance de Clarice Lispector (1943), poderia ser considerado um tratado sobre os desligamentos afetivos. Lê-lo faz-nos olhar precisamente para onde estamos ou rever o que ainda não mudamos. Vale uma recente e feliz observação de Yudith Rosenbaum:

“Se é verdade que os escritores não criam apenas seus personagens, mas também seus leitores, no caso de Clarice a aprendizagem de quem a lê ‘se faz gradual e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar’, como diz a autora na abertura do romance A paixão segundo G. H. Prometendo, ao final, uma ‘alegria difícil’, Lispector nos seduz a realizar a mesma jornada arrebatadora da protagonista. Somos levados a desaprender nossos hábitos de leitores convencionais, para percorrer labirintos nem sempre apaziguadores e construir, como G. H., uma nova consciência sobre nós mesmos” (ROSENBAUM, 2004, p. 261).

I Como se sabe, em 1944, Antonio Candido – recém contratado pela Folha da Manhã (atual Folha de São Paulo) – conheceu Clarice Lispector a partir de seu romance de estreia. Desde então, os livros da então jovem escritora passaram ao estatuto de best sellers, ainda que o formato não fosse exatamente compatível, já que sequer fora projetado para integrar as demais mercadorias da nascente indústria cultural, no Brasil.

Segundo o crítico: “A pobre Joana nada pode, como todos nós. Mas possui uma virtude que nem a todos é dada: recusar violentamente a lição das aparências” (2004, p. 92).

Prenúncio da prosa confessional dos romances e contos seguintes, seu livro inaugural parece filosofia, mas não se pode afirmar que o seja. O fato é que também escapa à literatura só-narração e intriga. É romance de montar e desmontar, cujo enredo se funda e molda nos destroços de Joana, mulher que reluta ante sua personalidade simultaneamente pura e fria.

II Usualmente, aceitamos quase como um clichê a idéia de que a ruína é posterior à queda, como acontece ao final de um acordo comercial ou um relacionamento amoroso, para ficar em dois exemplos.

Nesse livro, a ruína antecede a cisão: Joana e Otávio não se amam mais e a dor que lhes advêm da separação é praticamente nula, porque antecipado o sofrimento e postergado o desenlace.

Doem muito mais a inércia, a falta de resolução, a felicidade triste, o tédio mal casado com a realidade de que ambos querem fugir. O principal obstáculo somos nós mesmos: “em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa”, afirma G.H., duas décadas depois (APSGH, p. 14).

Em Perto do Coração Selvagem, Otávio distancia-se gradativamente da esposa e retoma o contato físico e afetivo com Lídia, sua ex-noiva. Às vésperas do casamento, a própria Lídia, agora amante, também fora relegada em função de Joana. Inversão de papéis? De valores?

O fato é que a rejeição do marido de Joana pouco a transtorna: há mais alívio do que perda. Diante do relacionamento que já andava morno, exaurido, Joana, resoluta, conversa com a amante de Otávio.

Imediatamente após a esperada confissão de Lídia, Joana se deixa envolver com um homem só rosto, cujo nome sequer sabe. É a esse sujeito anônimo que se entrega, a princípio apenas no plano físico, admirada com sua absoluta simplicidade de homem solteiro, solitário e humildemente instalado num quarto-e-sala – tão diferente, mas próximo fisicamente da sólida casa, lar de fachada, de Joana e Otávio. É justamente no confronto com o imprevisto que renasce o amor: necessário medo de sentir.

III O diálogo entre Joana e Lídia redefinirá quatro trajetórias, considerando que o filho de Lídia seja o apêndice daquele triângulo amoroso. A conversação entre as mulheres vem marcada pela sinceridade da amante apaixonada, grávida de Otávio, e a honestidade da esposa, que reconhece perante Lídia, o fim de seu casamento.

Sem sopapos, gritos histéricos ou julgamentos rasteiros, o diálogo transcorre praticamente sem sobressaltos, como se as palavras revezadas por ambas, esposa e amante, trilhassem um meio caminho comum entre a paixão de Lídia e o fastio de Joana. Ela talvez desconfie, como o faz sua herdeira G. H. (1964), que “Talvez a desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema” (APSGH, p. 13).

Estamos diante de capítulo notável, escrito com máxima discrição, cuja cena comportaria apontar algo dos modos refinados da própria Clarice: dado que não a impede de conceder a Joana traços de uma heroína deslocada, sorte de mártir brasileira dos anos 40, num país ainda hoje fortemente marcado pelo patriarcado. Para Regina Pontieri:

(…)sua virgindade atestada paradoxalmente pelo amante, aponta para a incapacidade de exercer os papéis femininos que a natureza e a sociedade atribuem à mulher: Joana não tem filhos e, embora tenha marido e amante, não se entrega espiritualmente a nenhum deles, personagens aliás transitórios em sua vida. No início e término de sua trajetória está o pai: primeiro o pai carnal, depois o deus-pai, a quem dirige a súplica final (PONTIEIRI, 1999, p. 88).

Perto do coração selvagem anuncia temas presentes em vários outros romances, contos e crônicas da autora, especialmente os impasses de ordem afetiva. Segundo Ricardo Iannace:

(…) não é de se admirar que nos parágrafos iniciais de Perto do Coração Selvagem a menina Joana apareça fabulando. A exemplo da pequena Clarice, a heroína do romance também monta as suas histórias tramando situações que gravitam, inclusive, em torno de um tema recorrente no conjunto da obra da autora: a morte (IANNACE, 2001, p. 44).

De modo geral, essa condição leva as personagens a devorar sua própria essência e, no caso de Joana, isso se dá de modo indireto. A mulher visa a destruir o que permanecia estagnado, incrustado em sua personalidade morna. Para se atacar um alvo, principalmente quando dentro de nós mesmos, é preciso utilizar alguns atalhos. Inicialmente, há que se perder a compaixão. “Por que esse romantismo: um pouco de febre?” (PCS, p. 20).

IV “Por que adiar?”, pergunta-se Joana em determinados momentos. E seus refluxos de consciência apontam o tateio posterior de outra protagonista: a jovem Lóri, de Um aprendizado ou o livro dos prazeres (1969). Aqui, outra situação-limite: entregar-se ou não ao professor Ulisses? De certa forma, a dúvida de Joana também anuncia o misto de desejo, repulsa e necessidade de G. H., diante da substância essencial da barata. Joana, Lóri e GH, estorvos de si mesmas a desnudar os leitores.

Afinal, elas seriam figuras em débito com sua essência ou condição feminina? A resposta parcial pode vir sob a forma de novo questionamento. Dias antes de se casar com Otávio, Joana perguntara ao seu antigo professor: “Mas tendo a coisa mais alta, disse ela devagar, a gente por assim dizer já não tem as que estão abaixo?” (PCS, p. 55).

Romance não é exatamente filosofia, mas certas frases da protagonista ultrapassam os cômodos de seu lar, mal dividido com Otávio: invadem coração e mente do leitor. Mas, se esse romance não traz filosofia pura, demarca o desejo de saber, feito com a dor das perdas iminentes.

Perto do coração selvagem é uma narrativa de parada. Joana somos nós, com nosso novo poder de reflexão, ao preço de duzentas páginas, motivados pela escrita simples e direta, mas densa, de Clarice Lispector. Diante de certas afirmações da protagonista, percebemo-nos como um coletivo de porquês, numa violenta contradição com os pressupostos da própria Joana: “A personalidade que ignora a si mesma realiza-se mais completamente” (PCS, p. 78).

O poder decisório de Joana se evidencia quando ela reconhece o desamor por seu marido. Leva-a a negociar o fim de coisas com a amante de Otávio. Substancialmente, tais etapas servem a si mesma. Relacionam-se à sua resolução, desprovida de cálculo, de procurar e aceitar um homem anônimo, que a admira à distância, nas ruas por onde ela costuma caminhar.

V As reflexões e atitudes da protagonista convertem uma dúzia de capítulos bastante coesos em obra audaciosa, tanto do ponto de vista temático quanto estético. Autêntico brado não só contra maridos infiéis e esposas hipócritas, o que não seria pouco, parece dirigido a qualquer exímio mantenedor do matrimônio de aparências – preso ao “ritmo domesticado, como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula” (PCS, p. 109).

É, por certo, um protesto surdo, sem gritos ou demasiadas formas de escândalo, já que sai das mãos de uma escritora refinada, mais preocupada com o processo do que com a chegada; concentrada em pautar o problema em lugar de solucioná-lo. Por esse motivo, o impasse em Clarice escapa a qualquer injusta acusação de inutilidade (que ao romance se viesse a atribuir erroneamente). Daí o enredo intencionalmente levado sem arranques. Arrastar os episódios é, ao mesmo tempo, o motivo da trama e seu fim.

Para Candido, nesse romance ficava claro que “o tema passava a segundo plano e a escrita a primeiro, fazendo ver que a elaboração do texto era elemento decisivo para a ficção atingir o seu pleno efeito” (p. 206).

Esse “romance de aproximação”, como o chamou o mesmo ensaísta, pauta-se na irresolução da trama e por nulas reviravoltas no enredo. Romance de trânsito e não de conclusão, a trajetória de Joana reside numa busca incessante de auto-aceitação que a mutila, rompe e faz reviver em si mesma e em função do novo homem, numa relação contrária aos moldes tradicionais do casamento hipócrita: o seu – com direito cego a amantes – repleto de diálogos raros e enganosos.

Para se entender Clarice é preciso senti-la como se o livro fosse revivido por nós mesmos. É necessário ser selvagem e estar rigorosamente dentro de si. Em outras palavras, abandonar, a intervalos de tempo, máscaras, poses e pretensos traços de civilidade, para captar integralmente a densidade mal escondida nas fáceis, mas pungentes, palavras da autora.

VI Afirmou-se que o conceito de intervalo fundamenta o livro. Uma boa prova da transitoriedade espaço-temporal, supondo-a como item nuclear do romance, localiza-se, sugestivamente, no capítulo final (“A viagem”). Joana, recém separada de Otávio, e envolvida com o outro homem, anônimo, embarca no navio empregando a herança, até então intocada, de seu pai.

O cruzeiro marítimo não foi desenhado para encerrar o livro com um típico final feliz, mas justamente para prolongar no leitor a sensação de que o percurso de Joana é abrilhantado no final da leitura. Na verdade, é bem possível que as trilhas da protagonista continuem em nós.

Na viagem por mar recupera-se outra idéia recorrente em sua trajetória: a importância, a necessidade das pausas: “entre o passado e as névoas do futuro, a vaguidão branca do intervalo” (PCS, p. 157). Viajar de navio implica deixar a estabilidade, a base. Deixar a terra, símbolo da firmeza, da razão, do equilíbrio aparente, e se aventurar no terreno movediço que é o mar e suas profundezas. A…mar.

O alheamento de Joana representa também, e principalmente, a margem entre o final de seu casamento morno e o início de outra “viagem”: incursão a princípio ditada pela paixão que Joana nutre por um homem que muito deseja, mas pouco quer conhecer.

Se Otávio era o marido de todo instante, o outro homem que a seguia nas ruas, quando casada, é de instantes, apenas. “E seu corpo era apenas memória fresca, onde se moldariam como pela primeira vez as sensações” (PCS, p. 165).

Aqui se reforça a idéia de que a Joana não interessa a estabilidade de certas coisas, mas a passagem, o acaso dos encontros; um amor feito e mantido nos intervalos temporais e espaciais; as lacunas provocadas pela mulher que, naquele momento, nada pretende saber ou seguir: “Bebia água, abolira Deus, o mundo, tudo” (PCS, p. 191).

Volta e meia Clarice traduz-nos o fato de que viver em si mesmo é mais difícil que conviver com as próprias necessidades e crenças exteriores e as pessoas. Especialmente hoje em dia, num mundo de seres supostamente neutros e descartáveis, estarmos perto de nós mesmos e, eventualmente, revelar-nos aos outros, é, mesmo, um ato de corajosa selvageria.

Referências LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 ______. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. CANDIDO, A. A educação pela noite & outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000.

______. Brigada ligeira. 3… ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.

IANNACE, R. A leitora Clarice Lispector. São Paulo: Edusp, 2001.

PONTIERI, R. Clarice Lispector: uma poética do olhar. Cotia: Ateliê, 1999.

ROSENBAUM, Y. No território das pulsões. In: Cadernos de literatura brasileira, São Paulo, n. 17- 18, 2004.

Fonte : https://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/2590/2011

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