100 anos de Clarice – Clarice Lispector: as escritas do ser, o ser da escrita e a mulher

Clarice Lispector: as escritas do ser, o ser da escrita e a mulher

por Luciana Braga

Clarice surge na literatura brasileira em 1943 quando tinha apenas 23 anos e lançou o famosíssimo Perto do Coração Selvagem. Selvagem era o título do romance protagonizado pela heroína Joana. Selvagem talvez fosse a escrita infamiliar de Clarice que chamou a atenção dos maiores críticos literários da época, como o saudoso Antonio Candido que classificou a estreia dessa ousada jovem como uma “performance da melhor qualidade”.

No entanto, é preciso voltar no tempo. É preciso encontrar Clarice ainda no ventre de sua mãe em terras estrangeiras. Digo isso porque, apesar de ela ter tido tanto orgulho de pisar o solo brasileiro e ter feito questão de se naturalizar; Clarice, na verdade, possui uma família judia e nasceu provavelmente no dia dez de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, uma cidade pequenininha situada na Ucrânia. A filhinha caçula de Pinkas e Mania Lispector recebeu o nome judeu “Haia” que no hebraico significa “vida” e veio ao mundo, por assim dizer, com a missão de salvar a sua mãe que estava muito doente. É que os ucranianos acreditavam que uma enfermidade poderia ser curada com a gravidez. Daí o motivo do nome judeu.

No auge do regime comunista que obrigava a família a se dividir entre duas opções: refugiar-se no próprio país ou recorrer ao exílio; como já se pode imaginar, a segunda opção pareceu mais favorável, embora desafiadora. Assim, Mania que adota o nome de Marieta e Pinkas que passa a se chamar Pedro decidem mudar de continente carregando as filhas Elisa, Tânia e Clarice ainda no colo.

Em 1922, os Lispector chegam ao Brasil, residem primeiramente em Maceió, onde possuíam parentes. Após três anos vivendo com dificuldades e com a doença de Marieta, a família se muda para Recife, cenário de tantos contos de Clarice. Nessa época, a nossa menina tinha por volta dos seis anos e ainda não sabia ler, mas possuía um talento nato para contar histórias. Ela não usava a célebre frase “era uma vez”, mas foi nesse período que ela descobriu que a história ideal era aquela que jamais terminaria

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No dia 21 de setembro de 1930, Clarice perde a mãe. Mania ou Marieta deixam o mundo e uma menina culpada por não ter sido capaz de salvar a própria mãe. Mesmo assim, Clarice não foi uma menina triste, estava sempre pulando, sorrindo, brincando, inventando histórias e se divertindo em um mundo mágico que ela criava.

Recife não foi apenas o palco da morte da mãe de Clarice, foi também o lugar que apresentou o mar a ela. A jovem tirava o sal do corpo contra a vontade. Deve ser por isso que tantos escritos clariceanos tem cheiro de água salgada, assim como a cidade maravilhosa que acolheu os Lispector com tanto amor. Foi no Rio de Janeiro que Clarice iniciou sua faculdade de Direito e se formou em 1943, ainda que a veia literária permanecesse pulsante dentro dela tal qual sua escrita pulsa em nós sempre que a lemos.

Clarice foi redatora e jornalista, porque precisava pagar as contas, mas não importava o que ela estivesse fazendo, sempre que era acometida por ideias que poderiam se tornar novos escritos, ela sentia um desejo incontrolável de escrever. Foi então que passou a fazer registros imediatos para não correr o risco de mais tarde esquecer o que havia pensado.

O que ela não esquecia jamais era o desejo de naturalizar-se brasileira. Desejo concretizado em 1943, mesmo ano em que ela se casou com Maury Gurgel Valente e publicou seu primeiro livro. Logo em seguida, Maury ganha a sua primeira missão diplomática para Belém e os dois iniciam uma vida de muitas viagens. Para muitos, essa seria a parte mais glamourosa da existência, mas para Clarice viajar era um verdadeiro suplício, principalmente quando começaram a passar longos meses fora do Brasil. Nesses momentos, o que a salvava era a escrita de cartas para as irmãs e os amigos, boa parte escritores, como Lúcio Cardoso, seu amigo mais próximo e leitor especial de seus escritos.

Em Belém, Clarice se dividia entre a literatura e a vida diplomática do marido, o mesmo ocorreria mais tarde em Nápoles, Berna ou Washington. Não importava onde Clarice estivesse, a sua escrita estava sempre presente, porque era a veia pulsante que a mantinha viva, enquanto seu coração permanecia em terras brasileiras assim como sua família. Assim ela foi publicando aos poucos seus romances: O Lustre (1946), livro grosso, “um livro pra se viver com ele” tal qual Reinações de Narizinho (1931), tão desejado por ela na infância e transformado em narrativa literária.

Em 1961 veio A maçã no escuro escrito durante a primeira gravidez de Clarice. Pedrinho veio antes do livro, em 1948 e trouxe para Clarice a vivência de um sonho antigo: a maternidade. Ela sempre desejou ser mãe e foi uma das melhoras, daquelas que obrigam todos andaram compassadamente pela casa para não acordar a criança ou que agasalha tanto o primogênito a ponto de o pequeno transpirar. Cuidadosa com o filho, mas sem deixar a escrita de lado.

Em 1949, Clarice, Pedrinho e Maury pisam no solo brasileiro, ou melhor, carioca. A Cidade Sitiada é lançada, romance tocante escrito na bela Suíça. A estadia, no entanto, não dura mais que um ano, pois veio de Londres a notícia do nascimento do segundo filho do casal: Paulo Gurgel Valente. O segundo filho trouxe festa à família quando nasceu, mas depois a festa se transformou em pequenos conflitos até que veio a separação que culminou com Clarice voltando para o Rio de mãos dadas com seus dois filhos, Pedro e Paulo. O filho para ela é o melhor livro que ela jamais escreveu, por isso ela sofre com a saudade mais tarde com o intercâmbio de Paulo nos Estados Unidos e sofre duplamente pela doença de seu primogênito.

Foi durante essa nova fase no Rio que Clarice inicia a escrita dos seus célebres contos presentes em Laços de Família (1960) e A Legião Estrangeira (1964), seguidos pelo complexo e instigante A paixão segundo G.H. (1964). Tudo parecia ir bem se não fosse o fatídico 14 de setembro de 1966, madrugada em que Clarice sofreu um acidente cujas sequelas a acompanhariam até o fim dos seus dias. Adormecera fumando e, ao acordar, tentou apagar o fogo com as mãos e talvez salvar alguns papéis do escritório. O resultado foi um grave ferimento na mão direita que ela usava para escrever e alguns outros ferimentos nas pernas. Clarice fica entre a vida e a morte e é difícil mensurar o que ela sentiu. A mesma mulher que antes desconversava quando perguntavam sua idade e havia, inclusive, provavelmente rasurado a certidão de nascimento; agora se via obrigada ao uso de luvas, acessório que denuncia sua vaidade sempre presente.

Os anos vão passando e as escritas de contos se multiplicando, surge A imitação da Rosa (1966), Felicidade Clandestina (1971), assim como os romances, Aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e posteriormente Água Viva (1973). Clarice afirmava que não gostava desse primeiro, mas certamente ele encantou muitos leitores por se tratar de uma história de amor. Existe a hipótese de que o personagem masculino recebeu o nome Ulisses como alusão ao romance de James Joyce, porém o mais provável é que sua amiga Olga Borelli esteja certa e esse nome tenha sido referência a um rapaz que ela conheceu na Suíça e se apaixonou por ela. Como não se apaixonar por Clarice? Ela tinha olhos de puro mistério e falava como se soubesse algo que ninguém mais suspeitava. Verdade ou não, o fato é que até o amado cachorrinho dela recebeu o mesmo nome. Ulisses para muitos remete à Odisseia, para mim remete à Clarice.

Em 1974, ela publica uma obra por encomenda e intitula de A via crucis do corpo. Esse livro de contos foi bastante julgado pela crítica que o considerou literatura menor, assim como pela própria escritora que o chamou de lixo. Curiosamente é essa obra que apresenta narrativas com forte carga erótica e de um realismo visceral. É preciso sempre duvidar dos julgamentos dos escritores, porque às vezes eles nos dizem algo, mas querem que enxerguemos exatamente o contrário.

Dentro desse conjunto vasto de títulos se avoluma também algumas obras infantis, em que a primeira, O mistério do coelho pensante (1967), é fruto de um pedido de seu filho Pedro. Em 1974, ela lança Onde estivestes de noite que representa já a fase final das publicações de Clarice que são finalizadas com as aventuras de Macabéia em A hora da estrela, seu último romance publicado em vida. Curioso que essa obra derradeira traga a narrativa de uma nordestina vivendo no Rio, tal qual Clarice. Obviamente há muito de Clarice em Macabéia e vice versa porque a vida do autor não determina a obra, mas certamente pulsa em cada linha escrita, em cada fôlego datilografado de existência.

Finalmente, no dia 9 de dezembro de 1977, Clarice Lispector morre no Rio por causa de um câncer no ovário. Em O Sopro de Vida, escrito em 1974 e publicado postumamente, em 1978, lê-se: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.” Viva Clarice, porque ela continua existindo em sua literatura e em seus leitores para sempre.

Ps: Luciana, e as crônicas? Continuem acompanhando o especial de Clarice. Eu reservei um espaço inteirinho para falarmos sobre elas.

LUCIANA BRAGA é escritora, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará, mestranda em Literatura (UFC) e pesquisadora da obra de Clarice Lispector.

Contatos: @braga.drawing

@bora_cronicar

 

 

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