O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder
A mais completa e contundente análise dos mecanismos de criação e manutenção de privilégios no Brasil.
No primeiro volume de sua trilogia O país dos privilégios , Bruno Carazza enfrenta os meandros do corporativismo estatal para desnudar as regalias e benesses no topo das carreiras do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. A partir da análise das folhas de pagamento de tribunais, ministérios, parlamentos e Forças Armadas, entre outras instituições do Estado brasileiro, o autor revela as estratégias mobilizadas na defesa e promoção de interesses privados destoantes da realidade socioeconômica do país.
A despeito das frequentes polêmicas na mídia e na Justiça, a força política dos verdadeiros “donos do poder” continua sendo o principal obstáculo para a implementação de uma reforma administrativa capaz de acabar com os inúmeros benefícios do serviço público. Baseado em sólida pesquisa e dados abrangentes, Carazza narra muitas histórias de quem conhece os bastidores do poder e apresenta possíveis soluções para as distorções entre remuneração e produtividade nos altos escalões do Estado.
Sobre o Autor
BRUNO CARAZZA é mestre em economia pela UnB e doutor em direito pela UFMG. Servidor público de carreira (licenciado), trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e em diversos órgãos do Ministério da Fazenda. É professor associado da Fundação Dom Cabral, além de comentarista de economia do Jornal da Globo e colunista do Valor Econômico. Pela Companhia das Letras, publicou Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro (2018).
Detalhes do produto
Editora Companhia das Letras; 1ª edição (25 junho 2024)
Idioma Português
Capa comum 336 páginas
ISBN-10 8535937404
RESENHA
Filas de ossos e de Porsches
Pedro Fernando Nery e Bruno Carazza investigam nossas iniquidades e mostram como instituições brasileiras são máquinas de criar e preservar privilégios
Rafael Cariello
O economista Pedro Fernando Nery sabe o que está fazendo ao lidar com as palavras. Ainda no primeiro capítulo de seu Extremos, ele nos lembra de que em 2021, como resultado combinado da crise econômica provocada pela pandemia, da interrupção do auxílio emergencial e da inflação, formaram-se filas por restos de comida no país. Uma delas, para conseguir ossos de boi, se estendeu por cinco quarteirões, em Mato Grosso.
O mesmo 2021 foi também um período de retomada do crescimento, depois de superados os recorrentes episódios de isolamento social e de contenção da atividade econômica no ano anterior. O PIB cresceu então 5%, beneficiando em particular os estratos mais ricos da população. Logo, outras filas começaram a se formar. Por exemplo, uma espera de oito meses para a compra de um carro de luxo que custava 300 mil reais na versão mais barata — e que podia ultrapassar a marca de 1 milhão de reais por unidade. “Cinco quarteirões: a fila de ossos em Cuiabá. Mil e quinhentas pessoas: a fila do Porsche Taycan”, observa Nery, em seu livro.
Parece difícil apresentar de maneira mais clara e sintética a desigualdade brasileira, mas o próprio Nery, no mesmo capítulo, ajuda a tornar a nossa peculiar iniquidade um pouco mais compreensível — dessa vez, com o uso de números. O quanto o Brasil é desigual? Nery nos informa que, sob a métrica da repartição da renda nacional entre o 1% mais rico e os restantes 99% da população, fomos o quinto país mais desigual do mundo na década passada, atrás apenas do Maláui, da República Centro–Africana, de Moçambique e do Catar.
Nossa desigualdade é tão extrema que os brasileiros mais pobres estão entre as pessoas mais pobres do mundo, enquanto os brasileiros mais ricos participam do mesmo clube de riqueza a que têm acesso apenas os super-ricos das nações mais desenvolvidas. Tanto a criança magra de fome quanto o bilionário que paga proporcionalmente menos impostos que um cidadão de classe média cabem na nossa sociedade, sem que sua coexistência cause escândalo — e não é impossível que os dois se encontrem em algum sinal de trânsito em São Paulo.
Por que tanta desigualdade? Aí é preciso mais de um livro para responder. Não porque a resposta seja complexa. Ela é simples. Em boa medida nossa desigualdade é explicada por privilégios criados ou garantidos pelo Estado. O capitalismo, digamos assim, cria um bocado de desigualdades, um pouco por toda parte. Muitos países conseguem, contudo, usar o Estado para diminuir consideravelmente as distâncias fomentadas pelo mercado. O Brasil, não.
Nery abre a caixa de Pandora e nos deixa ver lá no fundo a esperança: uma sociedade mais justa está ao alcance de reformas legislativas que transformem o modo como cobramos impostos e como despendemos as receitas do governo. Sem precisar aumentar a carga tributária, poderíamos alcançar padrões de distribuição de renda europeus. E no entanto temos feito o contrário. Nossas instituições são máquinas de criar e preservar privilégios.
São tantos, e tão sofisticada a sua engenharia, que apenas o livro de Nery não é capaz de destrinchá-los. Em sua ajuda vêm os volumes da trilogia O país dos privilégios, de Bruno Carazza. O primeiro, que acaba de ser lançado, se dedica às benesses desfrutadas por uma fração minoritária do funcionalismo público, mas com enorme peso para os cofres do Estado. O segundo vai tratar dos privilégios distribuídos a empresários, e o terceiro das facilidades recebidas por muitos de nós, que lemos esta revista, “uma categoria difusa de privilegiados”, segundo Carazza, a que costumamos chamar de “classe alta”. Assim como Nery, Carazza é capaz de justapor palavras e imagens a números e estatísticas bem escolhidos com o objetivo de conferir maior inteligibilidade a um emaranhado de detalhes legais e complexidades jurídicas que de outra forma talvez permanecessem obscuros, para alegria de quem se beneficia deles.
Extremos é organizado em torno de destinos geográficos no Brasil que se caracterizam por alguma excepcionalidade: o município mais desenvolvido, o mais pobre, o bairro em que se vive mais, aquele em que se vive menos. A boa capacidade de observação de Nery e as histórias locais que ele reúne são trampolins para a discussão de problemas sociais e econômicos do país — e de suas possíveis soluções. O país dos privilégios — Volume I: os novos e velhos donos do poder conta a história de como diferentes grupos do funcionalismo público brasileiro conseguiram usar leis e instituições que tinham, a princípio, fins republicanos para cavar vantagens corporativas e abocanhar partes expressivas do orçamento público. Há um capítulo para os “privilegiados de toga” (magistrados), para os “privilegiados de terno e gravata” (a elite de servidores no Legislativo e no Executivo), e para os “privilegiados de farda” (militares), entre outros.
Os títulos não apenas se complementam, como são, em aspectos importantes, muito parecidos. Ambos têm como preocupação central a clareza de argumento. Procuram convencer o leitor do valor do que dizem pela exposição franca das premissas de seus raciocínios, de seus desdobramentos lógicos, mas também pelo esclarecimento do lugar que os autores ocupam nesse mundo de privilégios (Carazza já ocupou postos de elite do serviço público no governo federal; Nery é consultor legislativo no Senado, um dos trabalhos mais bem remunerados do funcionalismo no Brasil).
Os dois têm, portanto, mais ou menos um mesmo objeto (o Brasil e suas iniquidades) e similaridades de forma (uma quase obsessão pela clareza). Mas têm sobretudo uma grande semelhança no seu objetivo. Como observou com precisão o sociólogo Pedro Ferreira de Souza, em resenha na Folha de S.Paulo, o livro de Nery é “orientado para a ação”. “A maior parte do livro se dedica à apresentação de uma agenda reformista ao mesmo tempo radical e gradualista”, destacou o sociólogo. Também do livro de Carazza pode-se dizer que é uma obra voltada para a ação. E há um nome para essa tradição de produção intelectual que confia na razão, procura influenciar tanto quem tem poder quanto a opinião pública, com objetivo político reformista, apostando no progresso. Chama-se Iluminismo — uma perspectiva intelectual que, embora associada, com razão, ao século 18, ainda não alcançou importantes recônditos da República brasileira.
Exagero? Vejamos. Na Formação da literatura brasileira, ao comentar “a nossa Aufklärung” (é esse o título do capítulo), Antonio Candido se detém, elogiosamente, sobre o trabalho de três intelectuais públicos, que produziram sobretudo textos de jornal. Hipólito da Costa, o criador e redator do Correio Braziliense, que de Londres acompanhou o cenário político luso-brasileiro no período da Independência; Frei Caneca, que se opôs às arbitrariedades do Rio de Janeiro contra Pernambuco nos anos de 1820, em seu jornal O Typhis Pernambucano; e Evaristo da Veiga, que na Aurora Fluminense combateu o despotismo de Pedro I no início da década de 1830. Os três tinham uma prosa que se caracterizava pela clareza, buscavam conquistar a opinião pública e orientar a ação de quem tinha poder, tendo como objetivo a consolidação de um regime político representativo no Brasil. Vale lembrar que Nery e Carazza são também ótimos jornalistas, donos de duas das melhores colunas de comentário político e econômico do país (a de Nery, por enquanto, interrompida).
Hipólito da Costa, Frei Caneca e Evaristo da Veiga tinham, segundo Antonio Candido, “a concepção pragmática da inteligência” e “a confiança na razão e na ciência para instaurar a era de progresso no Brasil”. Ou seja, suas obras também eram orientadas para a ação, como Souza viria a dizer do livro de Nery. De resto, o modo claro de pensar e de escrever de um Hipólito da Costa, por exemplo, “contribuiu até os nossos dias para dar nervo e decoro à prosa brasileira, contrabalançando o estilo predominante que lhe corre paralelo e […] veio contorcendo-se até a perigosa retorquice dum Rui Barbosa”, comenta Candido.
Cortina de fumaça
Há ainda muita “perigosa retorquice” de discurso no país. Com frequência, e não à toa, na prosa de gente da área do direito e da economia. É horripilante a forma como advogados — das portas de cadeia aos mais altos tribunais — escrevem no Brasil. E é evidente que todo latim e jargão de que se valem, ao criar uma cortina de fumaça obscurantista, serve no fim das contas à manutenção de privilégios, a começar pelos deles próprios. Será que Nery e Carazza podem contribuir para dar algum “nervo e decoro” à atuação dessa gente que fala e pensa enrolado?
A “agenda reformista, ao mesmo tempo radical e gradualista”, que se depreende da leitura dos dois livros tem grosso modo apenas dois objetivos, ligados ao orçamento público: arrecadar melhor (não mais, apenas melhor) e gastar melhor (não menos, apenas melhor). O que é arrecadar melhor? Segundo Nery, é cobrar mais impostos dos mais ricos, que contribuem proporcionalmente pouco, e menos dos mais pobres.
No Brasil, quem ganha menos entrega uma fração enorme do seu salário ao governo por meio dos impostos sobre o consumo de bens. Na outra ponta, quem ganha muito mais paga pouco imposto de renda. Os mais ricos têm direito a uma grande variedade de isenções, além de uma alíquota máxima relativamente baixa, de 27,5%, que recai sobre uma parcela muitas vezes limitada de sua renda. Subtraídos os benefícios e isenções, a “alíquota efetiva” paga por quem ganha entre quinze e vinte salários mínimos no Brasil é de, em média, só 11% da renda. Entre os extremamente ricos, que ganham mais do que 320 salários mínimos por mês, a alíquota efetiva é de 5%. Uma reforma do imposto de renda que o tornasse um pouco menos camarada com os ricos brasileiros poderia, segundo estudo do Ipea citado por Nery, resultar em ganhos de arrecadação de algo entre 70 e 120 bilhões de reais ao ano. Quase um novo Bolsa Família anual.
Na outra ponta, o que quer dizer gastar melhor, na prática? Um bom começo é cortar a quantidade vexaminosa de penduricalhos que a elite do funcionalismo conseguiu anexar aos próprios salários nas últimas décadas. Uma elite que, segundo O país dos privilégios, é facilmente identificável: ela não usa farda, jaleco, nem mesmo crachá, mas sobretudo toga.
A Constituição impõe um teto de remuneração aos nossos funcionários públicos, equivalente ao salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal: cerca de 45 mil reais, atualmente. Trata-se de um valor generoso para uma sociedade relativamente pobre, está escrito, é lei — mas não vale. Juízes, mais do que qualquer outra categoria de funcionários públicos, criaram para si exceções, regras exclusivas, interpretações particulares — etimologicamente, privilégios. Recebem auxílio para morar, se vestir, pagar a creche do filho, se deslocar de um lugar a outro. Tudo por fora e para além do salário. Um levantamento feito por Carazza mostra que 93% dos juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores brasileiros tiveram um rendimento médio superior ao dos subsídios dos integrantes do STF em 2023. Dentro desse clube de elite, mais de mil servidores receberam valores líquidos superiores a 1 milhão de reais no ano.
“Dá bilhão?”, perguntou certa vez o ex-ministro Ciro Gomes, ao ouvir propostas para economizar recursos públicos. A pergunta é razoável, apesar do valor arbitrário: o que Ciro pretendia era separar o joio do trigo, identificando cortes relevantes do ponto de vista orçamentário. Os privilégios dos magistrados brasileiros dão muito mais que bilhão. Enquanto no Brasil a despesa com todos os ramos de Justiça equivale a 1,6% do PIB, segundo levantamento citado por Carazza, o custo do Judiciário é em média de 0,5% do PIB em países emergentes, e de 0,3% em países ricos. Esse 1% a mais da renda nacional que gastamos com o Judiciário quase equivale aos gastos atuais turbinados com o Bolsa Família.
Com o exato tamanho da carga tributária que temos hoje seria possível avançar muito no combate à pobreza e na implementação de políticas de desenvolvimento de longo prazo, como a oferta de creches para a primeira infância. Resta a pergunta: é razoável esperar que vinguem as propostas de melhor arrecadação, e de maior “nervo e decoro” nos gastos públicos? Pedro Ferreira de Souza, ao comentar o livro de Nery, se mostrou cético. O sociólogo avalia que a posição ideológica de Nery, “um liberalismo à americana, nos moldes do mainstream do Partido Democrata, […] não tem força partidária nem peso eleitoral no Brasil”. O que dificulta — Souza tem razão — sem contudo impedir reformas, creio eu.
Boa parte das melhores políticas públicas brasileiras não resultaram do debate partidário e eleitoral. Ao contrário, foram com frequência formuladas ou defendidas por técnicos e pesquisadores como Nery, Carazza e o próprio Souza, e só depois adotadas por partidos e governos. O Sistema Único de Saúde, por exemplo, nasceu de debates de especialistas em saúde pública (muitos ligados ao PCB, é verdade, mas essa base contava contra, e não a favor da sua adoção); enquanto o Bolsa Família, marca do primeiro governo Lula, não foi debatido eleitoralmente em 2002 — e inclusive sofreu resistências da base petista.
O principal obstáculo à implementação das propostas de Nery e Carazza me parece residir não na sua falta de representatividade ideológica ou partidária, mas no modo de funcionamento do sistema político. Extremos e O país dos privilégios nos dão pistas convincentes de que a política no Brasil é particularmente porosa a interesses de grupos específicos e minoritários, como as elites empresariais e do funcionalismo, em detrimento do interesse público, da maioria da população. Não seria surpresa se associações de classe se mostrassem mais uma vez persuasivas em seu trabalho de convencimento de deputados e senadores. Mas pode ser que algum tipo de fronteira, na enorme margem de tolerância que temos com privilégios, tenha sido cruzada, afinal. Como disse a cientista política Graziella Testa, atualmente a “única ponte verdadeira entre esquerda e direita é destruir a remuneração imoral do Poder Judiciário”.
Fonte : https://quatrocincoum.com.br/resenhas/desigualdades/filas-de-ossos-e-de-porsches/