O Gran OK final: um filho enjeitado, mas legítimo, de Gabo
por Douglas Portari
“As pessoas não morrem, ficam encantadas […] O mundo é mágico.”
João Guimarães Rosa, em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 1967*
Em abril, uma década terá se passado desde que o colombiano Gabriel García Márquez, então já apartado do mundo pelo apagamento de sua memória, abandonou definitivamente o realismo para abraçar o mágico. Encantou-se, numa quinta-feira de Semana Santa, na Cidade do México. Ele discordaria, claro. “Soy un realista puro. El hecho es que la realidad de América Latina es mucho más mágica de lo que podemos concebir”. Obviamente.
Pois essa realidade mágica da qual Gabo nos alertava inventa agora, dez anos depois de o escritor ter deixado este mundo e 20 anos desde o lançamento de seu último livro, uma obra sua inédita. No último dia 6 de março, data em que o mais ilustre cataquero faria 97 anos, a novela Em Agosto nos Vemos chegou não apenas a essas terras fantásticas e de veias ainda abertas da América Latina, mas ao mundo todo, em traduções para mais de 40 línguas.
O amor nos tempos da desobediência filial
O lançamento do livro é o terceiro ato de uma trama de mais de duas décadas, de uma obra de gestação difícil e de parto a fórceps. Em meados dos anos 2000, depois de pelejar por anos com o material, gerando diferentes versões, Gabo desistiu e disse que o livro tinha de ser destruído. Um filho legítimo, mas enjeitado pelo pai, e salvo apenas pela intervenção de seus irmãos: o cineasta Rodrigo García e o ilustrador e editor Gonzalo García Barcha.
Em entrevistas coletivas – e no prefácio do livro recém-publicado – os irmãos explicam a razão de sua desobediência. Apesar de Gabo ter se empenhado intensamente no livro, entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, Rodrigo e Gonzalo creem que o pai havia perdido a capacidade crítica para julgar o trabalho, devido ao avanço da perda de memória e da demência. Relendo o material, os irmãos decidiram que a obra merecia vir ao mundo.
O jornalista Jaime Abello Banfi, amigo de Gabo e cofundador com este da Fundación para un Nuevo Periodismo Iberoamericano (hoje, Fundación Gabo), da qual é diretor-geral há 30 anos, concorda com a dupla. “Considero que eles estão mais bem informados do que ninguém sobre a saúde e o estado mental do pai. A princípio Gabo percebeu que estava perdendo a memória. Eu mesmo vivi situações em que ele me disse ou me deu a entender isso. E por ser uma doença progressiva, mais tarde simplesmente ele foi se esvaindo de lembranças e lucidez. A decisão dos filhos é legítima: estão legalmente autorizados, tomaram-na com calma e ponderação, confiaram a uma cuidadosa revisão editorial e foram publicamente transparentes ao apresentar o livro como um trabalho em progresso que seu pai não queria publicar”.
Crônica de um nascimento anunciado
Um brasileiro, em especial, também defende o imprimatur: Eric Nepomuceno, jornalista e tradutor premiado do melhor que a hispano-américa produziu – Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Eduardo Galeano, Juan Rulfo (que Gabo adorava) e várias obras do próprio García Márquez (esta, inclusive). “Se essa vontade [de destruir o livro] fosse rigorosamente respeitada, não conheceríamos a obra de Kafka, vários contos de Hemingway, outros tantos de Fitzgerald etc. Quando – penso eu – o autor realmente não quer que sua obra algum dia seja conhecida, ele deve queimá-la.”
Amigo de Gabo desde os anos 1970, quando começou a traduzir suas obras, Nepomuceno conta que uma única vez o consultou sobre alguns termos. “Mandei seis palavras que tinham ou poderiam ter duplo sentido. A resposta: seis vezes a mesma frase, ‘vá ao dicionário’. Ele dizia que por sermos amigos, eu era um tradutor proibido de consultar.” Sobre o novo livro, ele lembra que o escritor trabalhava no material, no início dos anos 2000, “antes que o Alzheimer avançasse de maneira implacável”, comentando, várias vezes, que “estava escrevendo contos de amor”.
E assim, dos arquivos com mais de 27 mil documentos de Gabo que repousam no Harry Ransom Center, da Universidade do Texas, a mantenedora de seu acervo, vieram à luz as histórias de amor de Ana Magdalena Bach. Uma mulher com pouco menos de 50 anos, casada, com filhos já adultos, mas independente e que, em viagens anuais solitárias ao túmulo da mãe, em uma ilha do Caribe, descobre uma liberdade inédita e toda uma nova vida sexual.
O Gran OK final
Do que veio a ser Em Agosto Nos Vemos, a Universidade do Texas guarda cinco diferentes versões, somando 769 páginas. A quinta pasta, marcada por Gabo com um “Gran OK final”, e que chegou a ser enviada, em 2004, para sua editora Carmen Balcells, mais as anotações feitas com a secretária do escritor, serviram a renda para a costura do editor espanhol Cristóbal Pera, que já havia trabalhado na autobiografia do colombiano, Viver para Contá-la (2002), e na compilação de suas apresentações, Eu Não Vim Fazer um Discurso (2011).
Para Banfi, a “novela foi um projeto literário que continuou a ser esculpido pelo autor em seu escritório cinco anos após a leitura pública de seu primeiro capítulo [em 1999, durante um encontro na Casa de América, em Madri, em um evento que contou também com outro Nobel, José Saramago]. Quando Gabo o abandonou em sua quinta versão, acho que ele simplesmente ainda não estava satisfeito com o texto, mas sua força e clareza como escultor literário haviam desaparecido”.
Apesar de ser uma obra completa e cuja edição respeitou notas e correções do autor, a crítica aponta a falta do incansável trabalho de ourives de Gabo. Faltou-lhe tempo para burilar certas frases. “Certamente faltou. Mas isso não impede que seja uma obra de imensa beleza. Se tivesse sido escrita por qualquer outro, levaria seu autor aos céus. Mas como se trata de García Márquez, a gente sente falta daquela revisão final, daquele acabamento único. Mas, reitero: ainda assim, é um livro imenso, belíssimo”, crava Nepomuceno.
A incrível e feliz história de Ana Magdalena Bach
Alguns críticos creem que a obra forma um tríptico sobre o amor maduro junto com os livros Do amor e Outros Demônios (1994) e Memória de Minhas Putas Tristes (2004). Banfi crê que o livro é mais próximo e comparável a este último e às memórias de Gabo, Viver para Contá-la (2002). “Não é uma novela fundamental na obra literária geral de Gabo, mas a considero interessante e agradável. E seu protagonismo feminino é um bom encerramento para a carreira criativa de Gabo”.
De fato, esta novela, mesmo que menor (sob o injusto parâmetro da obra ciclópica deixada por Gabo), traz, pela primeira vez, a narrativa sob a perspectiva de uma protagonista feminina com agência, uma mulher dona de seus caminhos. Não que a obra de Gabo careça de mulheres fortes e que moveram suas tramas para outros planos. Mas todas foram barcos frágeis – corajosos, sem dúvida, porém –, à deriva nos caudalosos e traiçoeiros rios de um mundo masculino e hostil.
Úrsula Iguarán, a matriarca que, resignada, queria não ter papas na língua, como um forasteiro, pra poder botar para fora o escorpião que levava no peito (porra!); Fermina Daza, orgulhosa e decidida, mas refém de uma classe social que desprezava e não percebia ter adotado; Eréndira, coitada, com suas tetinhas de cachorra em seus parcos 42 quilos, e cuja avó, a velha desalmada, nem nome tinha. Todas elas protagonistas em suas histórias, mas não em suas vidas. Ana Magdalena Bach quebra essa escrita.
A primavera do patriarca
“O livro é García Márquez em estado puro. Narrado no tom de voz dele na copa da cozinha da sua casa em San Angel Inn, na cidade do México”, garante Nepomuceno, que pela primeira vez, traduziu o amigo sem tê-lo ao alcance. “Foi complicado, mas ao mesmo tempo muito emocionante. O que fazíamos sempre era, terminada a tradução, comentarmos o livro. Ele fazia perguntas diretas sobre personagens, cenas, frases, diálogos, situações. E a gente se divertia muito. Disso sim, senti uma falta tremenda…”
Com essa nova obra nas prateleiras, uma série para a Netflix baseada no épico Cem Anos de Solidão, e seu centenário, em 2027, à porta, Gabo parece viver uma nova primavera. Sua fundação, ligada a uma das suas primeiras paixões, o jornalismo, completa 30 anos este ano e encabeça uma série de projetos.
“Estamos desenvolvendo um programa estratégico denominado ‘De 10 a 100’, para o ciclo comemorativo que se inicia este ano com o 10º aniversário de sua morte e culminará em 2027 com a celebração de seu centenário. A ideia é também promover e realizar iniciativas transformadoras e sustentáveis nas áreas que mais interessavam a Gabo, não somente como jornalista, mas como criador literário, cineasta, educador, intelectual público e cidadão comprometido”, explica Banfi.
Quanto a Rodrigo e Gonzalo, ele esperam que o pai os perdoe pela publicação póstuma. Mais do que isso, talvez Gabo celebre a rebeldia. Pois ele sabe que a decisão estendeu a todos os seus leitores a chance de fazer valer a sua vontade. Há os que irão salvar o livro em suas estantes, honrando o esforço de alguém que lutou o quanto pode contra a debacle humana que nos aguarda a todos. E há os que irão abrir uma garrafa de aguardiente enquanto veem as folhas de Em Agosto nos Vemos queimar. Ambas homenagens a Gabo e à realidade da América Latina, teimosamente mais mágica do que podemos conceber.
Douglas Portari é jornalista há 25 anos. Como repórter e editor colaborou com veículos da mídia tradicional à independente, cobrindo principalmente temas culturais e sociais. Em 2019, foi becário da Bolsa Gabo de Jornalismo Cultural, da Fundación Gabriel García Márquez.