Cartas perto do coração
Organizado pelo próprio Fernando Sabino, Cartas perto do coração apresenta sua troca de correspondência com Clarice Lispector entre os anos 1946 e 1969. Agora em edição especial com capa dura e novo projeto gráfico, a obra inclui prefácio inédito de Nádia Battella Gotlib, professora da USP, e fac-símiles também inéditos das cartas e das notas de leitura do original de A maçã no escuro (1998).
“Em janeiro de 1944, eu mal havia completado vinte anos e recebia em Belo Horizonte, onde ainda morava, o exemplar de um romance chamado Perto do coração selvagem , com uma dedicatória da autora, Clarice Lispector, que eu não sabia quem fosse […]. Fiquei deslumbrado com o livro. […] Rubem Braga conheceu Clarice em Nápoles durante a guerra […]. Quando ela retornou ao Brasil, Rubem nos apresentou um ao outro. Fiquei deslumbrado com ela”, conta Fernando Sabino na Apresentação de Cartas perto do coração , livro que faz jus à longa e profunda amizade que os dois dos mais importantes escritores brasileiros construíram ao longo de décadas.
Depois de apresentados por Rubem Braga, Sabino e Lispector começaram uma relação fraternal marcada por horas de conversa em encontros marcados ou na própria casa do escritor, onde Clarice conheceu a esposa dele, Helena, e os amigos de longa data. Com as viagens intensas de ambos, mantiveram o hábito de escrever um para o outro, cultivando o vínculo de amizade e as trocas intelectuais e afetivas. Publicadas pela primeira vez em 2001, as cartas aqui presentes nos permitem descobrir o mundo interno desses dois escritores quando jovens.
O diálogo entre ela e Sabino foi, além de pioneiro, um dos mais intensos desde o início de sua carreira literária.
Agora, em edição capa dura, com novo projeto gráfico, assinado pela premiada designer Luciana Facchini, prefácio inédito de Nádia Battella Gotlib, fac-símiles e uma carta inédita de Clarice para Helena, Cartas perto do coração volta para as mãos daqueles que amam a escrita espirituosa de Fernando Sabino e a escrita poética e introspectiva de Clarice Lispector.
“É curioso como seu livro e o meu têm a mesma raiz. Talvez você não ache isso ou sinta. Eu acho. Só que o seu termina com uma luz mais aberta – o encontro marcado se realiza. […] Mas, Fernando, o fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu não é o começo de maturidade? […] Me deu a certeza de um encontro marcado, e a esperança. […] A verdade, Fernando, é que, depois desse livro, ainda sou mais sua amiga. Mas a verdade também é que, se não tivesse gostado tanto, também seria. – De Clarice Lispector para Fernando Sabino, em 8 de janeiro de 1957
“As produções literárias criadas por Fernando Sabino e por Clarice Lispector – que incluem, no repertório, as bem escritas cartas aqui enfeixadas – permanecem, pois, disponíveis à leitura como peças de importância estética. Mas também como peças substanciosas no conteúdo de escopo documental, ao apontarem para um contexto histórico. E são agradáveis de se ler pelo tom descontraído de conversa sobre ‘quase tudo’. Definitivamente compõem um capítulo memorável da cultura literária brasileira.” – Nádia Battella Gotlib, para o prefácio de Cartas perto do coração
Editora Record; 9ª edição (23 setembro 2024)
Idioma Português
Capa dura 256 páginas
ISBN-10 8501921696
RESENHA
Clarice Lispector abriu o coração para Fernando Sabino
Cartas trocadas pela dupla revelam angústias dos dois escritores, inquietações relativas à literatura e a falta que ela sentia da bagunça brasileira
Discreta e pouco afeita a entrevistas, Clarice Lispector (1920-1977) não era do tipo que baixava a guarda facilmente. Na busca por não revelar completamente a complexa persona por trás dos livros, a escritora preferia que as obras falassem por si.
Ainda assim, foi por meio da escrita que ela se mostrou mais vulnerável, como revelam as cartas trocadas com o mineiro Fernando Sabino (1923-2004) entre 1946 e 1969. A amizade dos dois, registrada no livro Cartas perto do coração (Record, 2001), revela uma longa e profunda ligação entre dois importantes escritores brasileiros.
DEDICATÓRIA
O primeiro contato de Fernando Sabino com Clarice Lispector ocorreu em 1944.
Na ocasião, ele recebeu o primeiro livro dela, Perto do coração selvagem (1943), com dedicatória da autora. Entusiasmado, publicou uma resenha. Sabino tinha 20 anos, morava em Belo Horizonte e não conhecia Clarice pessoalmente.
À época, ela morava em Nápoles, na Itália. Quando retornou ao Brasil, foi apresentada ao escritor mineiro por intermédio de Rubem Braga (1913-1990). A partir daí, se estabeleceu uma amizade intensa que resistiu até mesmo à distância. As cartas dela foram enviadas de Berna, na Suíça, e Washington, nos Estados Unidos, onde morou junto do marido diplomata, Maury Gurgel Valente. As de Fernando saíram do Rio de Janeiro e de Nova York.
Quando se conheceram, os dois eram autores iniciantes. Clarice tinha 23 anos e havia acabado de lançar seu romance de estreia. Já Fernando Sabino havia publicado em 1941, aos 17 anos, o primeiro livro, a coletânea de contos Os grilos não cantam mais.
Nas cartas, Clarice revela uma série de frustrações por estar longe de casa, o que a leva a sentir falta da bagunça e da efervescência do Rio de Janeiro.
“Berna é linda e calma, a vida cara e a gente feia; com a falta de carne, com o peixe, queijo, leite, gente neutra, termino mesmo dando um grito. Falta um demônio na cidade. Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minha angústia e procurando não fazer honrar a mim mesma”, desabafa Clarice ao amigo. Em outro trecho, revela: “A solidão que sempre precisei me é, ao mesmo tempo, insuportável.”
No entanto, um dos principais motivos da aflição da escritora era o silêncio em torno de seu segundo romance, O lustre (1946), qualificado por Oswald de Andrade (1890-1954) como “aterrorizante”. Para Fernando Sabino, amigo afetuoso, solidário e pragmático, o referido “silêncio” era “exagerado”.
As cartas estabelecem um diálogo livre. Clarice fala, por exemplo, da visita que fez às pirâmides do Egito, reclamando do comportamento dos turistas: “O problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista em um guia”, escreve ela.
A mudança para Washington foi positiva para a escritora, pois a cidade oferecia opções culturais e contava com uma comunidade significativa de brasileiros. Apesar disso, a percepção é bastante semelhante à que ela tinha sobre Berna: “É bonita segundo as várias leis da beleza que não são as minhas. Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”.
EVOLUÇÃO
A produção epistolar revela uma linha de evolução. No primeiro momento, dominam inquietações e angústias vagas. Mas, no decorrer da troca de correspondências, cresce a preocupação dos dois escritores em relação às suas próprias obras. As cartas revelam, portanto, uma amizade forjada na palavra.
Prova disso é a presença do mineiro na vida de Clarice Lispector, o que não se limitou à troca de cartas. Fernando Sabino foi editor do romance A paixão segundo G.H., obra-prima de Clarice publicada em 1968.
DE: CLARICE
PARA: FERNANDO
“Falta um demônio na cidade. Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minhaangústia”
“Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”