100 anos de Clarice – Como Clarice Lispector contornou dilemas da vida e da escrita

Como Clarice Lispector contornou dilemas da vida e da escrita

por Luciana Braga

Vocês podem me dizer o que lhe interessa, sobre o que gostariam que eu escrevesse. Não prometo que sempre atendo o pedido: o assunto tem que pegar em mim, encontrar-me em disposição certa. Além do mais posso não saber escrever sobre o tema mencionado. Reservo-me o direito de dizer: não sei. (Crônica “Não sei”, de Clarice Lispector.)

Ao contrário da maioria dos escritores brasileiros que iniciaram sua produção literária com contribuições no jornal para em seguida enveredar nas grandes narrativas, quando Clarice começou a escrever crônicas, seu nome já era bastante conhecido no panorama literário brasileiro. Talvez tenha sido por esse motivo que, à princípio, ela demonstrou relutância em se considerar cronista, chegando inclusive a esboçar essa preocupação em algumas de suas crônicas.

Em “Ser cronista”, Clarice admite que não é cronista, mas que tem meditado bastante sobre o assunto, chegando, inclusive, a cogitar pedir ajuda a Rubem Braga, o inventor da crônica. Não é só a adequação ao gênero que a preocupa, afinal Clarice nunca se prendeu às estruturas, pode-se dizer que é mais um cuidado com o leitor e com ela também que quer continuar escrevendo seus contos e romances, mas precisa pagar as contas. Muitos críticos defendem a ideia de que a Clarice cronista é diferente da Clarice romancista, eu vejo a romancista na cronista e vice versa. Então, acredito que Clarice realizou seu desejo e não fez mudanças tão profundas na sua escrita, de modo que a cronista e a romancista pudessem conviver em harmonia.

Após se separar do marido, ao retornar para o Brasil com os filhos, Clarice enfrenta alguns problemas financeiros, pois o dinheiro da pensão não era suficiente e tampouco os direitos autorais dos livros. Dessa forma, ela volta a trabalhar como jornalista para garantir a subsistência. Ela continua publicando na revista Senhor, passa a publicar no Correio da Manhã, no Diário da Noite e no final da década de sessenta publica entrevistas semanais na Revista Manchete. Contudo, de toda essa contribuição na imprensa brasileira, a parte que quero destacar é a crônica semanal que ela manteve no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973, cujas crônicas encontram-se reunidas primeiramente na obra A Descoberta do Mundo (1984) e atualmente na coletânea Todas as crônicas (2018) que reúne textos novos além das crônicas já presentes na primeira coletânea.

Essa coletânea atual traz um importante prefácio da escritora Marina Colasanti que conta como foi tensa a aparição de Clarice Lispector na redação do Caderno B. no dia 18 de agosto de 1967. A “coluna” de Clarice seria publicada aos sábados. Se digo coluna é porque ela mesma tinha dificuldade em chamar de crônica os seus escritos. Marina conta que Clarice rompeu a tradição da crônica corrida e ocupou seu espaço na segunda página do jornal com vários textos curtos, exibindo uma verdadeira amostra daqueles que seriam seus temas centrais ao longo dos anos: a relação mãe-filho, a revolta contra a resignação, a busca do eu, os desvãos do pensamento e a transformação do fato cotidiano em pura metafísica.

Coletânea onde se encontra o prefácio de Marina Colasanti citado.

Marina Colasanti na época já era admiradora do trabalho de Clarice e foi com muita satisfação que se responsabilizou em receber semanalmente os escritos clariceanos ouvindo sempre, primeiro da autora e depois indiretamente por uma funcionária que levava seus textos, que deveria ter muito cuidado, pois eram únicos. É lógico que mesmo sem o aviso, o cuidado seria extremo, afinal Clarice já era uma grande escritora. Contudo, a atenção da autora se deve, principalmente, ao fato de que ela gostava de reescrever seus textos, embora paradoxalmente ela não gostasse de relê-los.

Digo isso porque vez ou outra uma crônica vira conto ou trecho de romance. Isso aconteceu com o conto “O primeiro beijo”, por exemplo, que está presente em A Descoberta do Mundo, mas também na coletânea de contos intitulada Felicidade Clandestina (1971), assim como a crônica “As águas do mar” escrita em 1973 que recebeu o título de “As águas do mundo” em Felicidade Clandestina e representa parte do romance Aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Esses dois exemplos são importantes para ressaltar mais uma vez que mesmo percorrendo o lado cronista de Clarice, não se pode esquecer o lado contista ou romancista, pois está tudo interligado, à medida que ela vai se plagiando aos poucos, no dizer da própria escritora.

Finalmente gostaria de passear pelos escritos de Clarice para mostrar através das palavras dela e não de qualquer crítico renomado a forma como ela lidou com o ato de ser cronista fazendo reflexões da própria escrita em seus textos. A primeira crônica que destaco é “O grito”, publicada em nove de março de 1968, em que ela inicia “Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo” e assim humildemente ela vai soltando um grito de desconforto de ser e estar no mundo. Se eu fosse usar um dos temas listados por Marina, diria que se trata de uma crônica sobre a revolta contra a resignação, mas não é apenas isso. Não gosto de rótulos e Clarice apesar de ser tão rotulada durante sua vida e após a morte é capaz de fugir de cada um deles, assim como foge dos gêneros textuais.

Na crônica “Escrever”, publicada no dia 14 de setembro de 1968, Clarice diz que “escrever é uma maldição (…) É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui”, no entanto, logo em seguida ela acrescenta: “E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva”. A escrita era o fôlego de vida de Clarice e, mesmo assim, ela chegou a se questionar sobre seu conhecimento sobre o ato de escrever em uma de suas crônicas intitulada “Como é que se escreve?” também de 1968, em que a autora diz “Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve”. Eu poderia transcrever essa crônica inteira porque ela diz muito sobre como se tornar um escritor e a resposta não se resume ao simplório “escrevendo”, pois há muito mais em torno disso. Clarice se sentia vazia quando não estava escrevendo e mesmo assim tinha dificuldade em se denominar escritora. Assim, as crônicas serviram também para essa finalidade, isto é, para Clarice refletir sobre si, sobre o mundo, sobre seu tempo, mas constantemente sobre sua escrita. Dessa forma, conhecer as crônicas dessa escritora é, muitas vezes, um exercício de metalinguagem.

Em 1970, Clarice escreve a crônica intitulada “Escrever”, em que ela inicia dizendo que “Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem vontade nem tempo de se aprofundar.” Dessa forma, pode-se pensar que finalmente Clarice está aceitando a imagem de cronista e se adaptando a esse formato de texto, mas logo em seguida, ela acrescenta: “Mas escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem.” E como já foi dito sobre o reaproveitamento de crônicas em romances, pode-se concluir que toda e qualquer escrita de Clarice é cuidadosa. Assim não se pode nem cogitar chamar sua produção de crônicas de literatura menor, pois é tão importante quanto as demais produções da autora.

Concluo esse texto que poderia seguir sem problemas, pois esse assunto é solo fértil para a escrita e reflexão, citando a crônica “Escrever para jornal e escrever livro”, publicada em 1972, penúltimo ano da trajetória de Clarice como cronista no Jornal do Brasil. Nessa crônica, Clarice diz que Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura e essa era a ambição dela, segundo a autora, se tivesse fôlego. Penso que enquanto houve vida, houve fôlego de escrita em Clarice seja através de seus famosos romances, contos ou crônicas semanais entregues cuidadosamente dentro de um envelope em papel pardo.

LUCIANA BRAGA é escritora, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará, mestranda em Literatura (UFC) e pesquisadora da obra de Clarice Lispector.

ALGUMAS REFERÊNCIAS:

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. revisada. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco. 1999.

LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas/ Clarice Lispector; prefácio de Marina Colasanti, organização de Pedro Karp Vasquez; pesquisa textual de Larissa Vaz. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

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