Arte, amor, cotidiano, vida. Em Textos Escolhidos dessa edição, um pouco da obra da poetisa e escritora Marina Colasanti. Confira.
1) Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
2) Um espinho de marfim
Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ele vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.
Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.
Quero esse animal para mim. E imediatamente ordenou a caçada.
Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista, confundindo-se no rastro.
Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor de fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.
Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal de sua presença. E silêncio nas noites.
Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo. E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. A princesa penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente.
Durante três noites trançou com fios de seus cabelos uma rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do quarto dia , quando o sol encheu com a primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.
Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.
A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.
Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas patas finas.
Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?
Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado aos seus pés, esquecidos do prazo.
As três luas porém já se esgotavam. Na noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unicórnio comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.
Amanhã é o dia. Quero sua palavra comprida, disse o rei- virei buscar o unicórnio ao cair do sol.
Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar o amor era preciso.
Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que haviam se encontrado a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o fundo de seus olhos. E como no terceiro dia aproximou a cabeça do seu peito, com suava força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.
Quando o rei veio em cobrança da promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de lírios.
COLASANTI, Marina.”Um espinho de Marfim”. IN: Um Espinho de Marfim e outras histórias. Porto Alegre: L&PM. p. 39,1999.
3) Luz de lanterna, sopro de vento
Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. “Para trazê-lo de volta,” murmurou. E foi dormir.
Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. “Foi o vento da madrugada,” pensou olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.
À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a distância deveria indicar ao seu homem o caminho de casa.
Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger das argolas da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.
Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas. “Na certa não ventará,” disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavio.
Se ventou ou não, ela não saberia dizer. Mas antes que o dia raiasse não havia mais nenhuma luz, a casa desaparecia nas trevas.
Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual constância apagava.
Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna, a mulher viu ao longe recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte, a silhueta escura de um homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava na sua direção.
Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, destinguiu a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou entre o medo e a esperança. O fôlego se reteve por instantes entre lábios abertos. E já podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que vinha.
Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada. Nem fez menção de encaminhar-se para a casa.
Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer havia acabado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para ficar. “Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir,” disse-lhe quase ríspido. “Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas, como se me chamasse. “Só de madrugada depois que o vento sopra posso adormecer.”
A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito do marido, mas o coração dele parecia distante, protegido pelo couro da couraça.
“Deixe-me fazer o que tem de ser feito, mulher,” disse sem beijá-la. De um sopro apagou a lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as sombras, e ela não pode sequer vê-lo afastar-se contra o céu.
A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse a chama acender-se por trás das pálbebras do marido.
No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que era tanto.
E, passado , num final de tarde em que a soleira da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem à pé que caminhava na sua direção. Protegeu os olhos com a mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem couraça, retendo o sorriso nos lábios- tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto entre a barba e o chapéu, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, liberando o coração. Era seu marido que voltava da guerra.
Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar. Caminharam até a casa. Já iam entrar. Quando ele se reteve. Sem pressa voltou-se, e, embora a noite ainda não tivesse chegado, acendeu a lanterna. Só entrou com a mulher. E fechou a porta.
COLASANTI, Marina.”Luz de lanterna, sopro de vento “. IN: Um Espinho de Marfim e outras histórias. Porto Alegre: L&PM. p. 39,1999.
4) A Paixão da Sua Vida
Amava a morte. Mas não era correspondido.
Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o
rejeitava, recusando-lhe o abraço.
Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estorou-lhe o coração.
5) A Quem Interessar Possa
Abriu a janela no exato momento em que a garrafa com a mensagem passava, levada pelo vento. Pegou-a pelo gargalo e, sem tirar a rolha, examinou-a
cuidadosamente. Não tinha endereço, não tinha remetente.
Certamente, pensou, não era para ele. Então, com toda delicadeza, devolveu-a ao vento.
6) E A Brisa Sopra
Ao amanhecer, quando vindo do mar começava a soprar leve o vento, subia o rapaz no alto daquele prédio, e empinava a pipa amarela. Batendo o tênue corpo de papel contra as varetas, serpenteando a cauda, lá ficava ela no azul até que o final da tarde engolia a brisa, habilitando então o a terra
sobre o mar, e descendo o rapaz para a noite.
Assim, repetia-se o fato todos os dias. Menos naquele em que, por doença ou sono, o rapaz não apareceu no alto do terraço. E a brisa da manhã começou a soprar. Mas não estando a âncora amarela presa ao céu, o edifício lentamente estremeceu, ondulou, aos poucos abandonando seus alicerces para deixar-se levar pelo vento.
7) Amor de Longo Alcance
Durante sete anos , separados pelo destino, amaram-se a distância. Sem que um soubesse o paradeiro do outro, procuravam-se através dos continentes, cruzavam pontes e oceanos, vasculhavam vielas, indagavam. Bússola de
longa busca, levavam a lembrança de um rosto sempre mutante, em que o desejo, incessantemente, redesenhava os traços apagados pelo tempo.
Já quase nada havia em comum entre aqueles rostos e a realidade, quando enfim, num praça se encontraram. Juntos, podiam agora viver a vida com que sempre haviam sonhado.
Porém cedo descobriram que a força do seu passado amor era
insuperável.
Depois de tantos anos de afastamento, não podiam viver senão separados, apaixonadamente desejando-se. E, entre risos e lágrimas, despediram-se, indo morar em cidades distantes.
8) Um Tigre de Papel
Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas.
Depois, com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do tigre na sala rococó em que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a outro, o felino movia-se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.
Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de
movimento com uma frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas,
criava-se a realidade antes inexistente.
O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o tamborete de “petit-point”. E já a fera aparentemente domesticada tencionava os músculos para obedecer
quando, numa rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta. Antes que chegasse a vírgula, havia estraçalhado o sofá, derrubado a mesa com a estatueta de Sévres, feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. O tigre apossava-se da sua natureza. Já não havia controle
possível. O autor só podia acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de palavras a bela decoração rococó que havia tão prazerosamente construído, enquanto sua criatura crescia, dominando o texto.
Impotente, via aos poucos espalharem-se no papel cacos de móveis e porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair por terra a moldura entalhada. Não havia mais ali um animal exótico na sala de um palácio, mas um animal feroz em seu campo de batalha.
O escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera, para que ele pudesse retomar o domínio da narrativa, quando o viu virar-se na sua direção, baixar a cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do tigre
abatendo-se sobre ele obrigou o texto ao ponto final.
9) Como Uma Rainha de Micenas
Tendo falecido esposa muito amada, desejou que partisse para a última viagem com o fausto de uma rainha. Rodeou-lhe o pescoço de gargantilhas e colares que desciam sobre o peito ocultando as vestes. Encheu-lhe de anéis os dedos que n”ao mais dobrariam falanges. E brincos, pulseiras, enfeites cobriam aquele corpo agora mais resplandecente do que em vida. Depois, para que nada lhe faltasse na longa travessia, depositou ao seu redor jarros, pratos, taças, talheres do mais puro ouro, sem esquecer pentes e um espelho para sua vaidade.
A idéia de apartar-se da esposa para sempre era-lhe, porém,
insuportável.
Querendo-a pelo menos ao alcance da sua saudade, mandou construir no canto mais frondoso do jardim uma capela, em cuja cripota de pórfiro abrigou o esquife, separado dele apenas por um portãozinho de ferro batido.
E disposto a enfrentar o luto interminável, começou o aprendizado de uma nova vida em que a voz amada não ecoaria.
Talvez justamente devido a esse silêncio, cedo surpreendeu-se com a rapidez com que aprendia. A vida parecia-lhe de fato mais nova a cada dia. Nem bem um ano tinha-se esgotado, quando lhe ocorreu que, como ele tanto havia avançado, também a esposa teria a essa altura cumprido parte de sua viagem.
Pelo que já lhe não seria necessárias algumas das coisas que consigo levara para uso simbólico. Em ranger de ferros, entrou na cripta e selecionou uns poucos pratos, um frasco, sem dúvida devidamente usados no além.
Desse modo, foi sucessivamente recolhendo os objetos de outro que, gastos pela defunta e já sem serventia para ela, afiguravam-se como muito proveitosos para si. Um garfo hoje, uma taça amanhã, um pente agora, um jarro depois, acabou enfim chegando às jóias pessoais.
Na semi-escuridão da cripta, pulseiras e adereços brilhavam
frouxamente, folgados os anéis nos dedos descarnados, pousada ainda a tiara sobre a fronte. Jóias demais, pensou ele contrito. Sem dúvida, nada condizentes com uma mulher que, onde quer que se encontrasse, estaria entrando na velhice.
Assim pensando, retirou as mais pesadas. Voltando tempos depois para buscar as menos comprometedoras. E por último as insignificantes. Até chegar ao despojamento total.
No esquife, agora, restava apenas o espelho de outro. Mas de que serve um espelho para uma mulher simples e velha, já despida de vaidades? perguntou-se.
Tento pronta a resposta, pegou o espelho pelo cabo, e saiu sem fechar o portão atrás de si.
10) Para que ninguém a quisesse
Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.
COLASANTI, Marina. “Para que ninguém a quisesse”.
In: Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P. 111-2.
11) Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber porque tinha acordado. Trazia porém do sono um aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília, olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós, pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos. E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse mulher. E ele então mexeu-se porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua – mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam estar vindo da praça, ou de outra rua -, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que mesmo assim o chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima certeza, o que estava se passando.
Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido, meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se. Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura, quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e teve vontade de chorar.
Texto extraído do livro “O leopardo é um animal delicado”, Editora Rocco, 1998.
12) Sem novidades no front
Esperava que o marido voltasse da guerra. Durante os primeiros anos, quando ele certamente não chegaria, preparou compotas. Depois, a partir do momento em que o regresso se tornava uma possibilidade iminente, assou pães, e a cada semana uma torta de pêras, enchendo a casa com o perfume açucarado que, antes mesmo do seu sorriso, lhe daria as boas-vindas.
Um dia chegou o vizinho da frente. No outro chegou o vizinho do lado. E seu marido não chegou. Voltaram os gêmeos morenos. Voltaram os três irmãos louros. E seu marido não voltou. Aos poucos, todos os homens da pequena cidade estavam de volta a suas casas, Menos um. O seu.
Paciente, ainda assim ela espanava os vidros de compotas, abria em cruz a massa levedada, e descascava pêras.
Há muito a guerra havia terminado, quando a silhueta escura parou hesitante frente ao seu portão. Antes que sequer batesse palmas, foi ela recebê-lo, de avental limpo. E puxando-o pela mão o trouxe para dentro, fez que lavasse o rosto na pia mesmo da cozinha, sentasse à mesa, enfim um homem no espaço que a ele sempre fora dedicado.
Encheu-lhe o copo de vinho, serviu-lhe a fatia de torta. Profunda paz a invadia enquanto o olhava comer esfaimado. E esforçando-se para não perceber que aquele não era o seu marido, começou a fazer-lhe perguntas sobre o front.
Textos extraídos do livro “Contos de Amor Rasgados”, Editora Rocco, 1986.
13) Às seis da tarde
Ás seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução
Texto extraído do livro “Gargantas abertas”, Editora Rocco, 1998.
14) Tua mão em mim
Você me acorda no meio da noite
e eu que navegava tão distante
cravada a proa em espumas
desfraldados os sonhos
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
a boca ainda salgada mas já amarga
molhada a crina
encharcados os pêlos
na maresia que do meu corpo escorre.
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
A correnteza arrasta.
Só quando o primeiro sopro escapar
entre os lábios da manhã
levantarei âncora.
Mas será tarde demais.
O sol nascente terá trancado o porto
e estarei prisioneira da vigília.
Gargantas abertas, Editora Rocco, 1998 – Rio de Janeiro, Brasil
BIOGRAFIA
Marina Colasanti (Sant’Anna) nasceu em 26 de setembro de 1937 , em Asmara (Eritréia), Etiópia. Viveu sua infância na Africa (Eritréia, Líbia). Depois seguiu para a Itália, onde morou 11 anos. Chegou ao Brasil em 1948, e sua família se radicou no Rio de Janeiro,onde reside desde então. Possui nacionalidade brasileira e naturalidade italiana.
Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista.
Ingressou no Jornal do Brasil em 1962, como redatora do Caderno B. Desenvolveu as atividades de: cronista, colunista, ilustradora, sub-editora, Secretária de Texto. Foi também editora do Caderno Infantil do mesmo jornal. Participou do Suplemento do Livro com numerosas resenhas.
No mesmo período edita o Segundo Tempo, do Jornal dos Sports. Deixou o JB em 1973.
Assinou seções nas revistas: Senhor, Fatos & Fotos, Ele e Ela, Fairplay, Claudia e Jóia.
Em 1976 ingressou na Editora Abril, na revista Nova da qual já era colaboradora, com a função de Editora de Comportamento.
De fevereiro a julho de 1986 escreveu crônicas para a revista Manchete.
Deixa a Editora Abril em 1992, como Editora Especial, após uma breve permanência na revista Claudia, tendo ganho três Prêmios Abril de Jornalismo.
De maio de 1991 a abril de 1993 assinou crônicas semanais no Jornal do Brasil.
De 1975 até 1982 foi redatora na agência publicitária Estrutural, tendo ganho mais de 20 prêmios nesta área.
Atuou na televisão como entrevistadora de Sexo Indiscreto – TV Rio
Entrevistadora de Olho por Olho – TV Tupi.
Na televisão foi editora e apresentadora do noticiário Primeira Mão -TV Rio, 1974; apresentadora e redatora do programa cultural Os Mágicos -TVE, 1976; âncora do programa cinematográfico Sábado Forte -TVE, de 1985 a 1988; e âncora do programa patrocinado pelo Instituto Italiano de Cultura, Imagens da Itália- TVE, de 1992 a 1993.
Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; desde então, publicou mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992) que recebeu outro prêmio Jabuti, além de Rota de Colisão igualmente premiado.
Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant’Anna com quem teve duas filhas: Fabiana e Alessandra.
Em suas obras, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade.
É uma das mais premiadas escritoras brasileiras, detentora de vários prêmios Jabutis, do Grande Prêmio da Crítica da APCA, do Melhor Livro do Ana da Câmara Brasileira do Livro, do prêmio da Biblioteca Nacional para poesia, de dois prêmios latino-americanos. Foi o terceiro prêmio no Portugal Telecom de Literatura 2011. Tornou-se hors-concours da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), após ter sido várias vezes premiada.
Participa ativamente de congressos, simpósios, cursos e feiras literárias no Brasil e em outros países.
Bibliografia
Eu sozinha (1968)
Nada na Manga – crônicas (1975)
Zoológico – Contos (1975)
A morada do ser – contos (1978)
Uma idéia toda azul – contos de fadas (1979)
A Nova Mulher – coletânea de artigos (1980)
Mulher Daqui Prá Frente – coletânea de artigos (1981)
Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento – contos de fadas (1982)
A menina Arco-Iris – infantil (1984)
E por falar em amor – ensaio (1984)
O Lobo e o Carneiro no Sonho da Menina – infantil (1985)
Uma Estrada junto ao Rio – infantil (1985)
O Verde Brilha no Poço – infantil (1986)
Contos de Amor Rasgados – contos (1986)
O menino que achou uma estrela – infantil (1988)
Um amigo para sempre – infantil (1988)
Aqui entre nós – coletânea de artigos (1988)
Será que tem asas? – infantil (1989)
Ofélia a ovelha – infantil (1989)
A mão na massa – infantil (1990)
Intimidade pública – coletânea de artigos (1990)
Agosto 91, Estávamos em Moscou (1991)
Entre a espada e a rosa – contos de fadas (1992)
Ana Z, Aonde vai você? – juvenil (1993)
Rota de Colisão – poesia (1993)
Um amor sem palavras – infantil (1995)
O homem que não parava de crescer – juvenil (1995)
De Mulheres sobre tudo – citações (1995)
Eu sei mas não devia – (1997)
Gargantas abertas – poesia (1998)
O Leopardo é um animal delicado – contos (1998)
Um espinho de marfim e outras histórias – antologia de contos de fada (1999)
Esse amor de todos nós – coletânea de textos (2000)
Para ver a bibliografia completa e atualizada da autora, entrevistas , vídeos e outras informações, você também pode acessar o site oficial em http://www.marinacolasanti.com/.