Cem anos da morte de Marcel Proust: a epopeia da alma humana na literatura.

Cem anos da morte de Marcel Proust: a epopeia da alma humana na literatura.

Proust era um revoltado, portador de um perigoso gênio cômico empregado a destruir, uma a uma, todas as máximas e preconceitos sociais de seu tempo! Tempo composto pela mesma humanidade da qual fazemos parte, onde os antigos preconceitos ou se transformaram ou assumiram novas roupagens.

E foi na vertigem da luta contra os preconceitos, que se encontra sua ponderação: “A vida de um artista não passa de uma longa ausência: ele está alhures. Tudo neste mundo lhe é hostil. ”

Era a madrugada de 18 de novembro de 1922 quando Marcel Proust, amparado pela incansável Céleste, fazia suas últimas correções nas provas de A Prisioneira”. Nem mesmo depois de longas horas de correção escrita e ditado ele conseguira dormir. Céleste, chamara novamente os Drs. Bize e Robert Proust; um terceiro médico fora convocado por eles, mas já era tarde. Não havia o que pudesse ser feito por Marcel Proust.

Falecia, aos 51 anos, vítima de uma pneumonia, o autor de “Em Busca do Tempo Perdido”, uma verdadeira epopeia da alma humana!

A primeira parte de “Em Busca do Tempo Perdido”, “A Caminho de Swann”, foi recusada pelas editoras francesas, inclusive as de vanguarda. Marcel Proust pagou do próprio bolso a impressão.

Ao impacto inicial causado pelo absolutamente “novo” de sua obra, seguiu-se tanto o sucesso e o reconhecimento quanto reações de desconforto e, mesmo, de repulsa provocada nas mentes mais conservadoras e convencionais.

De todo modo, “A Caminho de Swann” rompeu as fronteiras da França, conquistou as Américas e parcela da intelectualidade europeia.

E, talvez exatamente por ser moderno e diferente “Em Busca do Tempo Perdido”, seja, em comparação aos outros “clássicos”. E esta incongruência eu mesmo a vivenciei.

Como tantos de minha geração, confesso haver tentado, desde muito jovem, penetrar no mundo de Proust; no entanto, todas as minhas tentativas de leitura, invariavelmente eram interrompidas já nas quarenta ou cinquenta primeiras páginas de “A Caminho de Swann”, o primeiro dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”.

Perguntei-me, lá pela quarta ou quinta tentativa de leitura, sobre o que acontecia entre mim e Proust. Encontrei algumas respostas: uma leitura inicialmente difícil graças ao ritmo lento de um texto composto por frases quilométricas, com excesso de vírgulas e ausência de pontos finais. As intercorrências de raciocínios colocados dentro de parênteses faziam-me, inevitavelmente, sempre retornar para não perder a meada da narrativa.

Sentia-me numa espécie de labirinto e encerrava a leitura. O que restava ainda por explicar era o porquê de eu retornar quatro ou cinco vezes ao mesmo livro, e a minha leitura se interrompida quase sempre no mesmo trecho. Seguramente não seria somente a “aura” de Proust que se estendia sobre minha cabeça, não. Definitivamente existia algo que me mantinha atraído a Proust, o que me obrigava ao retorno após tantas iniciativas frustradas. Mas o quê? Por bom tempo não tive resposta.

No entanto, a vida nos prepara a cada passo surpresas; o fado nos atropela e da harmonia aparente em que vivemos, surge perante nós, com toda força avassaladora, o caos. Foi num momento desses, de enorme melancolia e insegurança que folheando livros, como que por magia acabei me entretendo com “A Fugitiva”, o penúltimo da série editada de “Em Busca do Tempo Perdido”.

Recordo ter-me sentido tão atraído pela leitura que me sentei numa poltrona na livraria onde estava e somente depois de umas duas horas consegui desprender-me, pagar o livro e voltar para meu refúgio, carregando-o a tiracolo.

Sem que eu houvesse planejado, quebrara-se o encanto! Ao ler “A Fugitiva”, consegui penetrar no estilo de Proust e, como por um milagre, senti que lia a mim mesmo em suas reflexões. A resposta tanto procurada do que afinal me atraía nele, quase por um acaso a encontrara. Teria sido apenas um acaso? Não, sempre somos parcela da aventura da alma humana.

O estilo proustiano, então, adquiriu nova coloratura; as frases, sonoridade e harmonia; é verdade que permaneciam como antes, mas para mim, ao invés de difícil, Proust tornara-se simplesmente diferente.

Bem verdade que eu aceitara mergulhar num mundo desconhecido, que por vezes chegava a me aturdir; mas a recompensa obtida era uma deliciosa sensação de liberdade, de comunhão; o sentir-se enredado em uma teia em que, como num caleidoscópio, eu visitava as múltiplas imagens de mim mesmo.

Aprendi que, afinal, os melhores livros são precisamente aqueles em que lemos a nós mesmos, como dizia Borges!

Com sofreguidão, em um par de meses, realizei duas leituras consecutivas daquela parcela do grande romance. O labirinto desaparecera e o estilo de Proust, pese a ser único- afinal qual gênio não possui aquele que lhe é próprio- tornara-se meu aliado e amigo, e tal qual nos quadros de Watteau, que ele tanto apreciava, Proust foi meu mestre, companheiro e condutor para o embarque até a fabulosa Cítera, “ilha dos corações e das festas do amor”, “aquela que está dentro de cada um de nós”.

A redescoberta apoderou-se de mim como um vício. Não mais me contentei em ler, reler e anotar as mais significativas passagens e realizar minhas observações dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”. Passei a empanturrar-me, incansavelmente, de tudo o que me caia às mãos, relacionado a ele: seus críticos, sua vida, seu trabalho, cartas, amizades, visitei os artistas que mais o influenciaram quer na literatura, na pintura, na música, na escultura e na filosofia.

Acontece que o fascínio do romance de Proust, alertava Edmund Wilson, é tão grande que, enquanto o estamos lendo, tendemos a aceitá-lo “in totum”. E de minhas leituras, pesquisas e descobertas nasceram dois livros por mim já publicados!

Aprendi que ler Proust é também um profundo mergulho no conjunto da criação do espírito humano!

“Em Busca do Tempo Perdido” insere-se numa corrente artística modernista de inigualável beleza estética: o Impressionismo! Marcel Proust tinha três anos de idade quando Claude Monet, em 1874, expôs uma pintura “Impression, Soleil Levant”, título sugerido pelo seu amigo Renoir. Nela, uma nova forma de simbolizar os objetos- Homens e Natureza – surgia, a partir do ponto de vista da percepção causada no seu autor.

Surgia o impressionismo, negando-se a considerar os objetos da pintura como imutáveis. Os seres animados e inanimados perdiam para ele seu colorido e sua materialidade intrínsecos, variando em função do tempo e da luz. As formas, antes padronizadas e estáticas, tornavam-se mutantes e dinâmicas.

Proust que tinha plena convicção da transitoriedade das associações entre os homens, de suas personalidades e das intermitências de nossos corações, no desenvolvimento de sua obra lançou mão da técnica impressionista, onde descrevia ou rememorava justamente os instantâneos a serem figurados através da escrita, dentro de um universo físico e psicológico sempre em mudança.

Para ele o impressionismo não constituía tão somente uma técnica pictórica, porque seus conceitos centrais poderiam se estender a outros campos de expressão artística, como à literatura e à música. De tal maneira que, pela primeira vez, para a compreensão de uma obra de arte, tornava-se necessário que o leitor ou espectador se sentisse por ela penetrado e possuído, caminhasse com o autor, ou, no dizer de Proust, se tornasse o “leitor de si mesmo”.

Anos antes de iniciar o “seu romance”, Proust havia enveredado pela crítica literária. Pois bem, todo o conhecimento adquirido em anos de leitura, anotações e pesquisas, ele o transpôs para “Em Busca do Tempo Perdido”. De tal modo que a leitura de Proust nos encaminha para uma visão panorâmica da literatura, do teatro e das correntes filosóficas francesas do século XVII ao XX. Mais de uma centena de trabalhos são por ele citados, de tal modo que nos sentimos como percorrendo uma enorme biblioteca, onde possuem seu lugar o poeta, o fabulista, o teatrólogo, o comediante, o memorialista, o novelista e o romancista.

Dentre aqueles que mais influenciaram o pensar proustiano podemos elencar os franceses Balzac, Stendhal, Racine, Baudelaire, Mellarmé, Flaubert, Bergson e Pascal; os alemães Nietzsche, Schopenhauer, Kant, Schiller e Goethe; os russos Tolstoy e Dostoievski; os ingleses como Ruskin, Shakespeare, Hardy, Huxley e Eliot, e os norte-americanos como Emerson e Poe.

A historiografia musical.

A profunda erudição de Proust, não se restringia à literatura, ao teatro e à filosofia. Em seu trabalho, são dedicadas páginas e mais páginas à análise da música wagneriana, assim como aos “poemas musicais”, aos quais dedicava um carinho todo especial.

As páginas de seu livro são recheadas por concertos, sonatas, balés, óperas, sinfonias e músicas sacras, que se iniciam por Palestrina, caminham pelo barroco com Scarlatti e Bach, passam pelo rococó de Rameau, chegam ao classicismo de Mozart, de Mendelssohn, ao tradicionalismo do folclore nacional de Mussorgsky, Borodin e Lizst, percorrem o Romantismo de Beethoven, Schumann, Schubert, Chopin e Verdi, chegando ao neorromantismo de Wagner, de Frank e Fauré, ao poema sinfônico de Saenz, e, finalmente, caminham até o Modernismo de Debussy, dos balés russos e de Stravinsky.

A pintura.

Apreciador e conhecedor da pintura, sua obra guarda profunda influência do simbolismo de um Moreau e do psiquismo de um Rembrandt.

A cada página sentimo-nos caminhar por uma maravilhosa Galeria de Arte, onde os góticos como Fra Angélico e Giotto precedem os renascentistas como Durer, Bellini, Boticelli, Carpaccio, Fra Bartolomeu, Da Vinci, Giorgioni, Rafael, Veronese, Ticiano, Michelangelo, Mantegna.

A esses se sucedem o maneirismo de um El Greco, Tintoretto, Bruegel, Hals. Na ala dedicada aos barrocos encontramos Rembrandt, Chardin, Mignard, Rubens, Velazquez, Veermer de Delft; a esses seguem os rococós de Boucher, Fragonard, Tiepolo e Watteau.

Chegamos por um corredor lateral aos românticos, e já temos Turner, Delacroix, Gerard, Goya. Subimos um lance de escada e nos deparamos com os classicistas David, Decamps, Reynolds e Poussin. Seguimos e já nos defrontamos com o realismo de Corot, Fromentin, Millet. Novo corredor e lá estão Chaplin, Ingrès e Cot, os academicistas.

Finalmente, em uma ala especial, encontramos os simbolistas e dentre eles, Moreau e Rousseau; os impressionistas e pós-impressionistas Degas, Fantin-Latour, Tissot, Manet, Monet, Renoir e Whistler; Rossetti, Guys e Redon.

Esse é o universo deste escritor único, detentor de uma sensibilidade refinada, de erudição e memórias privilegiadas e que possuiu o dom de transformar seu romance numa verdadeira epopeia da alma.

Em suas páginas viajaremos pelos mais diversos oceanos da existência, mesmo porque por todos Proust navega: temos o Proust romancista, o moralista, o naturalista, o crítico de arte, o filósofo, o poeta, o memorialista, o caricaturista e o crítico social.

Como poucos, sob todas essas “personnas”, Proust é um subversivo, um revoltado com o meio esnobe que frequentara um dia, revoltado para consigo mesmo e para com a realidade em que vivia.

E ele utiliza nessa revolta um perigoso gênio cômico, empregado a destruir, uma a uma, todas as máximas e preconceitos sociais de seu tempo e que, em seu cerne, se mantêm até os dias de hoje.

( FONTE : https://www.proust.com.br/post/cem-anos-da-morte-de-marcel-proust-a-epopeia-da-alma-humana-na-literatura)

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