Infelicidades contemporâneas

Infelicidades contemporâneas

Marcia Tiburi

Falar da felicidade se torna um desafio quando muita gente tenta transformá-la em uma bobagem, uma caretice, um assunto do passado

 Faz tempo que ando pensando na felicidade como categoria ética. Longe da felicidade publicitária, da felicidade das mercadorias, me parece necessário manter esse conceito em cena devolvendo-lhe ao campo da análise crítica contra a ordem da ingenuidade onde ele foi lançado. Justamente porque o tema da felicidade foi capturado na ordem das produções discursivas, falar da felicidade se torna um desafio quando muita gente tenta transformá-la em uma bobagem, uma caretice, um assunto do passado.

A felicidade é assunto do campo da ética. Em Aristóteles ela representa o máximo da virtude. Feliz acima de tudo é quem pratica a filosofia, mas na vida em geral, aquele que vive uma vida justa já pode ser feliz. Uma vida justa é uma vida boa, vivida com dignidade. Aquele que alcança um meio termo entre extremos e faltas sempre falsos, sempre destrutivos, sempre irreais, é alguém que pode se dizer feliz. A felicidade não é inalcançável, ela é busca bem prática que conduz a vida.

Hoje, depois de uma aula sobre o tema, uma aula crítica e analítica, daquelas que revoltam os ressentidos e fortalecem os corajosos, uma pessoa que se anunciou tendo mais de 80 anos, me abraçou e me disse, “sua aula me deixou feliz”. Eu também fiquei feliz.

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Fico pensando no que o termo felicidade pode ainda nos dizer, quando, por meio de uma deturpação conceitual, localizamos a felicidade nas mercadorias, quando a confundimos com fantasias e propagandas.

A felicidade sempre foi uma ideia e uma prática complexas. Sua complexidade remete a uma instabilidade inevitável. Em nossos dias, as pessoas falam muito da felicidade porque a desejam. E se a desejam é porque, de algum modo, podemos dizer que sonham com ela. Mas não podem pegá-la, comprá-la, obtê-la simplesmente e justamente porque ela não é uma coisa. Por isso, a ideia de felicidade não combina com a ideia de mercadoria. Como ideia, a felicidade é aberta e produz aberturas. Ela não cabe nas coisas, nem nas mais ricas, nem nas mais bonitas. Porque quando a felicidade está, ela é como a morte, as coisas, assim como a vida, já não estão.

Há, no entanto, coisas que nos lembram ou nos iludem da ideia de felicidade, mas sempre o fazem como um ideal ou um simulacro. Ninguém pode ser feliz plenamente, mas sempre pode buscar ser feliz em uma medida muito abstrata que, no entanto, nos conecta à outras utopias. Não é sem sabedoria que, em vez de pensarmos em uma única felicidade, começamos há muito tempo a pensar em felicidades no plural. Se não se pode ser feliz no todo, que se seja em lugares, em setores da vida. Que se realize a felicidade relativa, contra uma felicidade absoluta. Abaixo os absolutos, diz todo pensamento razoável.

Felicidades mil é o que desejamos àqueles que amamos. É um voto, apenas, um voto de fé que em tudo se confunde com a postura ética de quem deseja o bem ao outro. Felicidade, lembremos os filósofos antigos, era o sumo bem, o bem maior, o Bem com letra maiúscula. Uma coisa para inspirar, para fazer suportar as dores e sofrimentos da vida comum.

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A felicidade também se tornou complicada porque ela se apresenta como algo cada vez mais distante de nós. Inventamos uma felicidade idealizada demais. Não conseguimos saber muito bem porque ela some do nosso alcance, e esse distanciamento nos parece cada vez mais assustador. Ao mesmo tempo, ele torna a felicidade sempre mais misteriosa. Nesse contexto, a felicidade parece ser apenas uma questão de sorte, uma dádiva (não que isso deva ser jogado fora) e não uma construção social que depende de muitos jogos de linguagem, de saber e de poder.

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A felicidade sempre ficou no meio do caminho entre o desejo que temos dela e a impossibilidade de realizá-la na prática. A idealização da felicidade – culpa da própria má elaboração da ideia – levou a neuroses: viver coisas prazerosas, que trazem alguma felicidade, como se fossem desprazeres que geram infelicidades. Verdade que não podemos separar as felicidades dos prazeres e simplificar de tal forma que felicidade e prazer se tornem sinônimos. O prazer é tão complexo com a felicidade e não merece ser reduzido a ela, ainda que sempre possamos buscar analogias entre eles.

Na prática, na vida cotidiana, os menos neuróticos, digamos assim – aqueles que conseguem perceber a diferença entre felicidade idealizada e prazer material – tentam apegar-se aos  chamados pequenos prazeres sempre ligados ao bem-estar doméstico,  à modesta vida cotidiana. Vivemos uma época em que as utopias estão mesmo abaladas, talvez tenhamos de fato perdido o nexo com os idealismos, mas as idealizações e as fantasias estão, paradoxalmente em alta. É como se a nossa incapacidade de sonhar nos tivesse lançado em estados delirantes. A fantasia do cotidiano feliz por meio de casas bem decoradas, dos corpos esteticamente tratados, das roupas esteticamente corretas, que são também politicamente corretas tem se tornado uma espécie de verdade que atinge o cotidiano real e o virtual. Uma selfiefelizinha tornou-se uma imagem da vida…

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Vivemos uma felicidade fantasiosa em tempos de desespero. Parece a única que restou. No entanto, o desespero é o contrário da felicidade que exige a nossa extrema capacidade de esperar por ela e de construir seu caminho (em termos cognitivos, a felicidade do conhecimento é o método). Se esperamos sentados não encontramos a felicidade, porque ela não nos busca. É por demais cultural para para sobreviver sozinha na natureza. Para encontrá-la é preciso projetá-la na imaginação, mas a imaginação sofre de colonização na era da publicidade e precisa ser liberada de amarras discursivas e teóricas. Portanto, o desafio é poder imaginar para além do do que está estabelecido.

De fato, a felicidade implica capacidade de sonhar com uma vida melhor – a ideia de prosperidade, não pode ser descartada do desejo do ser humano que vive e trabalha – e de agir em nome dessa potencialidade. Quando perdemos a capacidade de sonhar – de imaginar o melhor – podemos, com facilidade, passar a delirar. Mas o que é um delírio? É uma narrativa explicativa do mundo que nasce da deturpação do sonho. Há no delírio algo de ficção: poderia ser uma obra de arte, mas é apenas uma doença.

A hipótese que podemos levantar tendo isso em vista é que estamos nos realizando em delírios que caracterizam uma época infeliz, justamente pela impossibilidade de lutar pelo sonho e pela utopia.

Enquanto esquecemos a felicidade filosófica, ou a deixamos pra depois em nome da felicidade falsa das mercadorias transmitidas publicitariamente, nos relacionamos com muitas infelicidades que vem se ajustar no sistema delirante explicativo do mundo.

A infelicidade do nosso tempo é feita de todo tipo de desespero: preconceitos baseados em afetos tais como ódio, medo e inveja tomam conta. Nexos entre o autoritarismo e o fascismo de nossos dias se tornam visíveis nas fobias que proliferam e deixam em pânico os mais sensíveis.

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Preconceitos fazem parte de uma vida infeliz. É verdade que eles fazem parte da vida na qual há preconceitos de todo tipo, sempre desproporcionais em relação às diferenças, à singularidade. Uma vida que se autoquestiona eticamente, é aquela que tenta entender e superar preconceitos. Em geral, nessa superação, encontramos com a novidade da singularidade. É ela, essa condição diferente e única própria de cada pessoa, que devemos respeitar universalmente.

Em um aspecto profundo é o autoquestionamento ético que, ao nos ajudar a superar preconceitos, nos leva à felicidade.

Gostaria de propor, portanto, que pensássemos se não é a falta de questionamento sobre o que fazemos e sentimos, e sobre o que pensamos, sobre o que acreditamos, que nos leva à infelicidade. A infelicidade não seria, nesse sentido, um estado de irreflexão?

Ora, a felicidade é um estado da alma consquistado em diálogo com o mundo ao nosso redor. Diálogo é o que há de mais complexo, porque implica a presença da diferença. A presença das singularidades que respeitam e promovem singularidades. Ora, não há diálogo com o mesmo. Diálogo é um termo que implica sempre o outro. Diálogo, portanto, não é apenas uma prática isolada da linguagem. É uma postura ética que necessita do convívio, do ato de viver junto.

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Toda época tem os seus delírios e as suas infelicidades, e eu me atrevo a sugerir que pensemos sobre os principais delírios de nossa época: o delírio sexual do qual fazem parte a misoginia (da qual a transfobia é parte) e a homofobia,  o delírio racial que encontra sua expressão no racismo, o delírio de classe que encontra sua expressão no dogma capitalista. Mas sobre eles falarei em um próximo post.

( Fonte : https://revistacult.uol.com.br/home/tag/marcia-tiburi/page/2/)

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