Gullar 90 anos

Gullar 90 anos

Falecido em 2016,  Ferreira Gullar completaria 90 anos nesse mês de setembro. Em Letras e Livros, poemas, artigos e biografia do poeta que fez do verso sua própria tradução.

 

PARTE I – POEMAS ESCOLHIDOS

 

1) Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

De Barulhos (1980-1987)

 

2) Os mortos

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça

De Muitas Vozes (1999)

 

3) Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

De Na Vertigem do Dia (1975-1980)

 

4) Não-coisa

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume…
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa

sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

 

5) Filhos

A meu filho Marcos

Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria
se foram
Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via crianças
já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.

 

6) Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

 

7) No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

 

8) Poema

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos – da – ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó –
dos – andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.

Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

 

9) Homem Comum

Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.

(Brasília, 1963)

 

10)

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

 

11)

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?
Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.

 

12) Um instante

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

 

13) Arte poética

Não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz
e o lume
que tua boca acenda acaso das palavras
– ainda que nascido da morte –
some-se aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
no presente veloz
Nada que se pareça
a pássaro empalhado, múmia
de flor
dentro do livro
e o que da noite volte
volte em chamas
ou em chaga
vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira

 

14) A alegria

O sofrimento não tem
nenhum valor
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).
Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.

 

15)

Poderia dizer

que a vida é bela, e muito,

e que a revolução caminha com pés de flor

nos campos de meu país,

com pés de borracha

nas grandes cidades brasileiras

e que meu coração

é um sol de esperanças entre pulmões

e nuvens

Poderia dizer que meu povo

é uma festa só na voz

de Clara Nunes

no rodar

das cabrochas no Carnaval

da Avenida.

Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue

e samba

enquanto gira inteira a noite

sobre a pátria desigual. A vida

nós a fazemos nossa

alegre e triste, cantando

em meio à fome

e dizendo sim

– em meio à violência e a solidãodizendo

sim –

pelo espanto da beleza

pela flama de Tereza

pelo meu filho perdido

neste vasto continente

por Vianinha ferido

pelo nosso irmão caído

pelo amor e o que ele nega

pelo que dá e que cega

pelo que virá enfim,

não digo que a vida é bela

tampouco me nego a ela:

– digo sim

 

16)

Muitas Vozes

Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.

estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz

se dizes pêra
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açucares
ou
se azul disseres
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas

A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores no capim
o sabor
do hortelã
essa alegria

A boca fria
da moça
o maruim na poça
a hemorragia da manhã

Tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fosseis à fala.

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

 

17)

Os Vivos

Os vivos são vorazes
são glutões ferozes:
até dos mortos comem
carnes e vozes

Se devoram os mortos
devoram os outros vivos:
pelos olhos e sexo
elogio, sorrisos

Os vivos são dotados
de famintas bocas:
devoram o que vêem
o que cheiram e tocam

Os vivos são fornalhas
em sempre operação:
em sua mente e ventre
tudo vira carvão

O mar a pedra a manhã
são ali combustível:
o vivo, voraz, muda
o visível em visível

O mar a pedra a manhã
– que ele queima em seus risos –
viram pele e cabelos
do corpo, que é ele vivo

e onde habita alguém
– seja espírito ou não –
alimentado também
por essa combustão

que tudo vaporiza.

Mas que agora na pele
desta efêmera mão
é afago de brisa.

 

18)

Isso e Aquilo

Você é seu corpo
sua voz seu osso

você é seu cheiro
e o cheiro do outro

o prazer do beijo
você é seu gozo

o que vai morrer
quando o corpo morra

mas também aquela
alegria (verso
melodia)
que intangível, adeja
acima
do que a morte beija.

 

19)

Definição da Moça

Como defini-la
Quando está vestida
Se ela me desbunda
Como se despida?

Como defini-la
Quando está desnuda
Se ela é viagem
Como toda nuvem?

Como desnudá-la
quando está vestida
se está mais despida
do que quando nua?

Como possuí-la
Quando está desnuda
Se ela toda é chuva?
Se ela toda é vulva?

 

20) Extravio

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo a chamar-me.

Extraviei-me no tempo
onde estarão meus pedaços?
muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
Esta manhã, esta sala.

 

21) Infinito Silêncio

Houve
(há)
um enorme silencio
anterior ao nascimento das estrelas

antes da luz

a matéria da matéria

de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga
eternamente

esse silencio
grita sob a nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente.

 

22) Coito

Todos os movimentos do amor  são noturnos mesmo quando praticados à luz do dia Vem de ti o sinal no cheiro ou no tato que faz acordar o bicho      em seu fôsso: na treva, lento,      se desenrola e desliza em direção a teu sorriso Hipnotiza-te com seu guizo  envolve-te em seus anéis corredios beija-te    a boca em flore por baixo   com seu esporão   te fende te fode   e se fundem  no gozo depois desenfia-se de ti a teu lado  na cama recupero minha forma usual. 24) Ocorrência Aí o homem sério entrou e disse: bom dia Aí o outro homem sério respondeu: bom dia Aí a mulher séria respondeu: bom dia Aí a menininha no chão respondeu: bom dia Aí todos riram de uma vez Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores, as paredes, o relógio, a lâmpada, o retrato, os livros, o mata-borrão, os sapatos, as gravatas, as camisas, os lenços

25) Subversiva

A poesia quando chega não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega de qualquer de seus abismos desconhece o Estado e a Sociedade Civil desrespeita o Código de Águas relincha como puta nova em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois reconsidera: beija nos olhos os que ganham mal embala no colo os que têm sede de felicidade e de justiça E promete incendiar o país.

 

26) Reflexão Sobre o Osso da Minha Perna

 

A parte mais durável de mim

são os ossos

e a mais dura também

como, por exemplo, este osso

da perna

que apalpo

sob a macia cobertura

ativa

de carne e pele

que o veste e inteiro

me reveste

dos pés à cabeça

esta vestimenta

fugaz e viva

sim, este osso

a mais dura parte de mim

dura mais do que tudo o que ouço

e penso

mais do que tudo o que invento

e minto

este osso

dito perônio

é, sim,

a parte mais mineral

e obscura

de mim

já que à pele

e à carne

irrigam-nas o sonho e a loucura

têm, creio eu,

algo de transparente

e dócil

tendem a solver-se

a esvanecer-se

para deixar no pó da terra

o osso

o fóssil

futura

peça de museu

o osso

este osso

(a parte de mim

mais dura

e a que mais dura)

é a que menos sou eu?

 

O Poema Sujo de Ferreira Gular
Por Silas Correia Leite

 

O “Poema Sujo” de Ferreira Gullar tem a cara e a coragem tipificada de nosotros embru/tecidos nessa republiqueta Pindorama S/A, de tantos lusonautas (de afrobrasilis a tupidavídicos) como filhos mestiços – e amalgamados – de uma panamérica-latina em closes e fragmentos de matizes. O Poema Sujo tem um olhar entre o sub e o sobre, com consoantes oclusivas, meio mantra-blues, meio fadobanzo, colocando a alma dessa terra que a brisa beija e balança, para depois pescar tristices pegajentas, entre o oráculo do limão e a tez chão de brasilíndios, afrodescendentes e suas pensagens liricamente dolorosas. O Brasil dói. Drummond dizia “Como a vida é forte/ Em suas algemas”. Ferreira Gullar pega a palavra turva pelo coice dela, crava a craca de um plangente tempo – a olho nu (ou ponto de fuga?) – que veio de históricas injustiças a privações desmemoriadas; de escravaturas a reféns dos morros, pondo a sua criação-macadame naquilo que faz ao botar a boca no mundo e gritar lamentos e moendas entre cisternas de uma bruteza que berra. A injustiça é um palavrão. Toda história é remorso, e todo poema é contação, prisma de um olhar. Não acredito em arte que não seja libertação (Bandeira), e Gullar é isso em timbres e tons e tais. Ferreira Gullar com o Poema Sujo põe a nu o pântano das aparências. Poema Sujo é o rosto da um povo, de um tempo, de um lugar. O hino nacional às avessas, dentro de si e acima de todas as coisas e causas. O Poema Sujo de Ferreira Gullar grita o martírio dos infelizes, dos oprimidos, a voz magma do povo, o talo pedrês, a gramática de arame, cacos de espelho e espinhos de cactos, feito um vinho-verbo de cálice transbordantemente tropical, entre as mazelas dos sub-cretinos e os podres poderes palaciais. O Poema Sujo é a dor letral, o horror letral ainda e precisamente nas suas intertextualidades. Rimbaud dizia “O artista é antena de sua época”. Leon Tolstoi dizia “Canta a tua aldeia e serás eterno”. Esse é Ferreira Gullar. Sua identidade-impressão (recolhes de sentidor) é o Poema Sujo. Navalha na acne, a poesia de Gullar tudo aproveita – e tudo em nele se trans/forma – o húmus, a violação da regra-norma; sujeiras e descontentezas, desvairados inutensílios filosofando reflexões em campos minados. O Poema Sujo de Ferreira Gullar é o ponteio poético com as rebarbas de odes xucras, incendiário, portanto, dizendo do mar de sargaços – pátria minha, língua mátria – por isso é um poema Peri/gozo. Ele é em si mesmo um trovador pós-moderno a poetar esse seu trabalho top de linha, um porta-lapsos de palavras, espectros entre escombros – desabandonos e picumãs – alma em transe, veias abertas possíveis. O Poema Sujo de Ferreira Gullar é capa e espada, crime e castigo, campo de lavanda de pesadelos, dedo em riste, consciêncial, barulhando delimites e cifrando horizontes pisados. O Poema Sujo é uma porção-crusoé, uma decantação, com ele macunaímico feito um lázaro entupido de angústia, cirurgicamente pinçando dezelos sociais, todos destramelados nas palavras. O Poema Sujo de Ferreira Gullar registrou seu tempo, pontuou suas dobradiças entre o sujo e o belo, o feio e as cantatas; nas erratas de uma historicidade que gerou desmandos e desmundos. Ferreira Gullar é o pai da palavra que em bateia de granizos cata o que resta da ceifa, como um recolhedor das lágrimas advindas depois da bala perdida, do medo-coragem, da solidão-palhaço; faz de seu versejar uma metralhadora cheia de lágrimas e atira a vida virulenta no ventilador das idéias, com as duras cetras de estrofes em lã de lodo. Ferreira Gullar peca, sabe o que é um pé no sacro, mas, figura o seu estado letral como se uma agonia; sobe e desce memórias revisitadas, destila os pedaços de frutas secas e põe vida e viço lírico na dor, na morte, na reconstrução das seqüelas, meio pan-neodadaísta (neoconcreto?). O Poema Sujo de Ferreira Gullar deveria ter uma tarja preta? Ou estar escrito por sobre, cuidado, é humano? Domenico Mais dizia que a criatividade é impertinente. Ferreira Gullar quando escreve faz uma confissão-endereço. Nietsche dizia que a arquitetura correspondente à natureza da alma humana, era um labirinto. Pois ele coloca os pingos nos jotas. O corpo-poema, Poema Sujo de Ferreira Gullar e sua capacidade de se expressar, é uma catedral-poema com todas as suas cruzes-lágrimas, dores coletivas, impunidades generalizadas. O Poema Sujo entre o muro e o turvo, a palo seco, era todo um universo mal cabido em si, mas afinado em si, tocado no ser de si, por isso poema longo, grosso como açúcar seco, entre onomatopéias e jogos de palavras, Palavras punhais. Sal grosso. Incêndios. Ferreira Gullar do Poema Sujo tirou sangue-e-vida-(e luz?) de trevas. Se o poeta é um mundo encerrado no homem (Victor Hugo), o Poema Sujo de Ferreira Gullar é um homem libertado no poema mais visceral e por isso mesmo contundente, verdadeiro, dolorosamente verdadeiro. Garimpeiro, ourives, esse é Ferreira Gullar. Idéias e palavras. Poema como um organismo vivo. O Poema Sujo de Ferreira Gullar é um dos melhores poemas escritos em “língua brasileira”.

 

Poema Sujo ( excerto)

” Mas na cidade havia

muita luz,

a vida

fazia rodar o século nas nuvens

sobre nossa varanda

por cima de mim e das galinhas no quintal

por cima

do depósito onde mofavam

paneiros de farinha

atrás da quitanda,

e era pouco

viver, mesmo

no salão de bilhar, mesmo

no botequim do Castro, na pensão

da Maroca nas noites de sábado, era pouco

banhar-se e descer a pé

para a cidade de tarde

(sob o rumor das árvores)

ali

no norte do Brasil

vestido de brim.

E por ser pouco

era muito,

que pouco muito era o verde

fogo da grama, o musgo do muro, o galo

que vai morrer,

a louça na cristaleira,

o doce na compoteira, a falta

de afeto, a busca

do amor nas coisas.

Não nas pessoas:

nas coisas, na muda carne

das coisas, na cona da flor, no oculto

falar das águas sozinhas:

que a vida

passava por sobre nós,

de avião.

Não tem a mesma velocidade o domingo

que a sexta-feira com seu azáfama de compras

fazendo aumentar o tráfego e o consumo

de caldo de cana gelado,

nem tem

a mesma velocidade

a açucena e a maré

com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas

a penetrar soturnamente o rio

noutra lentidão que a do crepúsculo

que, no alto,

com sua grande engrenagem escangalhada

moia a luz.

Outra velocidade

tem Bizuza sentada no chão do quarto

a dobrar os lençóis lavados e passados

a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como

se a vida fosse eterna.

E era

naquele seu universo de almoços e temperos

de folhas de louro e de pimenta-do-reino

mastruz para tosse braba,

universo

de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha

dentro de um surrado vestido de chita,

enfim,

onde batia o seu pequenino coração.

E se não era

eterna a vida, dentro e fora do armário,

o certo é que

tendo cada coisa uma velocidade

(a do melado

escura, clara

a da água

a derramar-se)

cada coisa se afastava

desigualmente

de sua possível eternidade.

Ou

se se quer

desigualmente

a tecia

na sua própria carne escura ou clara

num transcorrer mais profundo que o da semana.

Por isso não é certo dize

que é no domingo que melhor se vê

a cidade

– as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia

as janelas trançadas no silêncio –

quando ela

parada

parece flutuar.

E que melhor se vê uma cidade

quando – como Alcântara

todos os habitantes se foram

e nada resta deles (sequer

um espelho de aparador num daqueles

aposentos sem teto) – se não

entre as ruínas

a persistente certeza de que

naquele chão

onde agora crescem carrapichos

eles efetivamente dançaram

(e quase se ouvem vozes

e gargalhadas

que se acendem e apagam nas dobras da brisa)

Mas

se é espantoso pensar

como tanta coisa sumiu, tantos

guarda-roupas e camas e mucamas

tantas e tantas saias, anáguas,

sapatos dos mais variados modelos

arrastados pelo ar junto com as nuvens,

a isso

responde a manhã

que

com suas muitas e azuis velocidades

segue em frente

alegre e sem memória

É impossível dizer

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

a cada instante

(sem falar nos mortos

que voam para trás)

ou mesmo uma casa

onde a velocidade da cozinha

não é igual à da sala (aparentemente imóvel

nos seus jarros e bibelôs de porcelana)

nem à do quintal

escancarado às ventanias da época

e que dizer das ruas

de tráfego intenso e da circulação do dinheiro

e das mercadorias

desigual segundo o bairro e a classe, e da

rotação do capital

mais lenta nos legumes

mais rápida no setor industrial, e

da rotação do sono

sob a pele,

do sonho

nos cabelos?

e as tantas situações da água nas vasilhas

(pronta a fugir)

a rotação

da mão que busca entre os pentelhos

o sonho molhado os muitos lábios

do corpo

que ao afago se abre em rosa, a mão

que ali se detém a sujar-se

de cheiros de mulher,

e a rotação

dos cheiros outros

que na quinta se fabricam

junto com a resina das árvores e o canto

dos passarinhos?

Que dizer da circulação

da luz solar

arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa

entre sapatos?

e da circulação

dos gatos pela casa

dos pombos pela brisa?

e cada um desses fatos numa velocidade própria

sem falar na própria velocidade

que em cada coisa há

como os muitos

sistemas de açúcar e álcool numa pêra

girando

todos em diferentes ritmos

(que quase

se pode ouvir)

e compondo a velocidade geral

que a pêra é

do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas

compõem

(nosso rosto refletido na água do tanque)

o dia

que passa

– ou passou –

na cidade de São Luís.

E do mesmo modo

que há muitas velocidades num

só dia

e nesse mesmo dia muitos dias

assim

não se pode também dizer que o dia

tem um único centro

(feito um caroço

ou um sol)

porque na verdade um dia

tem inumeráveis centros

como, por exemplo, o pote de água

na sala de jantar

ou na cozinha

em tomo do qual

desordenadamente giram os membros da famflia.

E se nesse caso

é a sede a força de gravitação

outras funções metabólicas

outros centros geram

como a sentina

a cama

ou a mesa de jantar

(sob uma luz encardida numa

porta-e-janela da Rua da Alegria

na época da guerra)

sem falar nos centros cívicos, nos centros

espíritas, no Centro Cultural

Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,

colégios, igrejas e prostíbulos,

outros tantos centros do sistema

em que o dia se move

(sempre em velocidades diferentes)

sem sair do lugar.

Porque

quando todos esses sóis se apagam

resta a cidade vazia

(como Alcântara)

no mesmo lugar.

Porque

diferentemente do sistema solar

a esses sistemas

não os sustém o sol e sim

os corpos

que em tomo dele giram:

não os sustém a mesa

mas a fome

não os sustém a cama

e sim o sono

não os sustém o banco

e sim o trabalho não pago

E essa é a razão por que

quando as pessoas se vão

(como em Alcântara)

apagam-se os sóis (os

potes, os fogões)

que delas recebiam o calor

essa é a razão

por que em São Luís

donde as pessoas não se foram

ainda neste momento a cidade se move

em seus muitos sistemas

e velocidades

pois quando um pote se quebra

outro pote se faz

outra cama se faz

outra jarra se faz

outro homem

se faz

para que não se extinga

o fogo

na cozinha da casa

O que eles falavam na cozinha

ou no alpendre do sobrado

(na Rua do Sol)

saía pelas janelas

se ouvia nos quartos de baixo

na casa vizinha, nos fundos da Movelaria

(e vá alguém saber

quanta coisa se fala numa cidade

quantas vozes

resvalam por esse intrincado labirinto

de paredes e quartos e saguões,

de banheiros, de pátios, de quintais

vozes

entre muros e plantas,

risos,

que duram um segundo e se apagam)

E são coisas vivas as palavras

e vibram da alegria dó corpo que as gritou

têm mesmo o seu perfume, o gosto

da carne

que nunca se entrega realmente

nem na cama

senão a si mesma

à sua própria vertigem

ou assim falando ou rindo

no ambiente familiar

enquanto como um rato

tu podes ouvir e ver

de teu buraco

como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio

na armação de ferro onde seca uma parreira

entre arames

de tarde

numa pequena cidade latino-americana.

E nelas há

uma iluminação mortal

que é da boca

em qualquer tempo

mas que ali

na nossa casa

entre móveis baratos

e nenhuma dignidade especial

minava a própria existência.

Ríamos, é certo,

em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas

de hortelã enroladas em papel de seda colorido,

ríamos, sim,

mas

era como se nenhum afeto valesse

como se não tivesse sentido rir

numa cidade tão pequena.

O homem está na cidade

como uma coisa está em outra

e a cidade está no homem

que está em outra cidade

mas variados são os modos

como uma coisa

está em outra coisa:

o homem, por exemplo, não está na cidade

como uma árvore está

em qualquer outra

nem como uma árvore

está em qualquer uma de suas folhas

(mesmo rolando longe dela)

O homem não está na cidade

como uma árvore está num livro

quando um vento ali a folheia

a cidade está no homem

mas não da mesma maneira

que um pássaro está numa árvore

não da mesma maneira que um pássaro

(a imagem dele)

estava na água

e nem da mesma maneira

que o susto do pássaro

está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem

quase como a árvore voa

no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra

de sua própria maneira

e de maneira distinta

de como está em si mesma

a cidade não está no homem

do mesmo modo que em sua

quitandas praças e ruas

Buenos Aires, mai/out/1975

 

PARTE II

90 anos de Ferreira Gullar

10 de Setembro de 2020 às 09:41

Por Maria Amélia Mello, editora e amiga de Ferreira Gullar. Texto publicado na íntegra em 2017 no Jornal Folha de S.Paulo.

José de Ribamar e Ferreira Gullar se entenderam bem ao longo de 86 anos e, apesar de eventuais desencontros, tinham a nítida convicção de dividir seus espaços na vida e na criação. Jornalista, locutor, crítico de arte, contista, biógrafo, tradutor, ensaísta, cronista, dramaturgo, autor de livros infantis, artista plástico. Sua obra foi traduzida para várias línguas: inglês, espanhol, holandês, francês, alemão, italiano, sueco. Recebeu muitos prêmios e destacou-se entre os melhores. Ele foi tudo isso e muito mais. Para mim, foi o mais plural e singullar amigo que tive. Não se parecia mesmo com ninguém, aquele homem magro, estatura mediana, pesando em torno de 50 quilos, cabelos lisos, dedos longos e finos, passo apressado, decidido até o fim. Aprendi a gostar dos dois.

Gullar andava por Copacabana, onde morou por muito tempo, num hoje conhecido prédio de número 49, ia ao supermercado, pagava contas, carregava suas próprias sacolas. Passeava a beira-mar. Acordava por volta das seis, organizava a refeição matinal, cumpria as obrigações cotidianas, mas estava sempre refletindo, atento ao que o cercava. Era um entre tantos, mas era ele, com a sua singullaridade. Mesmo sem saber, ou querer, deixava uma presença por onde passava. As pessoas olhavam para trás, para vê-lo novamente, o acompanhavam com os olhos, paravam para cumprimentá-lo, acenavam na suposta intimidade da vizinhança. Não passava incógnito e essa demonstração explícita – por que não, invasiva? – não o incomodava. Sorria, balançava a cabeça, distraía-se. Em um de seus poemas, expressa: “apenas um homem comum”. Lá vai o poeta.

Um dia, percorrendo as calçadas incertas do bairro, deu de cara com um morador de rua, chutando freneticamente um carro estropiado e abandonado, na esquina de sua casa. Ao vê-lo, o rapaz estancou de repente os movimentos repetidos, afrouxou a raiva e encarou aquele homem indefeso, ali na sua frente. O poeta parou para entender o que acontecia e, acuado, já se imaginou apanhando, sem a menor possibilidade de fuga. Para surpresa, o prenúncio da violência se dissolveu no gesto do agressor, que de braços levantados, gritava exaltado: “Ferreira Gullar, Ferreira Gullar, tão famoso e eu não sei quem é”.

Quando perguntado se era o poeta Ferreira Gullar, costumava responder, com ironia, mas deixando escapar uma verdade camuflada: “Às vezes”. É isso mesmo, não se pode ser poeta 24 horas por dia, em permanente ebulição e delírio. Quem aguentaria? Mas, com certeza, experimentar, dia e noite, estado de criação latente, percorria aquele corpo frágil.

Fui sua editora por muitos anos e nosso diálogo profissional era integrado. Uma sugestão, uma ideia, um projeto era bem recebido. Sim ou não, faço ou não faço, a resposta tinha rumo certo. Algumas vezes, na ansiedade de ter, pronto, o livro inédito, eu não resistia e perguntava, assim entre um feixe de palavras descompromissadas. A resposta chegava direta: “O livro só fica pronto, quando está pronto”. Era a nossa senha para não mais indagar. Em uma ocasião, dando uma entrevista a um jornal de São Paulo, o repórter quis saber do livro em andamento. No laço, fazendo graça e referência a mim, sem, contudo, me citar, dispara um “nem fala nisso, senão minha editora vai logo me cobrar”.

Num setembro distante – em 1999 – partimos em caravana de amigos e jornalistas para o Maranhão, a única viagem de avião que fizemos juntos. Não é segredo para ninguém que Gullar não gostava de voar. Tinha medo, sejamos francos. Em São Luís, fomos guiados, por ele, a percorrer as ruas, espreitar seu passado mais remoto, num passeio único pelas memórias do José de Ribamar, que lá viveu por vinte anos, e mais, pelo senso poético de Ferreira Gullar, que deu – e dela extraiu – poesia aos cantos da cidade, seus becos, passagens. Pensei comigo mesma: era como se ele escrevesse, em voz alta, as muitas vozes do Poema sujo, matriz e raiz de sua existência, sua infância, seus pais e irmãos. A sua fala estava impregnada de poesia e lembranças. Foi uma sorte andar por aqueles lugares e ver revelado um mistério que só um (ex-) morador sensível faz vir à tona. Na minha imaginação, surgia o menino que corria solto pelas ruas de São Luís dos anos 30, que partia de trem levado pelo pai e não pude deixar de cantar baixinho “lá vai o trem com o menino/lá vai a vida a rodar/lá vai ciranda e destino/cidade e noite a girar /lá vai o trem sem destino/pro dia novo encontrar…” Numa manhã, no restaurante do hotel, tomamos, sozinhos, café, que a foto me faz recordar. Conversamos e rimos muito. Estava um céu luminoso, de claridade típica de São Luís, em vertigem, aquela luz impressa, incontáveis vezes, nas páginas de seus livros. Naquele setembro, há alguns anos, Gullar estava contente, recebendo as homenagens do lugar onde nascera, inaugurando uma avenida com seu nome, colhendo o que frutificou em poesias.

Ano após ano, comemorávamos seu aniversário e ele gostava do carinho, da atenção dos amigos. Estávamos todos lá, reunidos naquela cobertura de Ipanema, para abraçá-lo. Em 2016, no entanto, não foi assim. Passamos na casa dele, sentados, informalmente, em volta da mesma mesa onde ele punha em prática suas ideias. E ali comemos pizza, tomamos vinho (Gullar comia e bebia muito pouco), em família. Numa perfeita sintonia entre viver e criar, José de Ribamar e Ferreira Gullar, juntos. Era uma noite de sábado, como outros sábados na rotina dos cariocas, de temperatura amena, com a chuva mansa amortecendo o calor. A reunião, animada, era para aquele homem, que completava 86 anos, sentado na cabeceira e que estava feliz. O que ninguém poderia supor é que seria seu último setembro.

Relembro, aqui, meu amigo de tantos anos. Procuro afastar a emoção esgarçada, armadilha emotiva, alheia da cumplicidade que a amizade abastece. Ele ensinou, a mim e a todos nós, muito da vida e da arte e, mais que tudo, alegrou a nossa convivência com generosidade, talento e inteligência. Falávamos quase todos os dias, mesmo sem um assunto para tocar a conversa. Às vezes, era um tema que estava em pauta – além de sua editora, colaborei na organização de seu cotidiano literário, por muito tempo – ou algum comentário sobre a política nacional, um escândalo substituído por outro, as arbitrariedades. Ele era um ser social, crítico, muitas vezes controverso, mas fiel a suas convicções, registradas em crônicas semanais. Na política ou na arte. Ele foi a grande personalidade da poesia brasileira da segunda metade do século 20, figura incansável na defesa da liberdade, as muitas vozes que ressoam em seus poemas.

A nossa última reunião de trabalho foi na editora Autêntica, no Rio, no início de outubro. Ele foi me visitar, vindo da Academia, ali perto, para tomarmos um café e seguirmos para o lançamento da edição comemorativa dos quarenta anos do Poema sujo, agora pela Companhia das Letras. No finalzinho da tarde, fomos a pé até a livraria Da Vinci, na Avenida Rio Branco. Ele ia rápido, como era seu jeito, e detestava chegar atrasado. Chegamos antes, bem antes. Mas, comento isso para dizer que ele estava firme, nada ofegante (uma complicação pulmonar levou meu amigo) e não havia nele indício algum de doença. Ao contrário, tive que pedir que ele diminuísse o passo, que eu não estava conseguindo acompanhar o seu ritmo por causa da minha bolsa a tiracolo, pesada, com livros e papéis. Após o evento, voltamos juntos, ele me deu carona até a minha casa, em Botafogo, e continuou para Copacabana. Durante o trajeto, conversamos sobre uma possível biografia, e ele, apesar de animado, confessou que estava cansado. “É muita coisa, você sabe”.

Editei seu último livro inédito – Autobiografia poética e outros textos – que ele me confiou, quando assumi a editoria literária da Autêntica. Lançamos na Travessa do Leblon, em setembro de 2015, com um debate intermediado pelo jornalista Geneton Moraes Neto, nosso amigo comum, que também perdemos em 2016. O volume despertou muitas matérias e resenhas, mas a melhor opinião que recebi, foi de sua filha, Luciana: “Isto não é um livro, é uma declaração de amor ao meu pai”. O comentário nunca me saiu da cabeça. No fundo, editar é um ato de amor, de dedicação e cumplicidade. Quando o livro ficou pronto, levei um exemplar para ele e vi que tinha gostado do resultado. Folheou, sorriu  e, de maneira econômica, disse em tom afetivo: “Muito bonito”.

Fui vê-lo na Casa de Saúde e ele estava falante, sem transparecer desânimo. Parecia o Gullar de sempre. Mas, conhecendo seu temperamento, embora ele não se queixasse, percebi que aqueles dias deveriam ser intermináveis para ele. Queria voltar para casa, mergulhar no cotidiano, preocupado com os afazeres, a Gatinha. Estava, enfim, desassossegado com a ordem hospitalar, o entra e sai de enfermeiros, os remédios, tudo aquilo que a medicina classifica como procedimentos. Negou-se a prolongar o sofrimento, mas não ao sonho, quando pediu que a filha o levasse para o mar de Ipanema. Ainda no leito ditou, para a neta Celeste, a crônica – Arte do futuro –, confirmando a paixão de toda uma vida, que seria publicada no domingo seguinte à sua morte.

Esteve lúcido até o coração deixar de pulsar. Inteiro Gullar.

Fonte https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/90-anos-de-Ferreira-Gullar

 

PARTE III – BIOBIBLIOGRAFIA

 

1930 – No dia 10 de setembro, nasce o poeta Ferreira Gullar, em São Luís, Maranhão. Seu nome, na verdade, é José Ribamar Ferreira, o quarto dos 11 filhos de Alzira Ribeiro Goulart e do comerciante Newton Ferreira.

1943 – Apaixonado por uma menina, Gullar, que tinha o apelido de “Periquito”, decide abrir mão de seus dois grandes amigos, “Esmagado” e “Espírito da Garagem da Bosta”, e ficar recluso dentro de casa lendo e escrevendo poemas.

1945 – Uma redação sobre o Dia do Trabalho obtém nota nove e a professora diz que só não deu dez porque havia dois erros de português. O menino Gullar acha que descobriu sua vocação e decide estudar português para se tornar escritor. Durante dois anos, só lerá gramáticas. Esta mesma redação será o ponto de partida para o soneto “O trabalho”, o primeiro poema de Gullar publicado em jornal.

1948 – Gullar colabora no suplemento literário do “Diário de São Luís”.

1949 – “Um pouco acima do chão”, seu primeiro livro, é publicado com o apoio do Centro Cultural Gonçalves Dias e com recursos próprios. Mais tarde ele excluiria essa obra da sua bibliografia.

1950 – Gullar vê a polícia matar um operário num comício. Locutor da Rádio Timbira, que era do governo estadual, Gullar nega-se a ler em seu programa uma nota oficial que apontava os comunistas como responsáveis pelo crime. Acaba sendo demitido. No mesmo ano, seu poema “O galo” vence um concurso do “Jornal de letras”, cuja comissão julgadora era composta por Manuel Bandeira, Odylo Costa, filho e Willy Lewin.

1951 – Transfere-se para o Rio, adoece de tuberculose, cura-se e passa a trabalhar na revista do Instituto de Aposentadoria dos Comerciários. Torna-se amigo de Mário Pedrosa e dos jovens pintores da época. Começa a escrever sobre arte. Trabalha como revisor de textos na revista “O Cruzeiro”.

1954 – Lançado o livro de poemas “A luta corporal”, que vinha sendo escrito desde 1950. Seu projeto gráfico inovador rende a Gullar um desentendimento com os tipógrafos. Depois de lerem o livro, os poetas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que viriam a criar o concretismo, decidem conhecê-lo. Gullar vai trabalhar como revisor (e depois redator) na revista “Manchete” e casa-se com a atriz Thereza Aragão, com quem teria os filhos Luciana, Paulo e Marcos.

1955 – Depois de trabalhar como redator no “Diário Carioca”, Gullar integra a equipe que elabora o “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil” e deflagra a renovação do próprio jornal.

1956 – Em dezembro, Gullar participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta, aberta no Museu de Arte Moderna de São Paulo e montada depois no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.

1957 – Por discordar do artigo “Da psicologia da composição à matemática da composição”, escrito pelo grupo concretista de São Paulo, Gullar rompe com o movimento.

1958 – Lança o livro “Poemas”.

1959 – Gullar escreve o “Manifesto neoconcreto” e a “Teoria do não-objeto”, que imprimem um novo rumo à vanguarda brasileira. O manifesto, publicado por ocasião da I Exposição Neoconcreta, foi assinado também por Amílcar de Castro, Aluísio Carvão, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lígia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis.

1961 – Nomeado diretor da Fundação Cultural de Brasília, Gullar começa a ver com outros olhos o experimentalismo que até então marcava sua obra. Começa a construir o Museu de Arte Popular e abandona a vanguarda. Sai da fundação em outubro.

1962 – Ao ingressar no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), Gullar assume um trabalho mais engajado politicamente, publicando cordéis inclusive. Trabalha como redator na sucursal carioca de “O Estado de São Paulo”, jornal ao qual estaria ligado por quase 30 anos.

1963 – É eleito presidente do CPC.

1964 – Filia-se no dia do golpe militar, 1º de abril, ao Partido Comunista, e a primeira edição de seu ensaio “Cultura posta em questão”, publicada no ano anterior, é queimada por militares dentro da sede da UNE. Funda o Grupo Opinião ao lado de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Armando Costa, Thereza Aragão, João das Neves, Denoy de Oliveira e Pichin Pla.

1966 -Escrita em parceria com Oduvaldo Vianna Filho, a peça “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” é encenada no Rio pelo Grupo Opinião e ganha o Molière, o Saci e outros prêmios.

1967 – O Opinião encena outro texto de Gullar, este feito em parceria com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa: “A saída? Onde fica a saída?”

1968 – Sua peça “Dr. Getúlio, sua vida e sua glória”, escrita com Dias Gomes, é montada pelo Opinião no Rio. Em dezembro é assinado o Ato Institucional nº 5 e Gullar é preso.

1971 – Seu pai morre em São Luís. Após um longo período vivendo na clandestinidade, Gullar parte para o exílio, primeiro em Moscou e depois em Santiago, Lima e Buenos Aires. Enquanto mora fora do país, colabora para “O Pasquim”, “Opinião” e outros jornais usando o pseudônimo de Frederico Marques.

1974 – É absolvido pelo Supremo Tribunal Federal da acusação de pertencer ao Comitê Cultural do Partido Comunista Brasileiro.

1975 – É lançado no Brasil “Dentro da noite veloz”, poemas escritos nos últimos 13 anos. Vinicius de Moraes traz de Buenos Aires uma fita cassete em que Gullar diz seu “Poema sujo”, e cópias dela passam a ser ouvidas no Rio em audições privadas.

1976 – A editora Civilização Brasileira finalmente publica “Poema sujo”, lançado no Rio sem a presença de Gullar. Artistas e intelectuais tentam obter dos militares garantias para que ele possa voltar ao Brasil.

1977 – No dia 10 de março, Gullar volta ao Brasil, mas é preso no dia seguinte pelo Departamento de Polícia Política e Social (ex-Dops), onde é interrogado durante 72 horas e ouve a ameaça de que seu filho Paulo (então em tratamento psiquiátrico) pode ser seqüestrado. Graças ao esforço de amigos, consegue ser libertado e, aos poucos, retoma o trabalho no país. Pela primeira vez, um livro seu é traduzido para outro idioma: “La lucha corporal y otros incendios” é publicado em Caracas.

1979 – Grava o disco “Antologia poética de Ferreira Gullar” pela Som Livre. Estréia “Um rubi no umbigo”, primeira peça que escreve individualmente, e começa a trabalhar no núcleo de teledramaturgia da Rede Globo. Ganha o prêmio Personalidade Literária do Ano, da Câmara Brasileira do Livro.

1980 – Saem os livros “Na vertigem do dia”, de novos poemas, e “Toda poesia”, reunindo toda a sua obra para marcar seus 50 anos. “Poema Sujo” é adaptado para o teatro.

1985 – Gullar ganha o prêmio Molière pela sua tradução de “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand.

1987 – Lança o livro de poemas “Barulhos”.

1988 – Sai o livro de ensaios “Indagações de hoje”.

1990 – Lança seu único livro de crônicas, “A estranha vida banal”. Morre Marcos, seu filho mais novo.

1992 – Nomeado pelo presidente Itamar Franco diretor do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (Ibac), Gullar, que permaneceria no cargo até 1995, devolve à instituição seu antigo nome, Funarte.

1993 – Provoca polêmica com o livro “Argumentação contra a morte da arte”, em que ataca as vanguardas. Morre Thereza Aragão, esposa de Gullar.

1994 – Durante a Feira do Livro de Frankfurt, conhece a poetisa Cláudia Ahimsa, sua atual companheira.

1997 – Gullar publica “Cidades inventadas”, ficção.

1998 – Publica “Rabo de foguete – Os anos de exílio”, livro de memórias, e é homenageado no 29º Festival Internacional de Poesia de Roterdã, na Holanda.

1999 – Lança o livro “Muitas vozes” e ganha o Prêmio Jabuti na categoria poesia. Obtém também o Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Biblioteca Nacional.

2000 – A exposição “Ferreira Gullar 70 anos” é aberta em setembro no Museu de Arte Moderna do Rio para marcar o aniversário do poeta. A editora José Olympio lança a nona edição de “Toda poesia”, reunião atualizada de todos os poemas de Gullar. Ele recebe o prêmio Multicultural 2000, do jornal “O Estado de São Paulo”. No final do ano, lança “Um gato chamado Gatinho “, 17 poemas sobre seu felino escritos para crianças.

2001 – É publicado na coleção Perfis do Rio “Ferreira Gullar – Entre o espanto e o poema”, de George Moura. A editora Ática reúne crônicas escritas para o “Jornal do Brasil” nos anos 60 no livro “O menino e o arco-íris”. A editora Global lança numa coleção infanto-juvenil “O rei que mora no mar”, poema dos anos 60 de Gullar.

2002 – Nove professores titulares de universidades de Brasil, Portugal e Estados Unidos indicam Ferreira Gullar ao Prêmio Nobel de Literatura. São relançados num só livro, pela editora José Olympio, os ensaios dos anos 60 “Cultura posta em questão” e “Vanguarda e subdesenvolvimento”. Em dezembro o poeta recebe o Prêmio Príncipe Claus, da Holanda, dado a artistas, escritores e instituições culturais de fora da Europa que tenham contribuído para mudar a sociedade, a arte ou a visão cultural de seu país.

2003 – Lança pela Cosac & Naify “Relâmpagos”, reunindo 49 textos curtos sobre artes, abordando obras de Michelangelo, Renoir, Picasso, Calder, Iberê Camargo e muitos outros. Suas traduções e adaptações de “Don Quixote de la Mancha” e “As mil e uma noites” são premiadas, respectivamente, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e pela International Board on Books for Young People.

2004 – Passa a assinar uma coluna semanal de crônicas no caderno Ilustrada, na Folha de São Paulo. Eleito o “Homem de Idéias” do ano pelo Jornal do Brasil.

2005 – É o ganhador de dois importantes prêmios, o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Ciência e Cultura, na categoria Literatura, e o Prêmio Machado de Assis, a maior honraria da Academia Brasileira de Letras, ambos pelo conjunto da obra. O primeiro oferece R$ 100 mil e o segundo, R$ 75 mil. Publica Dr. Urubu e outras fábulas, livro de poemas para crianças, pela José Olympio, e Melhores crônicas, pela Global Editora, com seleção e prefácio de Augusto Sérgio Bastos.

Últimos Anos

No dia 9 de outubro de 2014, Ferreira Gullar foi eleito para a cadeira n.º 37 da Academia Brasileira de Letras. Em dezembro desse mesmo ano realizou a exposição “A Revelação do Avesso” onde apresentou 30 quadros feitos a partir de colagens com papel colorido, que foram produzidas como passatempo. A mostra foi acompanhada por um livro com fotos da coleção completa e também com poemas do autor.

Ferreira Gullar faleceu no Rio de Janeiro, no dia 4 de dezembro de 2016.

Obras de Ferreira Gullar

Um Pouco Acima do Chão, poesia, 1949

A Luta Corporal, poesia, 1954

Teoria do Não-Objeto, ensaio, 1959

João Boa-Morte, Cabra Marcado pra Morrer, poesia, 1962

Quem Matou Aparecida?, poesia, 1962

Cultura Posta em Questão, ensaio, 1964

Se Corre o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, teatro, 1966

A Saída? Onde Fica a Saída?, teatro, 1967

Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória, teatro, 1968

Por Você, Por Mim, poesia, 1968

Vanguarda e Subdesenvolvimento, ensaio, 1969

Dentro da Noite Veloz, poesia, 1975

A Luta Corporal e Novos Poemas, poesia, 1976

Poema Sujo, poesia, 1976

Antologia Poética, poesia, 1977

Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina, ensaio, 1977

A Vertigem do Dia, poesia, 1980

Sobre Arte, ensaio, 1983

Barulhos, poesia, 1987

Poemas Escolhidos, 1989

Indagação de Hoje, ensaio, 1989

O Formigueiro, poesia, 1991

Argumentação Contra a Morte da Arte, ensaio, 1993

Rabo de Foguete-Os Anos no Exílio, memórias, 1998

Muitas Vozes, poesia, 1999

Rembrandt, ensaio, 2002

Relâmpagos, ensaio, 2003

Um Gato Chamado Gatinho, poesia, 2005

Resmungos, poesia, 2007

Em Alguma Parte Alguma, poesia, 2010

Autobiografia Poética e Outros Textos, 2016

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