De onde eles vêm

Após episódios de censura e duzentas mil cópias vendidas de O avesso da pele, o novo romance do autor vencedor do prêmio Jabuti. Com a lei de cotas raciais como tema, uma história sobre preconceito e luta, exclusão e sonho.

De onde eles vêm tem como pano de fundo o ingresso dos primeiros cotistas na universidade brasileira. Na história, que se passa em Porto Alegre, por volta dos anos 2000, acompanhamos o despertar racial do narrador, Joaquim, em meio a um ambiente hostil.
Órfão, tendo que cuidar da avó doente, desempregado e sem dinheiro, Joaquim busca a todo custo manter seu amor pelos livros e pela literatura. Romance de formação de um leitor, este é o retrato de uma jornada feita de obstáculos num momento em que políticas para amenizar desigualdades eram vistas como problema, não como possibilidade de solução.

“Uma obra fundamental para entender o Brasil contemporâneo e, principalmente, para a compreensão do que é ser negro neste desenho de país em que as questões étnico-raciais eclodem como marcadores nas relações interpessoais e com o Estado. A Lei de Cotas, tão atacada por um debate público por vezes raso e permeado por todos os ranços de uma nação fundada em bases excludentes, ganha corpo e rosto na trama. Quem sabe a ficção, mais uma vez, venha em socorro do exercício de empatia tão difícil entre nós.” — Eliana Alves Cruz

“Numa prosa enxuta e despojada, ao jeito de uma confidência, Jeferson Tenório entrecruza vidas de gente marcada pela pobreza, pelo preconceito e pela exclusão. Os personagens que entretecem esta narrativa são tão reais que parecem escapar de todo e qualquer exercício ficcional. Mas é exatamente essa a arte invulgar do autor: nas frestas do muro ele encontra o fulgor de uma luz. É nessa fugaz e improvável revelação que estas pessoas tão cotidianas descobrem a resposta à pergunta do título deste livro: de onde eles vêm? Onde nascem esses extraordinários momentos em que se revela a humanidade e a vida que nos habitam?” — Mia Couto

 

ARTIGO

Em novo livro, Jeferson Tenório retrata o ingresso de cotistas negros no ambiente hostil das universidades

“De Onde Eles Vêm” acompanha a trajetória de Joaquim, um jovem negro que transita entre dois ambientes completamente diferentes durante a juventude. Obra  inspirada na formação do autor será lançada no dia 25 de outubro

Karine Dalla Valle

Quando Jeferson Tenório começou a ler literatura, aos 24 anos, a negritude de Machado de Assis (1839-1908) ainda não tinha sido amplamente descoberta pelo Brasil, algo que só foi acontecer nos últimos anos. Estudante de Letras em Porto Alegre na primeira década dos anos 2000, ele foi buscar em autores estrangeiros, como os estadunidenses James Baldwin (1924-1987) e Toni Morrison (1931-2019), a representação literária que pudesse mostrar o que é ser um negro em uma sociedade construída para brancos.  

Aos 47 anos, com três romances publicados, todos eles com protagonistas negros tateando um mundo da branquitude e tentando encontrar seu espaço, Tenório não tem qualquer intenção de deixar de lado o fato de que a cor de sua pele não determinou sua trajetória. Seu quarto livro, De Onde Eles Vêm (Companhia das Letras, 208 páginas), com lançamento previsto para 25 de outubro, segue na temática racial; dessa vez, resgatando um tema que já teve seu auge de discussão no país e fez parte da formação do autor. 

Um dos primeiros cotistas negros a se formar na UFRGS, em 2010, Tenório mostra o personagem Joaquim, um jovem negro aprovado pelo sistema de cotas, ingressando em uma universidade pública dominada por uma classe média branca: 

— Construí um personagem que gostaria de ter sido e nunca fui. O Joaquim entra na universidade já sendo um grande leitor. Por outro lado, ele não passou pelas violências que eu passei. Quando entrei na universidade, na iminência da implantação das cotas, ouvi uma série de discursos terríveis para tentar invalidar as cotas. Evitei reproduzir porque queria que o leitor fosse tomando consciência do que está acontecendo na história. 

Diferentemente de O Avesso da Pele (2020), romance que traz episódio de violência policial contra negros, De Onde Eles Vêm traz a agressão sutil, mascarada em gestos e palavras não ditas, de quem acredita que o ensino superior não deveria ser um lugar para todos. 

De Alvorada, vivendo com a avó debilitada e descobrindo a sexualidade com a namorada mais velha que é mãe solteira, começando a frequentar festas de jovens universitários brancos, Joaquim transita entre dois mundos. Em um, as pessoas enfrentam batalhas para se manterem vivas. No outro, há conforto e espaço de sobra para a criação e a elaboração do mundo. 

Ao ingressar no novo ambiente, Joaquim não surge pela porta dos fundos: assume para toda a sala de aula que deseja ser poeta e debate James Joyce (1882-1941) com os professores, inclusive causando desconforto em um docente.

Ao mesmo tempo em que não sente qualquer obrigação de seguir escrevendo sobre racismo, Tenório não pretende mudar de assunto. Nem se curva a quem possa achar que deveria enveredar por outros temas para provar sua versatilidade como escritor.

— É um discurso que é fruto de um ressentimento branco que por séculos teve suas histórias contadas. O que estamos mostrando são outros pontos de vista que recontam a história do Brasil. Só depois dos meus 30 anos que entendi que minhas experiências poderiam ser literatura. Hoje, olhando para trás e vendo tudo o que produzi, penso que escrevo para a comunidade negra e para a sociedade de modo geral. 

( FONTE : https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2024/10/em-novo-livro-jeferson-tenorio-retrata-o-ingresso-de-cotistas-negros-no-ambiente-hostil-das-universidades-cm2c9wtst00sr013h7aesrl0m.html)

 

TRECHO

“Uma ocasião, Sinval me disse que escrever um bom livro dependia do quanto a gente tinha sofrido na vida. Embora fosse jovem e não tivesse consciência disso, eu ainda não havia conhecido o rancor, não de maneira visceral. Mesmo assim, sabia que a tristeza me dava uma certa vantagem. Acontece que essa sensação também me causava algum desconforto, pois, quanto mais eu refletia sobre a escrita, mais avaliava se valia a pena, se seria esse o preço a pagar. Ganhar experiência através das humilhações, da violência, e de todas as outras situações degradantes só para ter o que contar depois? A literatura vale tanto assim? Por outro lado, que garantia eu tinha? Porque nada me dava a certeza de que o sofrimento me faria escrever melhor. Tudo que havia em mim era ingenuidade, que é onde tudo começa, pensei, porque você só decide escrever depois de acreditar que pode fazer algo importante com as palavras. Talvez a ingenuidade seja necessária até o fim da vida para quem escreve. Na adolescência, meus primeiros poemas foram desastrosos. Para me curar da frustração, comecei a escrever diários, que aos poucos foram se tornando um cemitério de palavras: quase nada do que eu anotava neles servia para alguma coisa em termos de ficção.

10.
Escrevi meu primeiro poema porque queria ser leitor. Um dia me deitei na cama e olhei para minha estante de livros. A maioria eu tinha comprado, alguns tinham sido roubados da escola, da biblioteca ou de livrarias. Outros foram dados pelo Sinval. Havia um livro verde de capa dura, antigo, com as pontas danificadas pelo tempo. Era sobre o valor nutricional das frutas. Ganhei da minha mãe quando tinha uns cinco anos. Embora ela não fosse uma grande leitora, acreditava nos livros e queria que eu também acreditasse. Minha mãe morreu quando completei doze anos. Ela teve uma grave doença no coração. Ainda hoje, sempre que sinto palpitações, lembro dela. Talvez tenha sido essa lembrança que me levou a pegar aquele livro. Eu ouvia os latidos dos cães lá fora, vizinhos falando alto, carros passando e motos barulhentas. Peguei meu caderno de notas e escrevi: estante revisitada. Era ali o início do meu poema? De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos. Descobrir a origem de um texto o mataria? Permaneci olhando para a capa verde daquele livro. Até os meus dez anos, eu nunca o havia lido. Eventualmente o abria numa página qualquer, mas acontece que o livro tinha outras funções na minha vida. Servia de brinquedo, objeto que eu jogava de lá para cá, nunca para leitura. Mas penso que, de certa maneira, o livro cumpriu seu papel comigo. Foi útil para as necessidades básicas que eu tinha. Então, uma vez, ainda na infância, quando me senti entediado, abri o livro. Lembro que me deitei no sofá e comecei a ler sobre maçãs, bananas e abacaxis. Aquela imagem de uma pessoa deitada no sofá lendo um livro me atraía. De algum modo, tornei-me leitor não por causa da leitura em si, mas porque eu gostava daquela imagem: alguém que lê. Era disso que eu lembrava quando comecei a escrever o poema para a disciplina na faculdade. Terminei-o quase às três da manhã. Eu não estava satisfeito, mas foi o que pude fazer. Julgava que o poema era ruim, ainda assim me senti animado, porque a literatura fazia com que eu me sentisse grande diante das coisas, e aos vinte e quatro anos eu precisava dessa grandeza para não sucumbir. Diante do texto eu me sentia íntegro e precário. Eu não tinha muita consciência do que aquele poema significava. Eu já não tinha mais tempo para escrever outro. Então decidi que seria aquele mesmo que eu levaria para a aula.

[…] “

 

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