Esaú e Jacó: o olhar crítico de Machado sobre a realidade que perdura até os dias de hoje.
Por Carlos Russo Jr.
O Bruxo do Cosme Velho ao final do século XIX, já pressente que o Brasil é uma sociedade sem rumos, sem objetivos claros e correndo para a desintegração social.
A narrativa principia em 1871 e se estenderá até 1894, perpassando o esfacelamento do regime imperial, o golpe de estado que implanta a República, o golpe dentro do golpe dado por Floriano Peixoto.
“Esaú e Jacó” foi publicado em 1904. O mais extraordinário trabalho de Machado de Assis é repleto de enigmas, segundos sentidos e injunções históricas. O autor logo avisa: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava ou parecia estar escondida.”
O romance começa em 1871 (ano da Lei do Ventre Livre), com uma grávida, cujo nome sugestivo é Natividade, esposa de um banqueiro, Santos, que fizera fortuna no boom do café. Ela sobe o Morro do Castelo, local onde a cidade do Rio foi fundada em 1557, a fim de consultar uma “vidente”, a cabocla “Bárbara”, a respeito do destino dos gêmeos que carrega no ventre.
A narrativa se estenderá até 1894, perpassando o esfacelamento do regime imperial, o golpe de estado que implanta a República, o golpe dentro do golpe dado por Floriano Peixoto.
Era nosso país navegando de revolta em revolta sob as botas militares e repressão e assassinatos perpetrados pelo grupo de turno no poder.
O nível de alegorias sobre este período conturbado de nossa História que a narrativa propicia, é precioso! Somente uma pequena fração delas será contemplada neste nosso ensaio.
A narrativa, em parte, se desenrola desde o ponto de vista do Conselheiro Aires, um diplomata aposentado. Este personagem que também encontraremos no “Memorial de Aires”, é o retrato da camada mais preparada da elite brasileira: inteligente, calculista que, acima de tudo, evita o conflito dentro da própria como classe dominante. Aires adota sempre a postura de não confrontar-se em momento algum. Como decorrência, o narrador é volúvel nas opiniões e apegado às aparências de um intelectualismo liberal, sendo parceiro fiel do atraso no seio da sociedade escravocrata e exclusivista. Assim tem sido desde sempre as elites econômicas no Brasil. Afinal, “não é a ocasião que faz o ladrão, o provérbio está errado. A ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito”.
A Proclamação da República propriamente dita é explicitada claramente no episódio da tabuleta de uma confeitaria. O português Custódio, proprietário doceiro, é vizinho de Aires. No diálogo a respeito da tabuleta, entre ironias e metáforas, a opinião do genial autor sobre a quartelada de 15 de Novembro é expressa.
Custódio, depois de muita relutância, mandara repintar a tabuleta que levava o nome de sua loja: “Confeitaria do Império”. O pintor o avisa que “a tábua está velha e precisa outra, pois está rachada e comida de bichos”. A alusão à Monarquia é óbvia: um regime decadente, comprometido e sem sustentação, que não suporta mais nem uma reforma e tem que mudar.
O proprietário encomenda, então, uma nova tabuleta justamente no dia 15 de Novembro. Custódio manda urgente um bilhete para o pintor com o seguinte recado: “Pare a pintura no d.” Não sabia se era melhor concluir a mesma com a palavra “do Império” ou “da República”, afinal, para que lado iria o barco?
A indecisão de Custódio apenas quanto ao nome é sintomática do país em que algo sempre muda para que se mantenha, na essência, tudo como estava. O Conselheiro o “aconselha” que escreva um nome neutro, serviria a uns e outros.
Machado de Assis, assim, compara a proclamação da República a uma simples troca de tabuletas, uma mudança de nomes. República e Império se equivalem como rótulos de fachada.
Um fator significativo a ressaltar é a maneira como, explorando as divergências políticas dentro da elite, ele nos transmite o sentido de que elas seriam apenas aparentes. As contradições reais estariam entre a elite e as outras classes sociais. Machado o realiza com o trato estético da questão no dualismo dos gêmeos falsamente contraditórios, o que não passa de aparências.
A referência bíblica que empresta seu nome à obra “Esaú e Jacó”, nos traz gêmeos que brigam desde sua permanência no útero e que lutarão toda uma vida pelo reconhecimento materno-paterno e, principalmente, pela herança.
“O que o berço dá só a cova tira, diz um velho adágio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever: ‘Dico, che quando l’anima mal nata…’” Estaria Machado nos falando da herança cultural da elite, transmitida desde o berço?
No romance Pedro, um dos gêmeos, advém de São Pedro, que na tradição bíblica se vincula ao conservadorismo; ele faz medicina, carreira que figura como conservadora na literatura da época e é um defensor da Monarquia. Paulo, o outro, remonta a São Paulo, faz direito, carreira tida como liberal e defende a mudança do regime para a República.
Mas, assinala Aires, os gêmeos se definem politicamente por razões triviais. “Não eram propriamente opiniões; não tinham raízes, nem grandes e nem pequenas”.
Com a proclamação da República, pressupõe-se que Pedro, sempre a favor da Monarquia, se tornaria um crítico do novo regime, e que Paulo passaria a defendê-lo. Mas não é o que ocorre. Por isso, ao invés de caracterizá-los meramente como conservador e liberal, podemos usar as expressões situacionista e oposicionista, ou seja, os gêmeos não são idênticos apenas na aparência, a ponto de Flora (uma paixão de ambos) mal distingui-los; a elite brasileira tem sempre a mesma essência, apenas com revestimentos e discursos distintos.
O olhar crítico de Machado está aí: no Brasil não se consegue perceber a diferença entre monarquistas e republicanos — diferentes no discurso, mas semelhantes nas práticas políticas.
República ou Monarquia, a disputa entre ambas se transforma em mera questão partidária, de interesse de grupos políticos que são diferentes na aparência e representam, ao alternarem-se, mera troca de mãos alçadas ao poder.
Falava Aires referindo-se aos políticos: “Não é a ocasião que faz o ladrão, o provérbio está errado. A ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito”.
Natividade, esposa do banqueiro e futuro barão Santos, está grávida de gêmeos e decide, como tantas madames, visitar incógnita uma cabocla tida como “vidente”. A questão apresentada, ainda que de forma ironicamente branda, gira em torno de crenças. De forma sutil, o autor trata o conflito entre fé, ciência e religião, em voga no início do século. Na época, as descobertas da ciência experimental, o advento do materialismo e a redefinição do homem acabaram causando uma sensação de desencantamento e ceticismo quanto a religiões.
“Aires negava que fosse incrédulo. Ao contrário, sendo tolerante, professava todas as crenças desse mundo”.
Pedro e Paulo crescem idênticos fisicamente, mas diferentes na personalidade. Paulo, médico e Pedro, advogado, sendo que ambos abdicam do exercício das profissões escolhidas. Preferem o flanar e a política: a sociedade brasileira, mesmo após a abolição da escravidão, permanece alicerçada no sinhô, na sinhá e nos que trabalham para servir, naturalmente negros, mulatos e agregados.
Os gêmeos encantam-se por Flora, filha de um político oportunista, Batista, ora conservador, ora liberal, na dependência do poder. Flora, sua antípoda, revela um estado de inocência que o próprio nome nos trás. Inocência e abundância.
Flora é de certa forma, uma metonímia do Brasil: apesar de abundante, se confunde e definha, sem conseguir definir com qual Partido casar-se. Retira-se do Rio para Andaraí, mas nada debela seu mal. A moça, dividida entre os Partidos gêmeos, vem a falecer.
No contexto de fins de 1891, devido à revolta da Armada e possível guerra civil, Deodoro é forçado renunciar e, seu vice, o Marechal Floriano Peixoto, assume. Este se nega a cumprir a Constituição e em seu governo se alastra a repressão aos revoltosos. Com o objetivo de manter-se no poder, executou a política econômica denominada de ensilhamento, imprimindo dinheiro sem lastro, o que levou a uma enorme inflação, assim como à especulação econômica e ao surgimento de riquezas especulativas da noite para o dia.
Em decorrência, aumenta a revolta dentro das forças armadas e da população. As mortes se multiplicam. Com receio de bombardeio, a capital do país foi transferida para Petrópolis, em 1894.
E neste ano morre a jovem Flora.
Em um capítulo curto denominado de “Estado de sítio”, Aires descreve o funeral de Flora: “Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas… Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar?”
Os irmãos sofrem com a morte de Flora, mas depois dão curso às suas carreiras e vidas. Para o Machado de “Esaú e Jacó” os amores escorrem e se perdem com a vida.
Quanto ao narrador, a respeito dos desmandos entre os homens e a situação de desmantelamento das instituições no Brasil, num retoque de sinceridade afirma que “tudo é possível abaixo do sol e da lua. A nossa felicidade é que morremos antes”.
“De todos os maus costumes, o de envelhecer é o pior. Deixa para lá filósofos dizerem que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças minha amiga, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre”, pois:
“Quando se envelhece os receios da morte crescem. Mas não bastam os receios, é preciso que a realidade venha atrás deles. Daí as esperanças. Mas também não bastam esperanças, pois a realidade é sempre urgente”.
Referências: