200 ANOS – DOSSIÊ DOSTOIÉVSKI

“Chamam-me de psicólogo: não é verdade. Sou apenas realista no sentido mais elevado. Ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana”. O pensamento do escritor russo Fiódor Dostoiévski (nascido em 11 de novembro de 1821) permanece mais vivo que nunca 200 anos após seu nascimento. Profundamente influente dentro da literatura mundial, Dostoiévski representa de forma insubstituível o retrato do autor que ao invés de simplesmente ser lido, invade e decifra seus leitores. Marcando a data, o LetraseLivros preparou para seus leitores “ Dossiê Dostoievski”. Ensaios, resumo de obras, cronologia. Em seu livro “ O óbvio ululante”, Nelson Rodrigues afirmou que “poderia-se viver para um único livro de Dostoievski”. Que você leitor, julgue e reflita.

CAPÍTULO I

Fiódor Dostoiévski: o escritor em seu contexto histórico.

O conjunto da vastíssima obra de Dostoiévski é tão atual quanto possam ser os tormentos da alma e os escaninhos de nosso subconsciente, pois de alguma forma a ele foi dado, como a poucos, o conhecimento do coração humano, cujas veleidades mais ocultas são postas a nu nos seus personagens.

É bem verdade que a arte de Dostoiévski não se direciona a todos os tipos de leitores. Ela se volta basicamente para espíritos que sejam ansiosos, aqueles que vivam sob as tensões existenciais paralelas às de seus personagens, ou, dito de outra forma, Dostoiévski busca leitores capazes de vivenciarem as paixões que chegam até eles pela literatura. E estes, ao descobrirem-no, sentirão que os romances do grande escritor russo agem de uma maneira hipnotizadora sobre si próprios. “Com uma volúpia consciente, diabólica, Dostoiévski retarda o momento em que seremos conquistados, levando-nos ao paroxismo da angústia interior”, sublinha Zweig.

Dostoiévski era politicamente um conservador, mas um conservador de talhe profundamente humanista. Em toda a sua imensa obra, ele propugna pela dignidade do ser humano, pelo amor ao próximo, pela fraternidade universal, expressando como ninguém o sentimento de com- paixão pelos fracos e oprimidos e pela redenção dos degradados sociais. Satiriza e ridiculariza como ninguém as vaidades, o consumismo, a corrupção social e a mediocridade das altas rodas.

Fiodor Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821, filho de um médico de origem nobre e instruído, mas empobrecido, altamente depressivo e com acessos de cólera. A mãe era uma simples camponesa e dela pouco sabemos. Seu primeiro lar foi um hospital militar.

A infância de Dostoiévski passou-se sob a autocracia do Czar Nicolau I, celebrizado por Tolstói como Nicolau “Palkine”, o homem da palka, o espancador. Reinado marcado por uma política imperialista agressiva e guerras frequentes, assim como por uma repressão implacável. Época também de estagnação econômica e avanço de uma burocracia que perpetuava privilégios e impedia avanços burgueses e liberais.

Em 1833, o Czar fez formular aquele que seria seu programa de governo: “Autocracia, Ortodoxia e Nacionalidade”. Estipulava que as pessoas deveriam mostrar lealdade à autoridade ilimitada do Czar, às tradições da Igreja Ortodoxa e, de uma forma mais vaga, à nação russa. Ademais, praticamente abolia a existência das diversas nacionalidades dentro do hemisfério russo.

Aos dezesseis anos morreu-lhe a mãe e o pai tomou a decisão de mudar-se com os filhos para o campo. Entregou-se logo após à bebida e em um de seus acessos coléricos terminou assassinado pelos próprios servos.

Fiodor estava matriculado na Academia de Engenharia Militar em S. Petersburgo. Considerado um jovem de poucos amigos, impetuoso e sensível, perdulário e ambicioso, saíra de algum modo ao pai. Era um leitor tão ardente quanto seu irmão Mikhail e não tardou para que se desinteressasse pela carreira militar e abraçasse a literária.

Em 1844, aos vinte e três anos, já o encontramos vivendo na pobreza daqueles que, sem fortuna, se dedicam aos livros. “Gente Humilde”, o primeiro romance, é inserido no romantismo da época e foi uma grande descoberta para a intelectualidade petersburguense. Na expressão do poeta Nekrassov, endossada pelo crítico Bielínski, surgia um novo Gogol!

Incentivado por todos a seguir a carreira literária, ao publicar seu segundo romance, “O Duplo”, onde principia a escrita sobre temas psicológicos, no caso a paranoia, sentiu que o êxito obtido principiava por escapava-lhe das mãos.

Chegamos, então, ao ano de 1848 e o espírito do tempo era o da revolta. Denominado de “A primavera dos povos”, o ano foi marcado por sublevações em quase toda a Europa. Neste mesmo ano, ocorre o lançamento do Manifesto Comunista de Marx e Engels: “Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo”.

Dostoiévski, assim como muitos outros intelectuais russos, entusiasmou-se pelos temas libertários e foi fundada uma associação literária: o Círculo Petrachevski. Também é certo que, ademais do grupo literário, Dostoiévski participou de uma organização radical secreta, liderada por Nikolai Spechniev. Essa sua associação, por sorte, jamais chegaria a ser descoberta pelas autoridades czaristas.

Na Rússia aumentavam as perseguições aos intelectuais que clamavam por reformas liberalizantes. Nada melhor para o czarismo que inventar uma conjuração contra o Império, denominando-a de “Conspiração Petrachevski”. Desencadeada a repressão, esta redundaria no episódio mais terrível na vida de Dostoiévski, o qual marcou claramente todas suas obras futuras. O grupo Petrachevski foi preso e confinado na Fortaleza de Pedro e Paulo.

Dostoiévski manteve-se corajosamente calado em todo o interrogatório e ainda subscreveu uma petição reafirmando seus princípios liberais. Após oito meses em solitária, surgiu a principal acusação: haver lido em público uma carta aberta do escritor social- revolucionário Bielínski, então falecido, ao escritor Nikolai Gogol, na qual o autor de “Almas Mortas” era criticado por suas visões políticas e sociais conservadoras! E por esse único fato, Dostoiévski foi condenado à morte!

Já vendado, a comutação da sentença capital pelo Czar ocorreu no último momento. Dostoiévski foi, então, enviado à Sibéria para quatro anos de trabalhos forçados. A Bíblia foi o único livro que lhe permitiram levar no longo martírio da casa prisional, onde será uma sombra entre as sombras, sem nome, apenas um número, esquecido dentre tantos outros “mortos sem sepultura”.

Quando, chegando à Sibéria, os soldados tiraram-lhe das pernas feridas as correntes que as prendiam, o condenado de vinte e oito anos havia mantido intocável e indestrutível o desejo de vida, de escrever e de tudo anotar em sua prodigiosa memória para um dia servir-lhe de material de criação. E como lhe serviriam! Anos após, em 1862, surgiria o romance autobiográfico “Recordações da Casa dos Mortos”, um libelo contra a tortura e o genocídio nas prisões czaristas!

Em carta a seu irmão Dostoiévski comenta sobre o calvário vivido: “Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo- eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo.”

Os quatro anos de trabalho forçado mudaram física e intelectualmente o escritor. Ele desenvolveu os primeiros sintomas da epilepsia que o acompanhariam até a morte, e sua visão de mundo e dos homens tornou-se amarga e complexa, sepultando antigos ideais liberais.

Ao final do período, ainda cumprirá mais cinco anos como soldado na fronteira com a Mongólia, sendo-lhe proibida qualquer publicação.

No exílio, casa-se com a viúva de um amigo suboficial, Maria Dmitrievna, construindo um relacionamento desde logo conflituoso. Na própria noite de núpcias, Dostoiévski foi acometido por ataque epilético. Anos mais tarde, Maria em seu leito de morte confessa-lhe que sempre o havia traído, até mesmo naquela noite.

Decorridos nove anos, com a esposa e um enteado, Dostoiévski tem autorização para retornar do exílio à Petersburgo, já sob o reinado do novo Czar. Era o ano de 1859 e o clima intelectual na metrópole mudara. Havia um pouco mais de abertura, um novo nacionalismo de cor eslavófila se afigurava.

O período de 1859 a 1865 foram transformadores para Dostoiévski. Junto com seu irmão Mikhail, fundou a revista “O Tempo”. Em formato de folhetim, publicou seu novo livro: “Humilhados e ofendidos”.

Em 1862, pela primeira vez, aos quarenta e um anos de idade, Fiodor viajará à Europa onde descobrirá duas paixões: uma pela roleta e outra por Pauline Suslova, uma estudante russa liberada de preconceitos. Suslova, com seus dezesseis anos, torna-se amante do escritor que principiava a ser famoso. Mas a moça, rapidamente, o troca por um novo amor e ele, um ano após a partida, retorna à Rússia. Dostoiévski contraíra dívidas e quem o socorre com um empréstimo, que somente será pago nove anos depois, é o escritor Turguêniev.

Na volta à Petersburgo, aguarda-o a esposa tuberculosa, Maria Dmitrievna, e meses após, falece seu irmão Mikhail. A revista “O Tempo” é fechada pela censura. No entanto, o espírito inquieto de Dostoiévski decide abrir nova publicação: “A Época”. E o faz sob o assédio permanente de censores e de credores.

O destino reservava ao escritor um tempo de profunda solidão. Em 1864, após o irmão falece a esposa enfermiça. Dostoiévski, que sempre teve dificuldade em desenvolver relacionamentos interpessoais, encontra-se agora totalmente só. Solitário e com dívidas, tendo de cuidar do sustento de si mesmo, da família do irmão morto e do enteado.

É quando escreve “O homem do subterrâneo”, uma obra antirromântica de um pessimismo azedo, influência de seu estado de espírito depressivo e absoluto isolamento. Ora, eis uma obra absolutamente moderna, o princípio de nova forma literária confessional e irônica, prenunciando o Existencialismo com antecipação de meio século!

De todo os modos, as reformas de Alexandre II, apesar de modestas, eram uma prova evidente que o paquiderme- crocodilo do Estado Czarista poderia mover-se. E é nessa conjuntura que, surge “O crocodilo”, no qual Dostoiévski assinala mais uma nova senda literária futura: o Surrealismo. E será a ele que Kafka recorrerá ao escrever a “Metamorfose”.

Se por um lado, “O crocodilo” assinala o princípio da fase de maturidade criativa, em poucos de seus tantos escritos observamos um Dostoiévski mais livre, sarcástico, irônico e por que não dizer, bem humorado! Acontece que ele vivia uma realidade pessoal de todo modo nova: um novo casamento, em 1867, com a moça que ele contratara para a taquigrafia de “O Jogador” e das primeiras páginas de “Crime e Castigo”, a jovem Ana Grigorievna.

Fiodor logrou alcançar com Ana uma relação afetiva harmoniosa. Fugira da Rússia pelas dívidas que poderiam leva-lo à cadeia, e residia agora em Dresden com a família. Ana engravida pela segunda vez e nem os credores ou os censores oficiais lhe batiam mais à porta. Há algum tempo também deixara as roletas e os baralhos, considerando-se curado do antigo vício.

No tempo certo retorna a Petersburgo e seus últimos romances tiveram uma “editora” e “distribuidora” especial, a própria esposa. Dostoiévski não precisava mais vender direitos autorais antecipados; Ana administrava suas contas e a família podia até mesmo dar-se ao luxo de passar férias em uma dacha.

A cada palestra proferida pelo grande russo maior era o público, suas edições se esgotavam rapidamente. Surgiram um a um seus maiores trabalhos, considerados como os da maturidade artística, em ordem cronológica: “Crime e Castigo”, 1866/ 1868; “O Idiota”, 1869; “Os Demônios”, 1872; “O Adolescente”, 1875; “Os Irmãos Karamazovi”, 1881. Todas elas trabalhos monumentais que, literariamente, deram forma à espiritualidade do homem moderno.

Em 1880, participou da inauguração do monumento a Aleksandre Pushkin em Moscou, onde proferiu um discurso memorável sobre o destino da Rússia no mundo, premonitório da própria revolução de 1917. Em alta voz destacou a importância da união da humanidade, definindo-a como o único caminho para a sobrevivência harmoniosa. “Eles prometeram que não iriam mais odiar, mas simplesmente amar uns aos outros”, escreveu Fiódor Dostoiévski emocionado em carta à esposa Anna Dostoyevskaya, em junho de 1880. Em novembro deste mesmo ano, terminou de escrever “Os Irmãos Karamazovi”.

Sua morte ocorre em Petersburgo no dia 10 de fevereiro de 1881, por hemorragia pulmonar associada ao enfisema. Um momento de dor muda varreu toda a Rússia. Das cidades mais distantes surgem enviados para prestarem uma última homenagem. A Rua do Ferreiro, sua residência e onde foi posta a câmara ardente, foi insuficiente para uma multidão de mais de sessenta mil pessoas que se comprimiu em cortejo até o Monastério de Alexandre Nevski, onde os restos mortais repousam.

Três semanas após seu enterro, o Czar Alexandre II sofreu um segundo atentado terrorista e também morreu. Foi coroado czar seu filho, Alexandre III que, ao estilo arquireacionário do avô Nicolau I, se encarregará de reverter a maioria das reformas liberalizantes realizadas pelo pai.

Essa foi a vida e o contexto histórico em que viveu um dos mais geniais escritores trágicos de todos os tempos: Fiódor Dostoiévski.

( Fonte: https://www.proust.com.br/post/fi%C3%B3dor-dostoi%C3%A9vski-o-escritor-em-seu-contexto-hist%C3%B3rico)

 

CAPÍTULO II

“Crime e Castigo”: um alicerce do pensamento moderno

“Crime e Castigo”, o romance mais famoso de Dostoiévski, é ao mesmo tempo um dos mais bem escritos de toda literatura mundial. Foi feliz Marcel Proust ao escrever que todos os romances desse grande escritor russo poderiam ser denominados Crimes e Castigos, uma espécie de tributo àquele escrito que é um marco na formatação do pensamento moderno.

Quando o romance genial era tão somente anotações, desenhos, um plano, Dostoiévski enviou a um editor uma carta oferecendo-lhe a venda antecipada dos direitos autorais. Nela, traçava o esboço, quase uma resenha do futuro “Crime e Castigo”: “Será o estudo psicológico sobre um crime. Um romance da vida contemporânea. Por sua instabilidade mental, um jovem ex-universitário, completamente sem dinheiro, fica obcecado por essas ideias amalucadas que estão no ar. Resolve fazer alguma coisa que o livre imediatamente da situação desesperadora. Decide matar uma velha agiota. A velha é estúpida, gananciosa, surda e doente, pessoa sem maior valor, cuja existência é aparentemente injustificável, etc.. Todas essas considerações desequilibram o rapaz… Ele não se torna suspeito, não seria possível que suspeitassem dele, e é aqui que todo o processo psicológico do crime se desenvolve. De repente o assassino se vê frente a frente com problemas insolúveis e sensações inauditas começam a atormentá-lo. O próprio assassino resolve aceitar o castigo para espiar a sua culpa”.

Nessa fase o autor ainda via o futuro livro escrito na primeira pessoa, tal qual “O homem do subterrâneo”. Nele, o próprio Raskholnikov falaria num diário ou em formato de confissão. Mas, de alguma maneira, ocorreu uma mudança de planos que tornariam “Crime e castigo” um romance muito mais universal. Nas anotações em seu Diário, Dostoiévski registra o fato: “Farei a narração do ponto de vista do autor, uma espécie de ser invisível, porém onisciente, que jamais abandonará o herói.” “O narrador observará tudo do ponto de vista de Raskholnikov, reagirá a tudo o que ele fala e pensa, sem deixar de vê-lo do ponto de vista do mundo exterior”.

O romance foi aclimatado na Petersburgo da segunda metade do século XIX, a cidade mais fantástica do mundo na visão de Dostoiévski, onde proliferam seres estranhos e os muros das ruas e das paredes das casas se dissolvem em visões terríveis. O personagem Svidrigailov diz que “é uma cidade de gente desequilibrada, cheia de influências sombrias, cruéis e estranhas”. A cidade mais ocidentalizada da Rússia é um lugar de doenças e febres, suicídios e mortes súbitas, acidentes de ruas e brigas violentas, e em todas as partes está repleta de gente humilhada e ofendida. É também o lugar em que brota a revolta na juventude, cidade de ideias novas e incendiárias.

Pela pena implacável de Dostoiévski desfilarão contrastes sociais extremos, a vida miserável que prolifera nas ruas, nos espaços públicos e cortiços escuros, induzindo o herói do livro a um “estado psicológico extremo”. Raskholnikov perambula pela cidade, refletindo que “mesmo a magnificência (de Petersburgo) é a encarnação de algum espírito vazio e morto”.

Dostoiévski em sua maturidade está prenhe da tradição gótica. Daí, com a percepção do ambiente físico e psicológico presente em seu tempo, os assassinatos em suas obras ocorrem em porões e casas soturnas, os crimes e influências magnéticas corroem a partir da cidade a alma de seus habitantes. Diz Proust: “Em Dostoievski não há somente criação de seres humanos, mas de moradias e também a casa do Assassinato de Crime e Castigo com o seu dvornik… Essa beleza nova e terrível de uma casa, essa beleza nova e mista de um rosto de mulher, eis o que Dostoievski nos deu de único no mundo.”

Raskholnikov origina-se do termo “raskholnik”, uma pessoa cindida, dissidente, e do mesmo modo como seu duplo, o sinistro Svidrigailov, é um homem nascido da raiva e do tédio da vida contemporânea, um ateu e niilista que acredita no direito libertário de criar sua própria moralidade e transcender as leis, os costumes e a religião em nome de algo superior por ele mesmo criado. Como um intelectual moderno, explora a liberdade de um mundo que perdeu suas raízes, onde a injustiça é a tônica e a sociedade é um lugar de sofrimento universal. Acredita na “idéia napoleônica” do indivíduo que influi na história do mundo, no homem excepcional cujos poderes lhe conferem o direito de cometer qualquer ato que se justifique no futuro. Ele é, no dizer de Porfiri, o juiz de instrução do caso, “um caso típico de nossa época, em que o coração dos homens torna-se imundo. Temos aqui sonhos intelectuais, um coração exacerbado por teorias”.

Dostoiévski denominou de “realismo fantástico” o que escrevia. Entretanto, o que ele realmente torna fantástico é o nosso mundo contemporâneo, o mundo que tenta apropriar-se do presente e transformá-lo em futuro. Já o livro é escrito a partir de uma vívida percepção da vida interior, emocional e psicológica do protagonista, e é também um método de intervenção profundamente dramático e intenso.

“Crime e castigo” divide-se em seis partes e um epílogo. O crime é cometido logo na primeira parte, e todas as seções subsequentes abordam o castigo, que por sua vez é essencialmente um processo de crise psicológica e de auto-acusação. Ele culminará com a confissão, primeiro em privado, depois em público, na rua, e finalmente, na polícia. No epílogo encontraremos Raskholnikov numa colônia penal siberiana ainda sofrendo seu castigo. Sua redenção não se completa, pois se nega a compartir um trecho da Bíblia (a ressurreição de Lázaro) que lhe fora oferecida por Sônia, uma das prostitutas santas de Dostoiévski, recusando-se a reassumir a sua humanidade por meio do sofrimento e do arrependimento.

Raskholnikov, no princípio da narrativa, está encerrado em seu quarto que fica embaixo de uma escada. Ele tem o hábito de ficar na cama “pensando um mar de absurdos”. Acaba alheando-se de tudo e de todos, não deseja mais ver ninguém e quando passa pela cozinha da senhoria, cuja filha andara cortejando por estar atrasado no pagamento do aluguel, termina sendo possuído por uma espécie de terror.

Despreza todos os que não ousam uma “palavra nova, uma atitude nova”. Ele mesmo não sabe ainda bem o que deseja fazer. “Não é nada muito sério. Estou só me distraindo, entregando-me a sonhos fantásticos”… “Fosse o que fosse era preciso tomar uma decisão ou renunciar completamente à vida. Aceitar o destino docilmente tal como é, de uma vez para sempre, e abafar tudo no meu íntimo, o que significa renunciar a todo o direito à ação, a viver, a amar.”

Embora Raskholnikov desejasse manter-se afastado de Petersburgo com seu barulho e sua violência, ou ter um nível social superior ao seu próprio, ele será sempre parcela  desse mundo dos pobres e marginalizados, e cada uma de suas sensações reflete-se no exterior. Os acontecimentos que o cercam fazem parte de seu estado mórbido e alucinatório, misto de repulsa, terror, angústia e autoconfiança.

Ele visita uma velha agiota, deixa algo penhorado e sai. Entra em um bar. Ao sair, conhecerá Marmieladov, um ex-funcionário público destruído pela bebida. Os olhos desse homem degradado brilham num misto de inteligência e loucura.  Principia a falar a respeito de modernas teorias utilitárias que teriam banido da Terra todos os sentimentos de piedade. Diz, ambiguamente, que se acalma com a bebida. “É por isso que bebo, porque na bebida encontro o sofrimento… bebo porque quero sofrer em dobro… não é de alegrias que tenho sede, mas de tristezas.” A história familiar que Marmieladov conta é trágica: a família toda entra em declínio por sua degradação no álcool: Sônia, sua filha, prostitui-se para sustento da mãe, de uma irmã aleijada e dele próprio. Mas ele não deseja compaixão, prefere que o crucifiquem a que tenham por ele sentimentos de pena. Raskholnikov antevê no alcoólatra uma face de si mesmo, dele se apieda e o leva para casa de cômodos onde conhece Sônia, sua futura confidente, a primeira a quem o jovem confessará seu crime.

O livro segue no mesmo ritmo de acúmulo de misérias humanas que cercam Raskholnikov e atormentam-lhe o espírito. Sua irmã, Dunia, é perseguida pelo ex-patrão, o cruel e insaciável Svidrigailov, que deseja seduzi-la, não uma, mas diversas vezes.

Dunia, tanto quanto Sônia, procura o sacrifício por amor a seus familiares: a irmã de Raskholnikov por meio do casamento com um pretensioso senhor autoritário, Luznin,  a quem não ama, ao contrário, despreza, busca dinheiro para sustentar o irmão na ilusão dos futuros frutos de seus propalados estudos. No fundo, o casamento com Luznin é uma reprodução da prostituição a que se submete a filha de Marmiedalov.

Roskholnikov não aceita o sacrifício da irmã, odeia o prepotente Luznin. “O que lhe agradava acima de tudo era o fato de Dunia ser pobre, pois é preferível casar com uma mulher pobre para ter um total domínio sobre ela e poder sempre lançar-lhe no rosto que é nossa protegida.” Tudo se articula para que a mente do jovem busque “alguma solução imediata”. A situação é trabalhada por Dostoiévski na forma de um sonho terrível que Raskholnikov tem: um mujique açoita um cavalo que não consegue andar na lama, principia a tortura ferindo os belos olhos do animal até matá-lo a chibatadas. “Num estado doentio os sonhos costumam distinguir-se pelo seu extraordinário colorido e clareza e pela estranha semelhança com a realidade.” S. Frued, meio séculos após utiliza-se dessa passagem de “Crime e Castigo” em sua “Interpretação dos Sonhos”.

Uma conversa ouvida por acaso na rua informa-o de que a irmã da velha agiota não estará na casa no dia seguinte e isso o faz recordar de outra fala ouvida ao acaso: “O que representa a vida de uma velha má e doente quando pesada na balança do bem da humanidade?”

Chegamos agora à tremenda cena do crime. O mais terrível é que depois que Raskholnikov mata a velha agiota, a irmã dela, Lisavieta, uma semi-idiota, retorna da rua e ele se sente obrigado a matá-la também.  A machadinha conseguida no prédio em que reside “cumpriu” um duplo assassinato. Mas a cena do crime envolve uma dissociação entre o ato-instrumento e o ato-criminoso, como se houvesse uma separação entre pensamento e ação, com Raskholnikov realizando um ato que faz parte de sua auto-alienação, do inconsciente que, somente mais tarde, se tornará consciente. “Quando chegou a hora, tudo aconteceu como ele não tinha previsto, assim como por acidente, quase inesperadamente”, nos diz o narrador.

Após o assassinato, Raskholnikov transforma-se num amontoado de contradições, febres, sentimentos de ira, sonhos e alucinações, considerando-se ora um ser heróico, ora um verme.

Boa parte da investigação do duplo assassinato é conduzida por Porfiri, um juiz de instrução, outra das imortais criações do romance.  Só ao final, saberemos que Porfiri já suspeitava do assassino antes mesmo que o ato fosse perpetrado, ao ler uma crônica em que o jovem diz que “um homem excepcional tem o direito de cometer grandes crimes a favor da História e da humanidade”. Ele pergunta a Raskholnikov em uma das várias entrevistas que tiveram “de que forma é possível identificar esse indivíduo? Ele tem um uniforme, uma marca especial?” Desse modo o juiz abala a auto-imagem de arrogância daquele que se vê como um personagem “napoleônico”.

Porfiri é um interrogador moderno, especial, um psicólogo ao nível de um assassino também da modernidade, como Raskholnikov. Mas quem é a caça e quem é o caçador?

O leitor é envolvido à medida que o assassino vai traçando um círculo ao redor de si mesmo, sendo ele mesmo o próprio caçador. Se Porfiri já sabe a resposta, ele exige que Raskholnikov também a saiba e que descubra o seu próprio castigo na confissão.

Porfiri diz: “Esperei por você com impaciência, pois toda essa maldita psicologia é uma faca de dois gumes”. O crime, ele o diz, foi psicológico. O roubo praticado por Raskholnikov jamais seria encontrado pela polícia, pois o assassino jamais tocara ou utilizara os valores. Escondera-o e somente voltaria a buscá-lo para confessar o crime às autoridades.

A purgação do duplo assassinato, o castigo e a busca da redenção é um longo processo que o assassino deve assumir. Começa mesmo logo após o ato criminoso na forma dos pesadelos.

Ao ir à delegacia de polícia, pois fora denunciado por dívida pela dona da pensão onde reside, Raskholnikov ouve o falatório sobre o assassinato das velhas e desmaia. Começa a visitar a cena do crime e a comentá-lo com amigos. Ao mesmo tempo afasta-se das pessoas e entra num mundo pavoroso de relações estranhas, de adversários e duplos, de acusados e acusadores. No seu inconsciente deseja que o inculpem pelo assassinato.

Divisa dois caminhos a seguir: a independência arrogante ou o arrependimento humilde. No primeiro estará em companhia do cínico Svidrigailov, que matara a própria esposa por dinheiro, “num desespero cínico” e, no segundo, na trilha de Sônia, a filha de Marmieladov, que representa “a esperança mais irrealizável”.

Svidrigailov, aquele que considera o bem idêntico ao mal, após ouvir escondido a confissão de Raskholnikov a Sônia (hospedara-se na mesma espelunca em que a moça e sua família), ainda tentará possuir Dunia à base da chantagem, mas ela não se entrega a sua bestialidade. Num último ato teatral, Svidrigailov entrega todo o seu dinheiro à Sônia e suicida-se com um tiro em frente a um soldado judeu postado numa torre de vigia.

Raskholnikov, ao contrário, buscará o caminho de Sônia, a meiga e compreensiva testemunha da confissão do jovem. A princípio irrita-se com sua simples fé religiosa e a boa vontade com que se sacrifica pelos outros, ou melhor, por quem ama. Termina em sua confissão por dizer que ao assassinar as velhas matara também a si próprio. Sônia lenta e pacientemente mostra-lhe o caminho da redenção que passa pela confissão pública do crime e por se ajoelhar e beijar o chão pelo qual passa a humanidade da qual ele se considerava um ser superior. Será essa maravilhosa mulher quem entrará com Raskholnikov na delegacia de polícia, e depois da condenação o acompanhará aos trabalhos forçados na Sibéria e tomará conta não somente do homem que ama como de todos os companheiros de infortúnio que estejam próximos.

No exílio siberiano, expresso no epílogo do romance, mantém-se todo o clima de crise psicológica. Raskholnikov se crê com a consciência livre de seus crimes, mas ainda mantém sonhos alucinados como os de uma peste que levará a humanidade à crença de que a libertação depende apenas dos próprios homens. Conserva seu orgulho intelectual e nega-se a ler com sua protetora a passagem bíblica do renascimento de Lázaro.

“Crime e Castigo” não é um romance totalmente concluso. Se por um lado Dunia encontra a felicidade ao lado de um ex-colega de faculdade do irmão, em relação a Raskholnikov, o parágrafo final afirma que “ele terá que encontrar a regeneração em outro local, numa outra realidade até então por ele desconhecida”.

O colossal romance se baseia numa visão eminentemente existencialista e religiosa, com foco predominante no tema de atingir salvação por meio do sofrimento.

Podemos sem dúvida afirmar que constitui uma das pedras basilares dos alicerces do modernismo. Seus personagens inspiraram pensamentos filosóficos, sociológicos e psicológicos da segunda metade do século XIX e também no século XX. Como exemplos mais importantes, Nietzsche, Sartre, Freud, Orwell, Huxley, Camus, dentre tantos outros.

( Fonte: https://www.proust.com.br/post/crime-e-castigo-um-alicerce-do-pensamento-moderno)

 

CAPÍTULO III

Dostoievski, os tormentos da alma e os mistérios do subconsciente.

O conjunto da vastíssima obra de Dostoievski é tão atual quanto o possam ser os tormentos da alma e os escaninhos de nosso subconsciente.

De alguma forma a ele foi dado, como a poucos, o conhecimento do coração humano, cujas veleidades mais ocultas e mais criminosas são postas a nu nos seus personagens. E isto Dostoievski realizou encarnando tanto a própria alma e suas doenças físicas, quanto expondo as chagas da pobreza e da vilania mais infamante que quase sempre o envolveu.

Dizia Merejkovski: “Ao lermos Dostoievski nos deparamos com nossos próprios pensamentos ocultos, aqueles que não confessaríamos nem a um amigo e nem a nós mesmos… porque contêm uma arrepiante revelação: a revelação das profundezas da consciência, os mistérios do subconsciente”.

Nietzsche, que jamais ocultou o quanto bebeu em Dostoievski, chamava-o mesmo de “aquele meu mestre, com seu profundo e criminoso rosto de santo… possuidor da grandeza religiosa dos amaldiçoados, do gênio como doença e da doença como gênio, do tipo atormentado e possesso, no qual o santo e o criminoso são um só…”.

A arte de Dostoievski não se direciona a todos os tipos de leitores. Ela se volta basicamente para espíritos que sejam ansiosos, que vivam sob as tensões existenciais paralelas àquelas dos personagens, ou, dito de outra forma, somente para leitores capazes de vivenciarem as paixões que chegam até eles pela literatura. E estes, ao descobrirem-no, sentirão que seus romances agem de uma maneira hipnotizadora e catártica sobre si próprios.

“Com uma volúpia consciente, diabólica, Dostoievski retarda o momento em que seremos conquistados, levando-nos ao paroxismo da angústia interior”, sublinha Zweig.

Ao iniciamos a leitura de qualquer de seus livros, deparamo-nos com um escritor que em meia dúzia de frases descreve todo o ambiente onde o enredo se desenvolverá. Vestuários, mobiliário e praticamente todo o espaço dedicado por outros à natureza, é aqui ocupado pela humanidade, tudo estará repleto do humano, daquilo que é profundamente humano. O ambiente apenas fornece uma base material restrita para que os personagens nele se locomovam.

Por outro lado, provável herança de Balzac a quem idolatrava, Dostoievski buscava nas características e expressões faciais e corporais a identificação de determinados aspectos do caráter e do estado de alma dos personagens e, graças a este recurso, cada um deles se torna, uma vez vivenciado, inconfundível para toda a vida do leitor!

Acontece que todos os personagens de Dostoievski são impalpáveis, compostos quase que exclusivamente por espírito. Todas as suas atividades fisiológicas como comer, beber, dormir, são desenvolvidas tendo como referência o significado na ação espiritual do drama, no desenvolvimento das paixões que eles encarnam.

São personagens que se envolvem em controvérsias incessantes, onde cada qual alcança uma espécie de auto emulação, ansiando por interpretar a não somente a si mesmos, quanto a todos os outros personagens, ao mundo e, até mesmo a Deus. E nas paixões transmitidas pela fala de cada personagem encontraremos toda a essência de sua própria existência, no fundo, aspectos de nossa existência.

Essas paixões, nos ensina Bakhtin, se desenvolvem quando o autor ultrapassa a ideia do diálogo e chega ao que ele denomina de multivocalismo ou polifonia.

“Após Shakespeare, talvez Dostoievski seja o maior e mais polifônico de todos os dramaturgos”.

E Bakhtin vai além. Esses personagens, frutos das paixões, não têm uma clara identidade unitária e, neste sentido, a visão de mundo do escritor torna-se um espaço controverso, contraditório e sem unidade, despedaçado. As paradas, as repetições, o gaguejar no narrar são indispensáveis, porque “debaixo dessa palavra que falhou, existe uma vibração, uma comoção secreta, e nós saberemos não somente o que uma personagem discursa, mas também o que dissimula”.

A própria sensualidade amorosa, por ser paixão, nunca nele é um sentimento doce, terno e harmonioso; pelo contrário, muitas vezes ela é uma tentação monstruosa que, ao invés de conduzir à felicidade, leva à loucura e à ruína da personalidade. Sofre-se por tudo isso muitas vezes ao mesmo tempo, e serão as dores e os sofrimentos que resgatarão do mal e do pecado cada um de seus personagens. A catarse de Dostoievski só é alcançada através da dor e da “confissão”, que leva através da humilhação à purificação da alma..

Quanto ao estilo, Dostoievski é essencialmente um romântico trágico. E este sombrio metafísico nos transmite a impressão de que escrevia seus livros como se fossem peças teatrais, onde durante a noite desenhava a estrutura essencial do diálogo e, durante o dia, ao ditá-los para a estenografia, expandia as direções de cena.

Pois tal e qual no teatro trágico, nos momentos em que suas “personnas” ultrapassam suas medidas transformam-se em seres “possuídos”, o que no descrever de Zweig, “quando extravasam seus sentimentos já incandescentes, é quando desnudam toda a verdade da alma”.

De todo modo, os mundos de Dostoievski são esferas de dor, onde todos sofrem quer na doença, quer na miséria, quer nas injustiças sofridas, ou em decorrência das paixões e de seus desencontros consigo mesmos e com a realidade.

Seus romances são dramas colossais, cênicos em quase toda a sua estrutura; neles, as ações são compactadas em uns poucos dias. Em “Os Irmãos Karamazovi”, até o julgamento de Dmitri, tudo se passa em apenas cinco dias; a primeira parte e a mais volumosa de “O Idiota”, em 24 horas e “Crime e Castigo”, numa semana.

A religiosidade e o conceito de liberdade em Dostoievski.

“Cuidando essencialmente do homem e da finalidade de sua existência sobre a Terra, procurando desvendar os motivos e as consequências ocultas de todos os nossos atos, ansiando perpetuamente por resolver o secular problema do determinismo e do livre-arbítrio, fundamentando toda a sua obra na discussão metafísica do problema da liberdade, Dostoievski fundou uma antropologia, que é, antes de tudo, uma gnose”. Esta definição de Wilson Martins equaciona um dos aspectos essenciais de Dostoievski como um escritor religioso, para quem Cristo sempre está presente, mesmo quando nem é pressentido na narração.

Acontece que esta é a imagem de Cristo profundamente ortodoxa e eslavófila. Trata-se de um Cristo destituído da liturgia e encarado única e exclusivamente como homem, como o homem em sua perfeição. E é neste sentido, que Ele simboliza a Verdade oferecendo a nós, mortais, a verdadeira Liberdade, na fórmula de uma liberdade final.

Pois em Dostoievski, tanto a liberdade quanto o bem e o mal sempre estão presentes, mas estes possuem quase que exclusivamente um aspecto metafísico nunca se manifestando do ponto de vista político.

A liberdade inicial sempre carrega limites necessários, e cabe ao homem posicionar-se por seu livre-arbítrio; quando esta liberdade não reconhece limites e se dá como valor absoluto, ela é destruidora e abre as portas ao niilismo, ao orgulho e ao individualismo, que a tudo nega e corrompe.

E entre o bem e o mal, na afirmação da liberdade, os sentimentos tornam-se complexos, instáveis, os homens se confundem, atropelam-se e se combatem com extremado vigor.

Zweig observou que, por isso tudo, “a alma em Dostoievski é um puro caos; pois bem, encontramos ora bêbados por desejo de pureza, ora criminosos por desejo de arrependimento, ora homens que violam virgens por respeito pela inocência, ora blasfemos por necessidade religiosa”.

Ainda Zweig assinala que, na ausência de unidade nesse psiquismo humano, o que subsiste é uma psicologia analítica que dissocia e desfibrila. Como comparação literária nos diz que se em Homero, “Ulisses é esperto, Aquiles, corajoso, Ajax, irascível e Nestor é prudente”, em Dostoievski todos os personagens são ambíguos e suas condutas são imprevisíveis.

Messianismo e conservadorismo.

Se a fé dostoievskiana em Cristo é o referencial onde aportarão todos os anseios de máxima humanidade, a crença em Deus é muito problemática.

Seus personagens confessam, por exemplo, que Deus torturou-os a vida inteira, o que simboliza o conflito persistente entre a razão do autor a negar um porto seguro e sua sensibilidade a afirmar a necessidade deste porto, local onde se abrigaria a pureza, o amor e a paz.

Esta dúvida atroz empurra Dostoievski para o abrigo de um Cristo que se torna russo, e é da Rússia que ele crê que surgirá a salvação para toda a humanidade!

Somente o povo russo possuiria a capacidade de compreender os outros povos e por isso seria até mesmo necessário “que todos os homens se tornem russos”. Nesse sentido, ler Dostoievski significa penetrar no universo de um grande nacionalista, onde o próprio destino da humanidade passa pelo destino de seu povo.

Esse messianismo, na verdade, constitui uma nova ambiguidade: se Dostoievski chega a desprezar as influências ocidentais, racionalistas, democratas e socializantes em pró de um novo eslavismo, a preferir a ordem à luta pela liberdade política, por outro lado, ele jamais se aliou aos poderosos, em nenhum momento frequentou os aristocratas, sempre se revoltou contra aqueles que atacassem os “humilhados e ofendidos”, ou seja, a infinita maioria do povo russo.

Na verdade, a visão de mundo de Dostoievski condena os germes de uma revolução social que já fermentavam em terra russa, na medida em que ele presume que qualquer revolução que se fizesse contra a autocracia russa redundaria em uma nova autocracia russa, ocorrendo apenas uma mudança de senhores. O povo permaneceria reduzido à servidão, na situação de rebanho. Prevê que, em nome de uma futura felicidade social, o princípio religioso também seria sacrificado e, novos crimes, praticados.

Sem dúvida, Fiodor Dostoievski era um conservador, mas um conservador de talhe profundamente humanista. Ele propugna pela dignidade do ser humano, pelo amor ao próximo, pela fraternidade universal, expressando como ninguém o sentimento de com- paixão pelos fracos e oprimidos e pela redenção dos degradados sociais. Da mesma forma, satiriza e ridiculariza como ninguém as vaidades, a corrupção social e a mediocridade das altas rodas.

Segundo André Gide, Dostoievski “tem sempre qualquer coisa para desagradar a todos os partidos” e na mesma linguagem do século XX, a todas as correntes ideológicas.

 ( Fonte: https://www.proust.com.br/post/dostoievski-os-tormentos-da-alma-e-os-mist%C3%A9rios-do-subconsciente)

CAPÍTULO IV – CRONOLOGIA

– Filho de médico, Dostoiévski nasceu no hospital onde seu pai exercia o ofício;

– Sua mãe morreu de tuberculose em 1837, e ele foi para São Petersburgo com o irmão. O pai faleceu dois anos depois, após uma fase de depressão e alcoolismo;

– Seu romance de estreia foi “Gente pobre” (1846), escrito depois de abandonar a carreira militar. Nessa época, ele participava de um grupo clandestino, no qual se liam e discutiam textos proibidos;

– Em 1849, vários membros do círculo foram presos e condenados à morte, entre eles Dostoiévski. No último instante, porém, a pena foi cancelada e convertida em quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria e cinco de serviço militar como soldado raso;

– No exílio, conheceu sua primeira esposa, Maria Issáieva, e nessa época sofreu os primeiros ataques de epilepsia. Em 1859, voltou para São Petersburgo;

– Em 1862 e 1863, viajou por algumas cidades da Europa Ocidental, onde perdeu muito dinheiro no jogo. Em 1864, morreram sua esposa e seu irmão, que, além da viúva, deixou quatro filhos e uma enorme dívida. Coube a Dostoiévski sustentar a todos, além do enteado e outro irmão alcoólatra, circunstância que o deixou cada vez mais endividado;

– A adesão de Dostoiévski à religião cristã ortodoxa o levara a manter estreitas relações com expoentes do clero ortodoxo, bem como com autoridades do governo e com a própria família do tsar;

– Em 1866, publicou o consagrado “Crime e castigo”. Seu romance seguinte, “O jogador”, foi escrito às pressas para saldar dívidas. A fim de entregá-lo no prazo exigido pelo editor, contratou a estenógrafa Anna Snítkina, com quem se casou. Em 1881, publicou o romance “Os irmãos Karamázov”. Faleceu pouco depois de enfisema pulmonar;

– O autor foi sepultado no mosteiro de São Petersburgo, e seu enterro foi acompanhado por uma multidão de milhares de pessoas.

CAPÍTULO V – PRINCIPAIS OBRAS

 

MEMÓRIAS DO SUBSOLO

Novela que traz vários temas que aparecem em obras maduras de Dostoiévski, como Crime e castigo e Os irmãos Karamázov, Memórias do subsolo é considerado por muitos como o ponto de virada na carreira do autor.

Lançado originalmente em 1864, enquanto Dostoiévski morava em Moscou e sua esposa estava nas últimas semanas de vida, Memórias do subsolo é considerado por muitos o ponto inicial da segunda fase do autor — na qual publicaria suas mais aclamadas obras.

Alienado da sociedade e paralisado pelo peso da própria insignificância, o narrador deste livro conta a história de sua conturbada vida. Com fina ironia, ele relata sua recusa em se tornar mais um trabalhador e seu gradual exílio da sociedade que o cerca.

Escrita em poucas semanas, esta novela arrebatadora explora, com a maestria única de Dostoiévski, as profundezas do desespero humano.

RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS

Em 1849, Dostoiévski, então com 28 anos, foi preso e condenado à morte por sua participação no Círculo de Pietrachévski, um grupo de intelectuais críticos ao regime tsarista. Instantes antes do fuzilamento, sua pena foi comutada para quatro anos de trabalhos forçados no presídio de Omsk, seguidos de mais quatro anos servindo como soldado raso em Semipalátinsk. O período passado na Sibéria foi extremamente marcante para o escritor, que viu cair por terra sua imagem idealizada do povo russo, influenciada pelos socialistas utópicos, ao conviver com a dura realidade dos prisioneiros comuns vindos de todas as regiões da Rússia. O resultado dessa experiência-limite é este livro, Escritos da casa morta (também conhecido como Recordações da casa dos mortos), publicado entre 1860 e 1862, em que o autor, ao fazer um registro antropológico da vida e dos costumes dos presos, acaba por empreender um verdadeiro mergulho na psicologia do ser humano ? algo que servirá de matéria-prima para todos os seus romances de maturidade. A presente edição foi traduzida diretamente do russo por Paulo Bezerra, que também assina a apresentação do volume, e inclui três textos de época e um posfácio de Konstantin Motchulski, um dos principais biógrafos de Dostoiévski ? todos inéditos em português ?, além da série completa de 43 xilogravuras realizadas por Oswaldo Goeldi nos anos 1940.

 

OS IRMÃOS KARAMAZOV

Último romance de Fiódor Dostoiévski, Os irmãos Karamázov (1880) representa uma síntese magistral dos vários temas que perseguiram o autor ao longo de sua vida e o ponto culminante de toda a sua obra. Reconhecido como um dos grandes feitos literários de todos os tempos, o livro influenciou pensadores do porte de Nietzsche e Freud — que o considerava “o maior romance já escrito” — e sucessivas gerações de escritores.

 

NOITES BRANCAS

Em Noites brancas, o jovem Dostoiévski mostra a sua versatilidade como escritor de gênero breve ao abordar um encontro inesperado entre um homem e uma mulher que se repetirá por quatro noites.São Petersburgo, século XIX. Um homem solitário vaga pela cidade noite adentro, deixando que o sentimento de cada rua, esquina ou calçada o penetre. Durante a caminhada, avista uma mulher aos prantos encostada no parapeito de um canal. Ao acudi-la, tem início um idílio fadado a se dissipar como a tênue claridade das noites de verão na Rússia.Quanto mais o anônimo narrador se aproxima da jovem Nástienka, mais parece se distanciar de sua melancólica vida anterior. Em quatro encontros, no entanto, a crescente intimidade dos dois personagens chega a um inesperado desfecho, quando a última noite por fim termina.A novela de 1848, tida como uma das obras-primas de Dostoiévski no gênero breve, é acompanhada neste volume pelo conto “Polzunkov”, escrito no mesmo ano, que mostra uma faceta mais caricata de um dos maiores autores da literatura russa.

 

OS DEMÔNIOS

Impressionado com o assassinato de um estudante por um grupo niilista, Dostoiévski concebeu este livro como um protesto contra os que queriam transplantar a realidade política e cultural da Europa ocidental para a Rússia. Apesar da intenção inicialmente panfletária, Os demônios é um romance magistral, à altura de Crime e castigo ou Os irmãos Karamázov.

 

O IDIOTA

O idiota é uma das obras mais comoventes de Fiódor Dostoiévski. Abstrusa para os contemporâneos do escritor, mas atual e compreensível para quem a conhecer em nossos dias, ela conta a história de um jovem aristocrata russo que se atreve a defender o sublime ideal humanista numa sociedade regida pelas leis do livre comércio. Ovelha negra da alta-roda de São Petersburgo, o príncipe Míchkin é tachado de idiota em virtude das suas qualidades morais e acaba perdendo de fato o juízo. Sua imagem de mártir e visionário, inspirada na do magnífico Dom Quixote de Cervantes, fica interiorizada pelo leitor; seu trágico fim leva-o a perguntar a si mesmo onde termina a loucura e começa a santidade do protagonista e, consequentemente, a repensar o próprio conceito daquilo que pode ser objeto de compra e venda no conturbado âmbito das relações humanas.

 

O JOGADOR

“O jogador”, de Fiódor Dostoiévski é um primoroso romance cujo teor psicológico ultrapassa os estreitos limites do gênero recreativo. Baseado num profundo conhecimento das práticas e rotinas do cassino, ele evidencia a sinistra degradação de um jovem culto e talentoso que sacrifica o melhor de si à doentia paixão pelos jogos de azar, a qual lhe subjuga e destrói, aos poucos, a alma. O protagonista, em que se percebem diversos traços do próprio autor, vê toda a sua riqueza espiritual – dignidade, força de caráter e honra cavalheiresca – levada pela estonteante rotação da roleta. Mesmo o amor, a única fonte de alegrias e esperanças que ele possui, acaba sorvido por esse redemoinho… Os vícios humanos, sejam relacionados ao jogo, como no livro de Dostoiévski, ou às drogas, como em nossa realidade cotidiana, ainda estão longe de ser extirpados, tornando O jogador tão interessante para os leitores de hoje.

 

CAPÍTULO VI – VÍDEOS

 

200 anos de Dostoievski e os afetos do autoritarismo, com Flávio Ricardo Vassoler

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor e youtuber, doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA), oferece uma aula sobre o autor russo, numa live com Victor Castanho, estudante de literatura e biologia em Columbia, e Leonardo Attuch.

 

Especial Dostoiévski 200 Anos, com Flávio Ricardo Vassoler

Em 2020, são lembrados os 200 anos de nascimento de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, escritor, filósofo e jornalista, autor de obras como “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”. Para comentar sua vida e obra, convidamos um velho conhecido do QSN: o escritor e professor Flávio Ricardo Vassoler.

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