Como Clarice Lispector incorpora o erotismo em seus escritos
por Luciana Braga
Esse é meu último artigo sobre Clarice no especial de junho do Bora Cronicar, por isso, premeditadamente, decidi que faria tal qual Clarice e me plagiaria nesse texto derradeiro. É que o assunto que trago aqui está presente na minha dissertação de mestrado, mas prometo não encher esse texto de academicismo e tentar ser clara e pouco enfadonha.
Possivelmente, um leitor atento poderia questionar sobre os fatores que inserem a obra clariceana na seara do erotismo, uma vez que ela não toca no obsceno, mas é preciso esclarecer que o erotismo na obra de Clarice se revela na escritura tal qual Barthes descreve em O Prazer do Texto (2015) à luz da Psicanálise situando a escrita erótica em um entrelugar. Utilizando a metáfora do corpo, a escrita não é nem a roupa que toca suavemente a pele, nem a pele desnuda, mas o espaço entre a roupa e a pele. É preciso saber o que é pulsão no corpo para entender o que é pulsão no texto, como ela se mostra e se esconde, como ela compõe o texto literário.
O ser humano está fadado à repetição, à busca por uma saciedade que nunca chega. O circuito pulsional não chega ao fim e nem sempre está ligado ao prazer. Havia a necessidade de uma pulsão de Tanatos, a fim de que freasse Eros. Sem a primeira não haveria a vida. As pulsões não funcionam apenas de forma biológica e não são fenômenos corporais. Erotismo também não reside apenas nos corpos, mas ultrapassa a condição corporal e a própria mente. A linguagem clariceana é pulsional, um circuito que não cessa, pois não se captura Eros. Desde a estreia de Clarice Lispector com Perto do Coração Selvagem (1943), sua obra representou uma ruptura com os paradigmas narrativos vigentes em meados do século XX, e seu modo pulsional de escrever foi capaz de transgredir as convenções linguísticas e literárias vigentes na época.
Dessa forma, é interessante pensar que a escrita de Clarice não se prende a um enredo tradicional, mas antes se prende à própria palavra. Pode-se dizer ainda que a escrita de Clarice revela dois planos de narratividade: um do personagem e outro da própria escrita. Esse segundo plano apresenta-se mais interessante e complexo, talvez porque a questão da escrita é praticamente vital para a existência da escritora que, quando não escrevia, sentia-se morta, conforme afirma em entrevista de 1977 ao jornalista Júlio Lerner. Devido a essa e muitas demonstrações de paixão pelo ato de escrever, muitas vezes expressas dentro das obras, ler Clarice é entrar em contato com algo que vai além das palavras.
A escrita de Clarice é uma escrita do prazer porque seduz e ainda fere o leitor. Acredita-se que o ferimento seja consequência da sedução e vice-versa. A escrita de Clarice chama atenção exatamente por isso, porque ela atinge o leitor de uma dessas formas: a ferida ou a sedução. De algum modo, o leitor se sentirá, ao longo do percurso, atingido pelo texto, no qual, mesmo quando a literatura fere, ela é capaz de seduzir. Talvez seja importante dizer que ela seduz exatamente quando fere, seduz porque fere, atingindo o âmago.
A escrita do prazer independe da vontade do escritor, pois Clarice era uma escritora que escrevia para se manter viva e se entregava completamente ao poder que as palavras tinham sobre ela, mas isso não era garantia de que seus textos seriam adorados ou compreendidos. O texto do prazer é também um texto inusitado. Acredita-se que a escrita se faz quando o escritor perde o controle total sobre ela e se transforma em puro relato de sensações, gozo e espanto.
Essa escrita é tudo menos passiva, ela possui o poder de provocar o leitor, de seduzi-lo, de prender seus olhos ao escrito. Ela não é tagarela, não é cansativa, ela pega o leitor de surpresa e o coloca frente a frente com o inusitado. É como se o leitor desejasse o texto, mas este também o desejasse, é um enlace mútuo desse jogo sensual da escritura que não pode ser entendido como uma repetição de outros escritos. Se a escrita clariceana seduz e fere, é porque rompe e é nessa ruptura que se encontra o gozo, a “fenda”, como bem pontuou Barthes. Não se pode esperar que uma escrita do prazer traga respostas, pois ela é a provocação, o desconforto, a perda e o movimento constante de revelar e esconder. Uma escrita do prazer é geralmente curta como um salto, mas ainda assim provoca calafrios. É essa a sensação que o leitor tem ao se deparar com os contos clariceanos. Esses pequenos textos não se prendem ao gênero e à forma, mas ao relato metafórico das sensações humanas. A escrita do prazer em Clarice é, portanto, uma escrita que provoca, que invoca Eros para rondar entre as palavras. Essa escrita rompe com os padrões de seu tempo e dita suas próprias regras, porque está sempre à deriva. Ela não segue ideologias, conceitos pré-estabelecidos, prefere antes a linguagem das crianças e dos loucos e a forma livre de comunicação presente no reino animal.
Clarice é capaz de retirar as palavras do cotidiano e atribuir a elas novos significados, repetindo-as até a exaustão. Portanto, não é o relato de cenas eróticas que fascina na escrita clariceana, mas o desejo que ela provoca no leitor, o trabalho artístico da escrita pulsional. Uma escrita do prazer incontrolável, da fome, do grito, da falta, da ruptura, da vida, das transformações incontroláveis do ser e da mente. Portanto, uma escrita que corrói, que fere, que rompe, que mata, que vai além, isto é, uma escrita do prazer e da morte.
Sabe-se que uma pequena amostra da dimensão erótica da escrita clariceana não se restringe aos romances ou aos contos presentes em Via Crucis do Corpo, mas percorre sua obra por inteiro. Erotismo não é apenas ter o sexo como temática, menos ainda descrever meramente cenas de atos sexuais, visto que “se o erotismo é a atividade sexual do homem, isso ocorre na medida em que ela difere da dos animais. A atividade sexual dos homens não é necessariamente erótica. Ela só o é quando deixa de ser rudimentar, simplesmente animal” (BATAILLE, 2017, p.54).
Erotismo é uma caminhada sensitiva entre a vida, Eros e a morte, Tanatos. E não há nada de mais sensitivo, simbólico, plural, transgressor e, portanto, difícil de definir como a escrita literária. A escrita literária é multissignificativa, assim como o erotismo, ela “é nebulosa e movediça”, como Eros. É exatamente por esse aspecto que a escrita clariceana constantemente se atualiza e se torna atemporal, pois o seu texto está aberto a múltiplas leituras e interpretações. No entanto, não se trata de poder dizer tudo sobre qualquer um de seus textos; há um limite na interpretação, e essa fronteira é determinada pelo contexto em que a obra se insere.
Muito obrigada pelo passeio e até a próxima! Continuem lendo Clarice!
LUCIANA BRAGA é escritora, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará, mestranda em Literatura (UFC) e pesquisadora da obra de Clarice Lispector.
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ALGUMAS REFERÊNCIAS:
BARTHES, Roland. O Prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. 1. ed. 2ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Tradução: Pedro Heliodoro Tavares. 1. ed, 2ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
LISPECTOR, Clarice. A Via Crucis do Corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
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