Pacarrete

O cisne Marcélia e o maestro Allan

Por Francisco Carbone

A expressão ‘obra de arte’ aplicada a um conceito popular de manifestação artística: como dosar essas vertentes, que não precisam e não deveriam ser excludentes, é um desafio em qualquer área de entretenimento, em qualquer fatia de produção. É um talento que nem todo profissional possui, por mais capacitados em seus ofícios que sejam. O cinema nacional não tem um número grande de realizadores que conseguem transitar em uma mesma obra entre os dois lados da equação, então eis que o surgimento de Allan Deberton ganha um plus comemorativo; jovem, sincero, sensível, temos nessa estreia em longas um cartão de visitas que instiga o espectador final e arrebata a crítica. Isso tudo porque Allan não tenta inventar a roda ao apostar na condução narrativa escolhida, ele é simplesmente humano em um tempo onde a humanidade infelizmente é artigo de luxo.

Pacarrete é um acontecimento por pegar a cena de surpresa com sua proposta popular sem jamais resvalar no ‘popularesco’ e investigar uma personagem comprando exclusivamente a versão dela dos fatos, que nunca é contaminada pelo alheio. Presente em 100% das cenas, a personagem-título parece abençoar Allan nesse subgênero caro ao cinema, o retrato investigativo. Tudo é aventado e tudo é subvertido, desde a cena inicial – um número musical de créditos de abertura que sugere e banca uma farsa das mais carinhosas – até o ponto de virada do longa, quando Pacarrete é abandonada numa estrada e conhece He-Man, o seu super-herói canino. São muitas hipóteses levantadas pela direção e o roteiro, todas aproveitadas e, em um espantoso resultado, quase tudo não apenas dá certo como é muito orgânico.

Da primeira parte solar e propositadamente histérica, o filme já apontava que sua discussão não ficaria restrita a capacidade de seu autor em manipular as ferramentas cinematográficas com destreza. Apostando na pureza do cinema mudo, na agilidade das comédias da Atlântida, no melodrama profundo de Sirk, na introspecção e erudição do cinema de autor, Allan aperta botões até dizer chega e se diverte enquanto desenha os percalços de uma personagem tão rica quanto arriscada, mas ele quer bem mais. Pacarrete é a própria ARTE, ela mesma que vem sendo atacada como vilã, tendo seus profissionais vistos como bandidos, vilipendiada por um governo disposto a triturá-la, enquanto sua rede de proteção tenta a todo custo mantê-la e protegê-la, mas que é soberana em seu lugar de mantenedor do folclore e da cultura de um povo. Tentam fazê-la se calar, a xingam, a enganam, e eventualmente sua força sofrerá, mas, como a arte (que é ela própria), Pacarrete não sucumbe.

Tecnicamente, o filme é modulado como o próprio roteiro, passando por camadas e motivações que ao seu término, fazem todo sentido. De inspirações ‘clownescas’ a princípio, a personagem permite à fotografia de Beto Martins (de A História da Eternidade) usar e abusar de cores e lentes. Aos poucos, o filme se embrenha no cinza, delira junto com sua heroína e passa a ter uma câmera mais febril e menos frontal, até aportar num mar de serenidade para arrematar num espetáculo de luz e sombra, uma leitura definitiva da mulher real de Russas, conterrânea de Allan, e que recebe uma homenagem aqui atrelada a uma declaração de amor ao cinema, a um pedido de socorro à arte e a uma oferta ao público de produção de extrema qualidade que flerta com texturas sofisticadas da carpintaria que seu autor apresenta, uma “biografia” (que definitivamente não trabalha os códigos básicos do gênero, ainda bem) como o cinema nacional há muito não via.

Mas nada do que o maestro propõe – que só na aparência é simples, ou nem nela – faria sentido sem um espetacular canto para costurar seu registro. Marcelia Cartaxo está em cena até na única cena que parece não estar, e a sensação ao final é de agradecimento a Allan, porque faz quase 35 anos que a atriz merecia uma obra como essa. Sua estreia no clássico A Hora da Estrela revelou uma mulher como talvez nosso cinema não tenha qualquer outro exemplo. Marcelia, que é o próprio povo brasileiro no rosto e na tela, tem agora a missão de ser todas as expressões artísticas no momento onde precisamos defender cada uma delas. Allan faz com que ela nos arranque sorrisos, gargalhadas, piedade, lágrimas e ao final infinitos aplausos, numa performance tão histórica quanto Macabea. E é exatamente no final que o público se dá conta de que assistiu a uma gama tão profunda de elementos e de possibilidades que cada choro na plateia se justifica. Todos banhados pelo patinho feio transformado em cisne e seu impressionante maestro.

(Fonte: www.cineplayers.com )

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