O ensaísta Montaigne, precursor do jornalismo moderno

O ensaísta Montaigne, precursor do jornalismo moderno.

 “Aquele que castiga quando está irritado não corrige, vinga-se”.

Michel de Montaigne foi parte de um dos momentos decisivos de nossa civilização: o século XVII. Nobre, nasceu no castelo de Montaigne, na região de Bordeaux, França, em fevereiro de 1533.

Estudioso toda a vida, foi jurista, político e filósofo, o inventor do gênero ensaio. E, sem dúvida, um dos maiores humanistas da história!

Montaigne era um generalista, na contramão de todos os grandes espíritos de sua época, como os renascentistas, os humanistas, os reformadores e cientistas, sempre especialistas em determinados temas.

Durante sua juventude e maturidade se intensificaram as violentas guerras civis e religiosas que o acompanhariam pelo restante da vida. Viveu um dos momentos mais conturbados da França, quando a luta política e religiosa entre protestantes e católicos quase rompeu a unidade do país. Além disto, a França da época sobrevivia em meio à crise entre os dois impérios mais poderosos do mundo: a Inglaterra de Elizabeth e a Espanha de Filipe.

Montaigne era um homem de coração aberto às novidades, acolhedor, que não recusava a aventura, mas entregava-se. Um homem reservado, mas que apreciava a boa companhia. Plantava sempre uma barreira entre o seu homem interior e o mundo, e na segurança desse conforto desenvolveu-se a atividade de um dos homens mais sagazes de seu século.

Possuía também em alto grau o sentido de lealdade e de decoro. Era fiel ao seu rei, agradável à família, protegia os amigos e era respeitoso para com os inferiores socialmente, assim como franco para com os superiores.

Não foi uma personagem de destaque na Corte foi porque não o quis.

Em 1571, cansado do convívio social, aos 38 anos, decidiu se retirar da vida política para a propriedade herdada de seu pai. Seu único objetivo era escrever suas reflexões. Montaigne tornou-se um defensor de sua paz interior.

A solidão interiorizada foi sua própria vida, seu existir consigo mesmo, sua casa, seu jardim, sua câmara de tesouros, onde estavam os livros e coisas que angariara pela vida. Dá curso a suas forças interiores, aos pensamentos, às críticas e autocríticas, ao seu corpo.

Põe-se a escrever, afinal, “Abandonar a vida por um sonho é estimá-la exatamente por quanto ela vale”.

Os “Ensaios”.

Os “Ensaios” possuem um imenso didatismo que se pereniza, do qual se torna difícil discordar.

Em março de 1580, Michel de Montaigne publicou a primeira edição de “Ensaios”, constituída de dois livros divididos em 94 capítulos. Uma segunda edição foi publicada logo em 1582, e a terceira já em 1588.

“Ensaios” foi best-seller em seu tempo! Uma das mais importantes e influentes obras do Renascimento tardio e que exerceu profunda influência sobre o pensamento no século XVIII, um dos alicerces do Iluminismo.

Neste novo gênero literário o escritor faz reflexões pessoais e subjetivas sobre os mais diversos temas como religião, educação, amizade, amor, liberdade, guerra etc.

“Eu sou eu mesmo o tema do meu livro”.  Uma tentativa de aprender sobre si mesmo e os próprios sentimentos, questionadora e crítica. Ao realiza-lo, Montaigne redescobre o indivíduo esquecido e o recoloca-o no centro do mundo, depois de um longo silêncio.

“A felicidade está em usufruir e não apenas em possuir”.

Em uma de suas primeiras meditações após seu isolamento social, escreveu: “É preciso fazer como os animais que apagam suas pegadas quando entram em suas tocas. ”

O público dos “Ensaios” não existia, pois ele jamais escreveu para a Corte, tampouco para católicos ou protestantes, nem para humanistas ou qualquer agrupamento. Escrevia para poucos amigos, para homens que queriam conhecer sua própria existência, um público que futuramente ganharia a denominação de “pessoas cultas”.

Mas Montaigne não tinha consciência disso. Dizia escrever para si mesmo, para investigar-se, aprender a viver e a morrer, e para poucos amigos para que tivessem uma clara imagem de si após sua morte. “Somente sabe viver quem aprendeu a morrer”.

Mas Montaigne não é um filósofo, não possui ou segue sistema algum. “Para que aprender a morrer, se a própria natureza se encarregará disso.”

“Por um único indivíduo, pode-se reconhecer a espécie humana.”

Como escreve de si e para si, “se alguém descobrir algo de utilidade, terá muito prazer”.

“Proibir algo é despertar o desejo”.

Montaigne narra como vive, como terá que morrer, e começa a se conformar com isso.

Narra também o que viu e ouviu de outros a seu respeito. Na verdade, ele foi exatamente o que disse que não seria: “um fazedor de livros”. Montaigne é o primeiro escritor moderno!

A partir de Montaigne, chegando a Voltaire, ocorre uma ascensão contínua do papel do escritor! No século XIX e até os anos 1980, chegarão a ser considerados “a voz do mundo”.

E o jornalismo surgirá através deles.

A independência intelectual de Montaigne.

Montaigne lia muitíssimo. Lia com método e assiduidade. Anotava as próprias experiências relativas às suas leituras para compará-las com o que havia lido, resgatando passagens de leituras anteriores. Talvez o principal atributo de Montaigne seja o desmascaramento. Nele não há eufemismos, e as palavras são correntes e despojadas, tudo o que busca é a expressão que faça justiça ao objeto.

 O resultado é a mais correta nudez das coisas de que trata.

“O homem que teme o sofrimento já está sofrendo pelo que teme”.

Montaigne foi cristão e católico. Mas em seu trabalho não existem vestígios de esperança na redenção ou de imortalidade. Ele escreveu sobre religiões como se fossem parcelas de usos e costumes e assinalou suas instabilidades, incoerências, afinal, nada de obras divinas, mas, sim, obras humanas, divinizadas!

Suas observações são sempre aquelas de um homem sincero e sensível, jamais de um crente:

“Mergulho na morte de cabeça baixa, estupidamente, sem a observar ou reconhecer, como se me precipitasse em um abismo mudo e obscuro que me engolisse repentinamente e se apossasse de mim num instante como um sono pesado, repleto de insipidez e indolência. ”

Ele insiste que a morte não irá assombrá-lo desnecessariamente enquanto não for a hora, embora “de nada sirva desviar o olhar e fugir”.

Montaigne, por outro lado, possui a volúpia como virtude, por isso mergulha fundo na sensualidade da vida, única forma de desfrutar de si próprio.Lembra-se, então, com saudades da juventude e recusa-se a apreciar a sabedoria da velhice.

O mesmo sentido Montaigne sente da sociedade. Não tenta modifica-la, melhorá-la. Apenas a aceita, pois os costumes, as instituições, os ordenamentos “são todos igualmente tolos e extravagantes”.

Vivia em uma época de lutas políticas e religiosas, mas tinha a esperança de poderiam conduzir a algo pelo menos moderado, estável.

“Uso, costumes, leis e religiões desaparecem. Estou sozinho, a morte é certa. Não estou em casa, não sei de onde venho nem para onde vou. O que possuo, o que me resta? Eu mesmo. ”

Afinal, “O homem não é tão ferido pelo que acontece, e sim por sua opinião sobre o que acontece”.

(Fonte: https://proust.net.br/o-ensaista-montaigne-precursor-do-jornalismo-moderno/)

 

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