Aos pés da poesia – A obra de Ana Cristina César

” Eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal.” Em textos Escolhidos , o Letras e Livros revisita nos 35 anos de sua morte a obra da carioca Ana Cristina César, uma das mais originais e cultuadas poetas de sua geração. Veja ensaios, poemas e biobibliografia. ( Leia completo)

Ìndice

Pág. 01 – Ensaio : Nas entrelinhas de Ana Cristina, por Annita Costa Malufe

Pág. 02 – Poemas

Pág. 03 – As cartas-poemas de Ana C, por Wilson Bueno

Pág. 04 – Biografia/ Bibliografia

Ensaio 1)

Nas Entrelinhas de Ana Cristina

Annita Costa Malufe(*)

Há pouco mais de vinte anos, precisamente em 29 de outubro de 1983, a poeta carioca Ana Cristina Cesar decidiu colocar um último ponto final: cessava uma produção que ainda assistia a seu início. Não se trata de saber se a morte de Ana Cristina, aos 31 anos de idade, ajudou a eternizar sua poesia e a fazer de A Teus Pés, único livro seu publicado em vida, um sucesso de crítica e público. Mas talvez seja um pretexto para se lembrar de uma das poucas poesias sobreviventes daquela que foi a chamada “poesia marginal” ou “poesia de mimeógrafo” dos anos 70. Tanto que, até hoje, Ana C. – como costumava assinar – é referência obrigatória quando se trata de poesia brasileira contemporânea.

Buscar em um poema a intimidade daquele que o escreveu: esta espécie de armadilha pode facilmente abocanhar quem lê os textos de Ana Cristina Cesar. Temas da intimidade, conversa ao pé-de-ouvido, poemas em forma de carta, de diário, tom de confissão entre amigas. Foi a própria Ana C. quem cultivou a curiosidade do leitor com esta escrita que parece esconder segredos íntimos de mulher. Nada inocente: ela dizia mesmo brincar propositadamente com o desejo de identificação romântica, tentação em que tantos costumam cair.

Para fugir desta arapuca, a receita de Ana C. é “ser iniciado em literatura”. O que, para ela, consiste antes em “sacar” de fato o que é poesia, do que em colecionar títulos de autores consagrados na lista pessoal dos “já lidos”: “Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo”,(1) diz-nos Ana C. em um depoimento editado em Escritos no Rio e reeditado em Crítica e Tradução.

Para quem conhece seus poemas, os ensaios críticos são uma boa oportunidade para entender melhor como ler aqueles textos que muita gente, à primeira vista, acaba tendo como estranhos, quase herméticos, não-senso etc. E a crítica especializada não está fora disto. Há tanto quem acredite que os textos de Ana C. não passam de fluxo natural do inconsciente – à maneira surrealista – quanto quem a leia como uma poeta simbolista, procurando significados ocultos, estrategicamente codificados por trás das palavras.

O fato é que, provavelmente as melhores pistas para lermos sua poesia já tenham sido dadas pela própria poeta. Ana C. pensou sua poesia, pensou literatura, fez crítica, estudou tradução e, como podemos notar no conjunto de seus escritos, isso tudo participava, e muito, da sua criação literária. Como negligenciar isto? T. S. Eliot acreditava que “a maior cota do labor de um autor ao executar a sua obra é um trabalho crítico”: (2) ao criar, o poeta coloca em ação sua habilidade crítica, avalia seus procedimentos, estabelece parâmetros, faz comparações, aciona seu conhecimento histórico, literário. Este exercício crítico era consciente para Ana C., que obteve o grau de Master of Arts na Inglaterra em um curso sobre tradução literária, na Universidade de Essex, onde viu a oportunidade de “enfim estudar teoria”, como podemos ler em uma de suas cartas publicadas em Correspondência Incompleta.

Muitos dos ensaios que encontramos em Crítica e Tradução fazem parte do período de estadia na Inglaterra – textos que a princípio formaram o livro Escritos na Inglaterra – nos quais vemos o tempo todo a preocupação mais ampla com a literatura guiar a questão da tradução. Em seu mestrado, também publicado aqui, Ana C. traduziu um conto de Katherine Mansfield, “Bliss”, para o português e compôs uma dissertação a partir das notas de rodapé da tradução. Podemos ler ainda alguns poemas traduzidos por ela, de poetas que pareciam estar entre seus preferidos, como Emily Dickinson, Marianne Moore, Sylvia Plath.

Mas talvez estejam nos Escritos no Rio os artigos que mostram mais diretamente a visão de literatura de que Ana C. estava imbuída. Nestes textos, que saíram em jornais e suplementos literários versando sobre os mais diferentes temas, além do depoimento de Ana C. a um curso sobre literatura feminina e uma monografia para disciplina da UFRJ, podemos colher algumas pistas de sua concepção de poesia. Aqui lembramos, novamente com Eliot, que “aquilo que ele [o poeta] escreve a respeito de poesia deve ser avaliado em relação com a poesia que ele escreve”.(3) Caminho de mão dupla, afinal: a poesia de Ana C. também não deveria ser avaliada tendo em vista aquilo que ela refletiu sobre poesia?

a biblioteca

O pensamento de Ana Cristina sobre a literatura parece inserir-se em um contexto filosófico bastante contemporâneo. Sobretudo naquele que atualmente poderíamos associar, depois de Nietzsche, ao filósofo francês Gilles Deleuze que, com sua filosofia da diferença, teria proposto uma inversão do platonismo: como deixarmos de pensar o mundo em termos de modelo e cópia, como concebermos que, afinal, não há original algum e de que estamos sempre em pleno devir? Por trás de tudo o que podemos ler nos ensaios de Ana C., mas também em suas cartas, encontramos um preceito básico: o texto literário é sempre, enfaticamente, construção, e construção de realidade. Ou seja, ele não é representação de uma realidade outra – seja ela do exterior, do mundo, das coisas, ou mesmo do interior daquele que o escreveu – mas constitui em si uma realidade. Não há modelo e cópia, não há representação de um ideal, mas apresentação de um real inédito.

Ao falar de Guimarães Rosa, por exemplo, ela enfatiza que seu interesse literário não está na transposição de uma realidade para o papel, como um espelho, mas sim, na sua interferência neste reflexo: o que importa é tomar o mundo como matéria-prima para, a partir daí, criar, construir algo artisticamente. Assim, a literatura consiste na construção de um universo próprio, auto-suficiente. E este mundo criado pelo texto literário não quer ser espelho do mundo em que vivemos, ser seu reflexo ou relato.

É daí que Ana C. enfatiza a impossibilidade de se chegar à verdade de um texto, tocando em um tema caro à filosofia desde Nietzsche: a inexistência de uma verdade absoluta, ou a constatação da parcialidade de toda e qualquer verdade. Ana C. salienta que, afinal, nunca se chega à verdade de um autor, ou à verdade de o que quer que seja, uma vez que não existe essa tal verdade universal, como um segredo oculto a ser descortinado. Segundo ela, ainda se houvesse “A Verdade”, do autor, do mundo, das coisas, não seria função do texto escondê-la ou revelá-la. Em suas palavras: “Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca de minha subjetividade. É uma impossibilidade até”.(4)

Essa questão é tematizada mais de uma vez nos textos críticos de Ana C. que, conforme podemos observar em sua biblioteca particular, que se encontra em seu arquivo pessoal sob responsabilidade do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro desde 1999, era leitora de autores contemporâneos que compartilham de uma concepção da arte enquanto não-representação. Além de diversos livros de Octavio Paz, alguns de Jorge Luis Borges, podemos encontrar – lidas e com anotações da poeta – obras de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Antonin Artaud, Jacques Derrida. É claro que, estes, em meio a diversos outros autores também bastante conhecidos por sua geração, como Maiakovski, Mallarmé, T. S. Eliot, Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Mário e Oswald de Andrade e alguns estruturalistas. No entanto, em relação aos estruturalistas, não podemos deixar de lado a passagem de uma carta sua a uma amiga: “Arrumei a estante, reclassifiquei os livros (…) Nessa, descobri que tenho uma quantidade enorme de livros inúteis (quase todos os estruturalistas, que formam uma boa prateleira, poderiam ser dispensados; os de lingüística também)”.(5)

intimidade construída

A nova poesia de meados dos anos 1970, a poesia marginal de que, de certa forma, fez parte, teria nascido dentro desta concepção, do texto literário como construção e não representação, ao seu ver. Uma poesia mais próxima da alegoria do que do símbolo, literatura que “sabe que não está simbolizando alguma inefável verdade sobre o mundo, que não está abarcando um símbolo inexprimível”.(6) Ana C. afirma que, nesta poesia, não há “saudosismo”, não há mais a preocupação com uma distância irrecuperável entre linguagem e real. Desde Walt Whitman esta teria deixado de ser uma questão para a poesia contemporânea: “Poeticamente a questão da representação como distanciamento é abolida na euforia revolucionária da poética de Whitman”, poética que “rompe a metafísica que impõe e chora a distância entre o mundo e a linguagem”,(7) argumenta ela em outro artigo.

É como se não houvesse mais lamento por esta distância, ou desejo de reunificação, reunião através da poesia, como um “retorno ao útero” tal qual quereriam os poetas metafísicos. Pelo contrário: essa distância é incorporada ao poema, ao seu tom, ao seu tema, e é tomada com alegria, despojamento. Desse modo, o poema deixa de buscar a fidelidade com o vivido, não almeja imitar o mundo, trazê-lo para a linguagem, e assim: “O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e preexistente sentir ou existir”.(8) O texto assume-se enquanto produtor de realidade, criador – de povos, culturas, vidas – e não apenas criatura: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível”.(9)

Com este pano de fundo, podemos tranqüilamente afirmar que, para Ana C., literatura não é relato de memória, seja ela vista ou sentida, não é diário de bordo. Tomemos emprestada uma frase de Gilles Deleuze: “Escrever não é contar suas lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, seus sonhos e fantasmas”.(10) Para ele a fabulação criadora não se nutre de recordações e ausências, mas antes, de um excesso que nos faz justamente ultrapassar as situações vividas, ir além dos fatos. É o que nos diz Ana C.: embora seja possível partirmos de uma emoção, um sentimento ou mesmo um fato ocorrido, essa vivência só é apropriada pelo escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de “olhar estetizante”.

Assim, nessa operação obrigatória para se produzir o texto literário, ela acredita que não há como o poeta ser fiel ao sentimento inicial, ainda se assim o desejasse. Aquele que pretende representar sentimentos, emoções, ambientes e acontecimentos externos terá de fazer uma escolha: se almejar ser fiel terá de abdicar à literatura, para fazer literatura terá de renunciar à fidelidade aos fatos. Não há saída: “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou”,(11) diz ela. Ou seja, as obsessões pessoais do autor participam sim da criação na arte, mas somente enquanto matéria-prima a ser transformada – juntamente com outras coisas como livros que o autor leu, coisas que ele viu, ouviu, viveu.

É desse modo que, ficcionando correspondências e diários, Ana C. “brinca diretamente com o que chama de ‘obscurantismo biografílico’”, como remarca Flora Süssekind no ensaio sobre a poeta Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Ana C. deixa claro que os diários – que compõem praticamente inteiro seu livro Luvas de Pelica e parte do seu Cenas de Abril – não são seus, mas sim diários inventados, que forjam uma intimidade: “Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa”. E continua: “(…) a intimidade… não é comunicável literariamente. A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura”.(12)

o autor dança

No entanto, não seria suficiente explicarmos a estratégia composicional de Ana C. através da idéia dos heterônimos, o fingimento de que fala Fernando Pessoa. Aí ainda poderíamos supor a existência de uma “verdadeira” intimidade para além das personas criadas pelo poeta. Seria mais efetivo refletirmos que, ao dizer: “Em todo texto, o autor morre, o autor dança, e isso é que dá literatura”,(13) Ana C. aproxima-se de uma concepção de literatura que nos remete a toda uma corrente de pensadores contemporâneos para quem a literatura não é o lugar da afirmação, mas sim, da desconstrução do sujeito. Com a idéia da morte do autor, Ana C. conversa com correntes que poderíamos chamar de “mais radicais” da crítica literária, onde podemos destacar Barthes, mas principalmente Derrida, que também foi um dos autores lidos por ela.

Para Foucault, um dos autores que interessaram bastante a Ana C., aqui está uma das revoluções trazidas por Nietzsche: trata-se, enfim, da possibilidade de se pensar o ser da linguagem, este que “só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”.(14) A partir daí, é como se fosse inaugurada a idéia de se encarar a linguagem como um ser independente, uma construção que exclui o sujeito, que coloca em xeque a evidência do eu. Na literatura, esta seria a novidade incorporada por Mallarmé. Segundo Foucault, a partir de sua poética, temos a fundação de “um dos princípios éticos da escrita contemporânea”, esta indiferença em relação ao autor produzindo uma escrita que se basta em si mesma. Igualmente para Barthes, a escrita de Mallarmé inaugura o esforço em suprimir o autor em proveito da escrita. Quem fala é a linguagem, e não este alguém anterior a ela; é a linguagem que fala por si só, e não importa de onde ela vem, mas sim, para onde ela vai.

Destacamos que não se trata de confidência quando Ana C. escreve seus diários ou monta suas cartas fictícias, ou seus poemas-carta, mas sim de construção, elaboração estética. Mas, para além disto, vale remarcar que, nesta operação de interferência no mundo, não se trata de um sujeito que se afirma através da linguagem, mas antes de um sujeito que se desfaz para fazer surgir a linguagem. Ou ainda, de um sujeito que, já de antemão, sabe da impossibilidade de sua captação, ou captura, pela linguagem. Devemos convocar aqui Maurice Blanchot, para quem o escritor não pode afirmar-se na linguagem, mesmo que assim o acredite ou deseje. Na escrita, ele é arrastado para fora de si e aí encerrado. A literatura só nasce desta renúncia do sujeito, devendo ser uma verdadeira quebra do vínculo que une a palavra ao eu. Temos assim, a poesia como um discurso impessoal, descolado da subjetividade do autor: “A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala ‘se fala’”.(15)

o não-dito

Com este pano de fundo, algumas coisas podem mudar na leitura dos poemas de Ana Cristina. Acreditamos que estas idéias são fundamentais ao nos depararmos com os textos fragmentários e disparatados de A Teus Pés, seu último livro, e único publicado por editora – reunindo os três anteriores de edição independente: Luvas de Pelica, Correspondência Completa e Cenas de Abril. Deslocar a leitura para uma concepção do texto como não-representação é importante ao lermos poemas que imitam cartas (como é o caso do Correspondência Completa) ou diários (em Luvas de Pelica e Cenas de Abril). Mas se torna ainda mais premente quando nos defrontamos com a desmontagem desses gêneros operada em A Teus Pés. Ali, além de utilizar formas que nos remetem a essas escritas “íntimas”, Ana C. ousa mais, fragmenta mais, como se fizesse uma verdadeira colagem cifrada de frases vindas de diversos lugares.

O que temos no fim são textos aparentemente desconexos, cheios de saltos, de versos que parecem não se encaixar. E muita coisa ainda com cara de diário, de correspondência. Resultado: a impressão de que há segredos escondidos nas entrelinhas, símbolos a serem decifrados, silêncios que suspendem o entendimento e aguçam a curiosidade: o que ela está querendo dizer? Entretanto, parece não ser bem essa a pergunta a ser feita. Segundo Ana C., não se trata de fazer uma literatura de entrelinhas. Esses vazios, saltos, silêncios, espaços em branco seriam o que ela define como o “não-dito” do texto literário, algo que difere bastante do que usualmente se entende por “entrelinha”. Acompanhemos Ana C.:

“A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (…) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (…) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?”.(16)

Não. Não busquemos o que está oculto no papel, no sentido de um significado fixo, escondido entre as linhas, codificado. O poeta não busca colocar símbolos no papel, como sinais nas placas de trânsito: uma coisa substituindo outra, uma coisa remetendo a outra especificamente determinada. Na poesia, tal qual a concebe Ana C., não há simbologia alguma, os elementos utilizados nos textos não estão ocupando “lugar de” ou representando algo. Questionada por alguém da platéia, no debate editado em Crítica e Tradução, a respeito do que ela quis dizer com a palavra “pato” em um de seus poemas, Ana Cristina enfatiza: “Pato, por acaso, é um significante que puxa muitos outros (…) Quanto mais puxar melhor (…) Não vou dizer nunca para você o que, para mim, o símbolo do pato significa…”.(17)

Tal é a natureza do que nos diz Ana C.: não busquem “o que eu quis dizer”, o que escondi por trás das palavras. Não há uma tradução para, por exemplo, a palavra “contramão” no poema/prosa “Mocidade independente”: “(…) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão”.(18) O que seriam interpretações que procurariam um significado para o termo, como por exemplo aludi-lo ao movimento subversivo, ou crer que ela insinuou que a mocidade anda na contramão, etc. As interpretações psicológicas, que procuram no texto ocultamentos da intimidade do autor, iriam em direção semelhante a esta.

No lugar disso, o ato de leitura consistiria basicamente no que ela chama de “puxar o significante”, ou seja, ir fazendo associações as mais diversas e inesperadas a cada vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar”.(19) As palavras devem ser encaradas como significantes nômades, que migram a cada leitura, ou seja, significantes com significados múltiplos, móveis, abertos. Para ela a linguagem poética não pretendia “dizer algo”, fazer literatura não é comunicar, não consiste em passar uma informação, transmitir palavras de ordem. “Tem um lado grilante da poesia. Ela não comunica”,(20) não do modo que nossa fala ou que o jornal comunicam. Eis um ponto central para Ana C.: a poesia revela mas não comunica.

Assim, no lugar de uma literatura de entrelinhas, Ana C. acredita no não-dito da literatura, um não-dito pertencente à própria materialidade textual. Enquanto a entrelinha remete a uma insinuação escondida, um “querer dizer sem dizer”, trazendo embutida uma concepção da poesia como veículo de comunicação (de significados, sentimentos, segredos), o não-dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto externo originário. Por isso, trata-se de um não-dito enquanto questão literária, que não se confunde com intenções pessoais do autor, nem segredos de sua intimidade, nem tampouco com a clausura da simbologia. Seria antes um não-dito da liberdade: justamente esses espaços em branco, esses silêncios em torno das palavras, que as dotam de infinitos “fios”, aqueles que cada leitor irá puxar a cada vez. As brechas que arejam o verso e abrem-no à possibilidade das imprevistas associações. E afinal, completa Ana C.: “Toda literatura tem esse lado de: ‘ainda há uma palavra não falada’ (…) sempre haverá alguma coisa que escapa”.(21)

Agradecimentos ao Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em especial à Elisabeth Pessoa e sua equipe de pesquisadoras que possibilitaram o acesso ao arquivo pessoal da Ana Cristina.

Notas
(*) Annita Costa Malufe é doutoranda no IEL-Unicamp.

(1) Cesar, Crítica e Tradução, p.267.

(2) Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica, p.43.

(3) Idem, p.74.

(4) Cesar, op. cit., p.273.

(5) Carta a Ana Candida Perez, de 18/09/76. Hollanda e Freitas Filho, Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta, p.226.

(6) Cesar, op. cit., p.163.

(7) Idem, p.252.

(8) Idem, p.164.

(9) Idem, ibidem.

(10) Deleuze, Critique et Clinique, p.12.

(11) Cesar, op. cit., p.262.

(12) Idem, p.259.

(13) Idem, p.266.

(14) Foucault, “O Pensamento do Exterior”, Ditos e Escritos III, p.222.

(15) Blanchot, O Espaço Literário, p.35.

(16) Cesar, op. cit., p.262.

(17) Idem, p.263.

(18) Cesar, A Teus Pés, p.44.

(19) Cesar, Crítica e Tradução, p.264.

(20) Idem, p.270.

(21) Idem, p.260.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O Rumor da Língua. Trad. António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987 (título original em francês Le Bruissement de la Langue, 1984).

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. (título original em francês L’Espace Littéraire, 1955).

CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999.

_________________. A Teus Pés. São Paulo: Editora Ática, 1999.

DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993.

ELIOT, T. S. Ensaios de Doutrina Crítica. Trad. Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães Editores, 1997 (seleção de ensaios realizada para a presente edição).

FOUCAULT, Michel. “O pensamento do exterior” e “O que é um autor”. In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 (título original em francês Dits et Écrits, 1994).

HOLLANDA, Heloisa B. e FREITAS FILHO, Armando (orgs.). Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

SÜSSEKIND, Flora. Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Rio de Janeiro: 7Letras, 1995.

Sobre a autora : Annita Costa Malufe nasceu em São Paulo em 1975, onde mora. É jornalista, formada pela PUC-SP, onde conclui o mestrado em 2003, no Programa de Comunicação e Semiótica, sobre a poesia de Ana Cristina Cesar. Autora de Fundos para dias de chuva (Ed.7Letras, Coleção Guizos, 2004), atualmente faz doutorado na Unicamp, no depto. de teoria e história literária, sobre poesia brasileira contemporânea.

( Artigo originalmente publicado em http://www.criticaecompanhia.com/index.htm)

 

Poemas

0)

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

1) 19 de abril

Era noite e uma luva de angústia me afagava o
pescoço. Composições escolares rodopiavam,
todas as que eu lera e escrevera e ainda uma
multidão herdada de mamãe. Era noite e uma
luva de angústia… Era inverno e a mulher
sozinha… Escureciam as esquinas e o vento
uivando… Saí com júbilo escolar nas pernas,
frases bem compostas de pornografia pura,
meninas de saiote que zumbiam nas escadas
íngremes. Galguei a ladeira com caretas,
antecipando o frio e os sons eróticos povoando
a sala esfumaçada.

2) Protuberância

Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito ma madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

3) Fagulha

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

4) Estou Atrás

do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.

5) Dias Não Menos Dias

Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde

e a tarde
pendurada ro raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima.

6) Deus na Antecâmera

Mereço(merecemos, meretrizes)
Perdão(perdoai-nos, patres conscripti)
Socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)

Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária

(sangue e amor se aconchegando
horas atrás de hora)

Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero parir ao repartir

Filho
Pai

E
Fogo
DE-LI-BE-RA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós(com a gente) se dando

HOMEM: ACORDA!

7) Psicografia

Também eu saio á revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo(não posso ainda acreditar
Na vida) e demito o verso como quem acena
E vivo como quem despede a raiva de Ter visto.

8) Sonho Rápido de Abril

As ambulâncias se calaram
as crianças suspenderam a voracidade batuta
dois versos deliraram por detrás dos túneis
moleza nos joelhos
mão de ferro nos peitinhos
tristeza suarenta, locomotiva, fútil
patinho feio
soldadinho de chumbo
manto de jacó, escada de jacó
sete anos de pastor
estrela demente desfilando na janela
de repente as ambulâncias estancaram o choro
voraz dos bebês.

9) Fisionomia

Não é mentira
é outra
a dor que doi
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói

10) Um Beijo

Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
“ao sucesso”
diria meu censor
“à escuta”
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.

11)

Acreditei que se amasse de novo

esqueceria outros

pelo menos três ou quatro rostos que amei

Num delírio de arquivística

organizei a memória em alfabetos

como quem conta carneiros e amansa

no entanto flanco aberto não esqueço

e amo em ti os outros rostos

(em Contagem regressiva – Inéditos e Dispersos)

12) Tu Queres Sono: Despede-te dos Ruídos
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

  1. Noite Carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

  1. Encontro de Assombrar na Catedral

Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que
não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida
passional, desta crueldade intensa que te
toma as duas mãos.

  1. Este Livro

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total., tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama

Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café

  1. Aventura na Casa Atarracada

Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
– Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: – Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

  1. O Homem Público N. 1 (Antologia)

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

  1. Nada, Esta Espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

  1. SONETO

    Pergunto aqui se sou louca
    Quem quer saberá dizer
    Pergunto mais, se sou sã
    E ainda mais, se sou eu

    Que uso o viés pra amar
    E finjo fingir que finjo
    Adorar o fingimento
    Fingindo que sou fingida

    Pergunto aqui meus senhores
    quem é a loura donzela
    que se chama Ana Cristina

    E que se diz ser alguém
    É um fenômeno mor
    Ou é um lapso sutil?

    olho muito tempo o corpo de um poema
    até perder de vista o que não seja corpo
    e sentir separado dentre os dentes
    um filete de sangue
    nas gengivas

FLORES DO MAIS

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

23.

Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:

  1. Travelling

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirma, “Perder é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”,
ria a Carolina perita no papel kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas as três bebi um pouco
sem notar
como quem procura um fio.
Nunca mais te disse
uma palavra, repito, preciso alto,
tarde da noite,
enquanto desalinho
28
sem luxo
sede
agulhadas
os pareceres que ouvi num dia interminável:
sem parecer mais com a luz ofuscante desse
mesmo dia interminável

  1. CARTILHA DA CURA

As mulheres e as crianças são as primeiras que

desistem de afundar navios.

  1. Sem título

Sem você bem que sou lago, montanha.

Penso num homem chamado Herberto.

Me deito a fumar debaixo da janela.

Respiro com vertigem. Rolo no chão.

E sem bravata, coração, aumento o preço.

  1. Toda Mulher

a coisa que mais o preocupava

naquele momento

era estudo de mulher

toda mulher

dos quinze aos dezoito

Não sou mais mulher.

Ela quer o sujeito

Coleciona histórias de amor.

  1. Anônimo

Sou linda; quando no cinema você roça

o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais

quem desejo, que me assa viva, comendo

coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura

inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no

cinema é escuro e a tela não importa, só o lado,

o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste

sabe onde me encontro até de olhos fechados;

falo pouco; encontre; esquina de Concentração com

Difusão,

lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.

  1. 18.8.80

I am going to pass around in a minute some lovely, glossy-blue
picture postcards.
Num minuto vou passar para vocês vários cartões postais belos e bri-
lhantes.
Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção.
Reparem nas minhas mãos, vazias.
Meus bolsos também estão vazios.
Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas.
Viro de costas, dou uma volta inteira.
Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão
escondido, nem jogos de luz enganadores.
A mala repousa nesta cadeira aqui.
Abro a mala com esta chave mestra em cerimônias
do tipo, se me permitem a brincadeira.
A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo,
é — adivinhem — um par de luvas.
Ei-las.
Pelica.
Coisa fina.
Visto as luvas — mão esquerda… mão direita… corte… perfeito.
Isso me lembra…
Um jovem artista perdido na elegante Berlim da Belle
Époque, sozinho, em vão procurando por
prazer. Passa um grupo ruidoso
de patinadores, e uma mulher de branco deixa cair
a sua luva, uma luva com seis botões, branca, longa, perfumada.
O jovem corre, apanha
a luva, mas reluta se deve aceitar ou não o desafio.
Afinal decide ignorá-lo, guarda a luva no bolso e volta caminhando para o seu hotel por ruas
mal iluminadas.
Mas assim me desvio do meu propósito desta noite.

30.

descuido não (concentração)
lembrar da caretice que você não gosta.
reaproveitar o casaquinho de banton.
quando você mal pensa que é novidade, não é.
Existe uma medida entre o descuido e a
premeditação — trata-se do cuidado (floating
attention). Daí escapam maps of England birds, pessoas seguindo numa certa direção,
bichos que vão virando gente, discretamente eróticos, desejando
mancha transparente e diluída de aquarela cor de rosa,
see?
Medida exata entre o acaso e a estrutura.

 

As cartas-poemas de Ana C

Em “Correspondência Incompleta”, a poeta Ana Cristina César extrai o sublime do prosaico e fala sobre a perplexidade de estar viva

Wilson Bueno

A editora Aeroplano, que nos deu, entre outros títulos, o excelente “Esses Poetas”, antologia com o melhor da poesia brasileira recente, volta à carga agora com “Correspondência Incompleta” (organização de Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda, 313 páginas, 1999), reunindo cartas escritas pela poeta Ana Cristina César, ícone carioca dos anos setentas e que, tendo se suicidado em 1983, converteu-se num dos maiores mitos literários tupiniquins. Motivos para tanto não faltaram: além da beleza física e da morte precoce aos 31 anos, Ana C. alcançou produzir, em meio ao geral desleixo dos poetas de sua geração, uma poesia originalíssima, com acento todo pessoal e intransferível, diferindo de seus pares no que havia de rigor baixo a aparente incúria de seu estro. Não creio tenha feito escola e nem granjeado seguidores, a exemplo de Paulo Leminski, outro poeta mítico e cuja influência é visível em nove dentre dez candidatos ao estrelato poético cá na República das Bruzundangas, para usar a expressão com que definia o País outro suicida em potencial o escritor Lima Barreto.

São 93 cartas, compreendendo um período que vai de 1976 a 1980, endereçadas a quatro das mais íntimas amigas da poeta: Clara Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda, Cecília Londres e Ana Cândida Perez. Anotações do cotidiano, o diário de uma vida voltada em exclusivo para a literatura, ainda que de um modo quase displicente, ao contrário do que espelha de novo a inevitável comparação a epistolagem de Leminski a Régis Bonviccino (“Envie Meu Dicionário”, Editora 34, 1999), onde a vida da escrita é uma usina de tormentosa ebulição.

Em “Ana C.”, não. Junto com o gosto e o gozo da escrita, ou antes deles, vem a paixão por tudo o que, miúdo, preside o cotidiano de uma moça brasileira no Rio de Janeiro dos anos setentas, ou esforçando-se para cumprir uma bolsa de estudos em Essex, na velha “England”. Lá como aqui o que há é a perplexidade de estar viva, ainda uma vez viva, indiferente se entre delícias ou fragorosas quedas no abismo. E aí, cada carta é um poema de Ana Cristina César, tocados todos de um “sentimento”, forte o bastante para fazer brotar, no canto do olho, mesmo do leitor mais distraído, uma furtiva lágrima, sobretudo face ao encanto, este poroso encanto capaz, só ele, de dar notícia do ido e do vivido; do aziago da vida sim; mas, tanta vez, também do seu mel.

Retalhos nostálgicos, notícias de ontem, o que estas cartas falam ninguém poderia falar com mais propriedade senão ela própria, Ana C., a cavalo de seu mito e de sua “mitologia” pessoal, na vivência minuciosa dos “anos loucos” onde oscilávamos entre comprar ou não um revólver para os momentos de pânico. Errar de cálculo, este tempo, se mostrou sempre fatal. Ana C., por um descuido, se enganou de pulso e de impulso e se atirou do oitavo andar do edifício feito o tropeço lúdico dentro de um sonho, ou de um pesadelo, do qual invariavelmente acordamos. Acontece que Ana C. não acordou mais. Para se tornar, daí em diante, o mito incurável de uma lenda sem-fim.

Este vosso resenheiro necessário esclarecer , tão zeloso em se manter rente aos livros que resenha, e portanto ciente de seus limites, aqui espraia-se um pouco, desdobra-se e até se perde posto que estas cartas, lidas tarde da noite no arrabalde, retrazem nas asas do tempo, entre outras coisas, o diário-de-bordo dos anos setentas baixo as noites cachorras da mais recente ditadura brasileira. Éramos os protagonistas de um entreato jocoso e arrepiante as mesmas ruas e bares e esquinas palmilhadas por Ana C. freqüentemente cruzavam-se com as do país deste vosso escriba, e sendo este “Correspondência Incompleta” o diário íntimo daqueles dias, impossível uma “imparcialidade”, desde já sem calor, frente a estes “versos” a sangue quente.

Refiro isto porque intuo que também o leitor destas cartas-balas, poemas-através, dificilmente permanecerá alheio às suas linhas tocadas da imprevisível majestade dos dias; pedem, uma a cada vez, as cartas de Ana C., mais que a simples leitura de seus signos, um empenho, um engajamento, um vigoroso pronunciamento “a favor”, tanto do que diz o diapasão do grito quanto do que expressam as intermitentes delícias do dia-a-dia umas vezes ávido; outras, meliante cantor. Cumplicidade, esta a palavra-projétil, este o tiro no escuro destas cartas escandalosas de tão íntimas e envenenadas do que a morte põe de ovos sucintos a cada página.

Para quem conhece “Correspondência Completa”, o delicioso livro falsamente epistolar, de 1979 (edição de autor), com uma única “missiva”, assinada por uma paradigmática “Júlia” , as cartas de agora dirigidas a quatro ex-professoras, todas mais velhas que ela, amigas a quem amava de aflito e invasivo amor e, principalmente, mulheres, com o compromisso visível aquele tempo de fazer desta condição, mais que gênero, ofício e arte, as cartas de agora neste sentido não surpreendem. Mas isto não quer dizer que deixem de acrescentar ao “poemário” de Ana C., alguns “novos” e inquietantes momentos da mais alta voltagem. Assim, a esmo: “Danço samba nesse baile absurdo, e me visto de mim quando preciso e quando não preciso. (…) Acho enfim que é provisório ser da condição dos avessos.” (cartão postal a Heloísa Buarque de Hollanda, s/data, onde assina molecamente “Júlio”…). “Se essa transa de escrever pintar mesmo, acho que eu arrisco dizer que vou passando da poesia para a ficção. Desejos de gente, cachorro passando, copos, bumerangues.” (carta a Cecília Londres, 7/7/1977). “Será que vou dançar na vida? Meu olho vivo tá tapado. O lado de fora bate pouco.” (a Heloísa Buarque de Hollanda, 7/5/1980).

Personagem de si mesma como, de modo nítido, assinala uma das destinatárias destas garrafas-ao-mar, Ana Cândida Perez, no oportuno espaço reservado ao final do livro para os respectivos comentários sobre a correspondência Ana Cristina César parece, desde sempre, engendrar à flor da vida o final colapso. Há, do começo ao fim desta “biografia” epistolar, uma exasperação, uma linha de fundo quase extenuante a cada dia vencido sob cansaço e melancolia, mesmo que perpassado pela minudência dos fortuitos desfrutes e das miúdas delícias. Não importa, a sua é uma beleza trágica. Lunar e saturnina, Ana C. nasceu com a vocação do mito e a ele e à sua construção se entregou com volúpia.

Mas nas 93 cartas de “Correspondência Incompleta”, (magnífico o projeto gráfico de Cecília Leal) o que temos, ainda que com o mito entranhado na garganta, é o melhor de Ana C., aquilo que em última instância a valida a sua música; a capacidade, que é de poucos na história de nossas pobres letras, de arrancar do prosaico o mais sublime. A sua poesia foi esta mesma que as cartas de agora só fazem repor ao primeiro plano a capacidade de extrair da superfície maleável das coisas e de sua gratuidade muita vez enganosa, significâncias supremas, transcendências, ouros mágicos, a lata perplexa face ao próprio brilho, como uma “peça” de Andy Warhol ou o exasperante meio-dia num quadro de Edward Hopper.

Sobre o autor : Wilson Bueno ( wilsonbueno@uol.com.br ) é escritor, autor de “Mar Paraguayo” (Iluminuras), “Cristal” (Siciliano) e do recém-lançado “Jardim Zoológico” (Iluminuras, 1999), entre outros. Escreve às quartas-feiras no Anexo

( Artigo originalmente publicado em http://www1.an.com.br/1999/dez/07/0ane.htm)

 

Biografia

Poetisa fluminense (2/6/1952-29/10/1983). Ana Cristina Cruz César nasce no Rio de Janeiro, filha de pai sociólogo e mãe professora. Publica seus primeiros poemas aos 7 anos, no Suplemento Literário do jornal Tribuna da Imprensa.

Forma-se em letras em 1975, pela PUC-RJ, e conclui o mestrado em comunicação pela UFRJ em 1979, ano em que lança Cenas de Abril e Correspondência Completa. No ano seguinte, vai para a Inglaterra estudar tradução literária em Essex e publica Luvas de Pelica e Literatura Não É Documento, tese de mestrado sobre literatura no cinema.

A Teus Pés, seu último livro publicado em vida, sai em 1982 pela editora Brasiliense. Escreve resenhas literárias e ensaios nos jornais Opinião, O Beijo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e nas revistas Veja e IstoÉ.

Também trabalha como tradutora de poetas estrangeiros, entre eles Silvia Plath. De acordo com o escritor Armando Freitas Filho, seu amigo desde o início dos anos 70, antes de se suicidar, aos 31 anos, a escritora apresenta forte crise de depressão, resultado de surtos melancólicos que começam depois de sua volta da Inglaterra. Armando é responsável pela publicação de sua obra póstuma, os livros Inéditos e Dispersos, prosa e poesia (1985); Escritos na Inglaterra, ensaios e textos sobre tradução e literatura (1988); e Escritos no Rio, artigos, textos acadêmicos e depoimentos (1993).

Bibliografia

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (sel, intr).  26 poetas hoje.  Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. (Bolso)

CESAR, Ana Cristina. Cenas de abril. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1979
________________. Correspondência completa. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1979
________________. Luvas de pelica. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1980
________________. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: MEC / Funarte, 1980
________________. Caderno de desenhos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1980
________________. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982
________________. A teus pés. São Paulo: Ática / IMS, 1998
________________. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática / IMS, 1999
________________. Crítica e tradução. São Paulo: Ática / IMS, 1999
________________. Organização de Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda.  Correspondência incompleta. São Paulo: Aeroplano / IMS, 1999

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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