O Livro dos começos é composto de 19 começos que, em vez de serem organizados no formato tradicional de livro, nos são apresentados em folhas individuais e não-numeradas, permitindo a radical mobilidade do texto. É mais correto pensarmos nesta obra como uma coletânea de micro contos que buscam diferentes interpretações do que poderia consistir ou não em um começo do que como um Romance. Os começos, no entanto, são uma mistura de ficção e não-ficção, tornando-os, talvez, micro ensaios em vez de micro contos.
Diante na impossibilidade de classificá-los em um determinado gênero, em detrimento dos outros, somos forçados, logo de cara, a tomar uma atitude: seremos coniventes com a organização original, que poderia muito bem já ser aleatória, ou criaremos uma nova forma de ler a obra? Eu escolhi a segunda opção e fiz o bom e velho sorteio para determinar uma nova ordem de leitura e, tendo sido a primeira obra que li em ordem determinada pela sorte, confesso que me encantei pela experiência proposta por Jaffe.
A escrita de Noemi Jaffe é muito gostosa e seu tom ensaístico não fica parecendo pedante ou acadêmico em momento algum. Na verdade, ler este livro foi como sentar para conversar sobre o tema com um amigo. Ou melhor, com dezenove amigos diferentes que tem a dizer e, principalmente, que dizem coisas que nos fazem pensar sobre escrita, sobre viver, sobre ação e reação, entre muitas outras coisas. Deixo vocês agora com alguns trechos dos meus começos preferidos:
Começar é fácil. Antes que a pessoa se dê conta, antes que decida, o começo já se impõe. É só mexer o braço, piscar, deslocar um pé mais para a direita ou para a esquerda e já é um começo. Nada definitivo ou grandiloquente é necessário. Mesmo que tenha havido muito esforço de planejamento, muito tempo no desenvolvimento do projeto, nada disso dificulta ou impede o começo.
O começo é um suicídio. É preciso arriscar-se e jogar para morrer. É preciso morrer de verdade. Abandonar o que se sabe, o que se conhece, o que se quer. Não se pode saber o que se quer. Entregar-se ao vazio e habitá-lo sem paredes, teto ou chão.
Será que, escolhendo um caminho que surge como chance de começo, não se perdem outros melhores? Ou será que qualquer caminho serve, contanto que se comece e, mais tarde, quando já se tiver começado, conserta-se o que estiver errado?
Uma palavra resolveu sair para passear. Assim que pisou na calçada percebeu que o passeio não era livre nem despretensioso. No momento em que respirou o ar da rua, se deu conta de que estava presa a um começo e de que era, ela mesma, o começo de uma história.
Editora Faria e Silva; 1ª edição (30 janeiro 2025)
Idioma Português
Capa comum 40 páginas
ISBN-10 6581275743
ISBN-13 978-6581275747
O ‘Livro dos começos’, de Noemi Jaffe, marca o fim da Cosac Naify
Último lançamento da editora, obra traz ensaios poéticos sobre o começar
Leonardo Cazes
23/02/2016 – 06:00 / Atualizado em 23/02/2016 –
RIO – Por uma ironia do destino, o último livro a ser publicado pela editora Cosac Naify é o “Livro dos começos”, da escritora e tradutora Noemi Jaffe. Não se trata de uma obra tradicional. O livro é uma caixa que guarda várias lâminas, cada uma com um ensaio poético sobre começar. Sem ordem pré-definida e numeração, a ideia surgiu a partir de conversas de Noemi com a editora Heloísa Jahn. Afinal, é possível começar de qualquer lugar, não necessariamente da primeira página.
— No “Livro dos começos”, você começa na ordem que quiser. A ideia é não ter um começo só. Até porque todo começo é diferente — explica Noemi. — O último livro da Cosac se chamar “Livro dos começos” é como se fosse um augúrio. Uma coisa que está terminando, mas pode começar. E vários dos ensaios falam sobre isso. Se você começa algo é porque aquilo vai acabar. Começar é estar condenado ao fim.
A escritora conta que escrever sobre os começos foi uma forma de refletir sobre algo que a aflige durante toda a produção de um livro. Ela argumenta que os começos são sempre artificiais porque, na vida, as coisas nunca começam, mas seguem um fluxo. “Mais do que nomear, designar um começo é localizar algo no tempo e condená-lo à temporalidade, já que o começo é um elemento da tríade composta de passado, presente e futuro. O que agora é começo, em muito ou pouco tempo já será passado”, escreve Noemi.
— O tempo todo eu penso nisso. Ao longo da escrita de um livro, você está o tempo todo começando. Eu tento fazer com que o leitor sinta um fluxo de simultaneidade, mais do que uma série de causas e consequências, tal como é a vida. O desafio é fazer o tempo narrativo soar natural — afirma a escritora.
Noemi é bastante ativa no Twitter. No seu perfil na rede social e em seu blog, ela escreve sobre a origem das palavras, estabelecendo relações curiosas entre elas. No domingo passado, a escritora mostrou que “idiota” e “idioma” têm a mesma raiz: próprio, peculiar. “São peculiaridades dos falantes de uma língua e dos limítrofes mentais”, escreveu. Já na sexta-feira, ela apontou um parentesco mais inusitado, entre “caralho” e “caráter”. Ambas vêm do ferro pontiagudo utilizado para marcar bois. Seu interesse pela etimologia das palavras é muito antigo e está relacionado ao seu ofício de tradutora. Noemi diz que a história de cada palavra já dá um conto.
— Quem vai fundo nas origens das palavras passa a conhecer segredos sobre a vida. Somos mais capazes de compreender alguns mistérios de como as coisas funcionam. É como se eu buscasse um tempo em que as palavras e as letras tivessem um motivo para ser do jeito que são, e não arbitrárias como hoje — explica a escritora.