Okja
(Okja, 2017)
Por Felipe Leal
A serviço da conveniência.
Logo no princípio de Okja (2017), uma aparentemente implícita e ingênua oposição: a vendagem da história “sobre a amizade entre uma garota e sua amiga super-leitoa”, a composição de um hábitat romântico-campestre, pueril, onde as criaturas dormem antes da hora do jantar e não há preocupações; e do outro lado, pululando em excentricidades quase envernizadas para não se mostrar horrível demais, mas na verdade já deveras hipócrita, a fábrica Mirando de carne de porco como opção sustentável: super-leitões que consomem menos do meio ambiente e nele defecam menos, produzem mais carne e são extremamente dóceis. Tilda Swinton com uma chapa quase eqüina, Gyllenhaal hiper-afetadíssimo e solene.
Caricaturas como que programadas para uma teatralização da denúncia já estampada e mastigada da hipocrisia, porque, afinal, agora, é preciso emprestar um sabor cômico a tudo. O produto – vou chamá-lo assim, por falta de melhor denominação, mas por ser exatamente o que Okja parece ser – não desce bem quando não se veste dos artifícios abrangentes. Mas das duas coisas, do contraste e da abrangência, falarei em breve. Antes, a estética que oscila entre filme-encomenda por membro familiar infantil, e o abraço à causa ambientalista travestido nos piores disfarces possíveis. Ou melhor: sequer travestido, à obra contemporaneíssima é bastante apreciado o discurso explícito. Acompanhamos a transição (revolucionária!) do politicamente correto, em que o panfleto não necessariamente deixa de ser mal-quisto, mas cai em valor como elemento de mau juízo. Das feridas, passa a ser a que menos incômoda. Dos desastres, o menos sensível. Causas devidamente abraçadas, nasce a geração dos “filmes importantes”.
É preciso falar da heroína conveniente. Das facilidades da heroína que vai quebrar o porquinho com moedas para sair de seu vilarejo e resgatar a amiga gigante em Seul, invocando um espírito de John Woo para saltar pontes, pular em cima de caminhões, pendurar-se em veículos em movimento, puxar uma leitoa gigante através de um micro-shopping num subsolo, causando destruições e peitando homens armados, num estilo de perseguição e desastre a que o diretor coreano felizmente já está acostumado; mas só para minutos depois estar sujeita aos sacolejos e sabores de seja quem for: a instituição de libertação animal ou a multinacional carniceira utilizarão a menina – pasmem: esta mesma descrita linhas acima – como publicidade, como trampolim para egos infláveis, como encurtamento de caminhos para conseguir o que se quer, e percebe-se logo que para Joon-Ho Bong, esse mesmíssimo que havia realizado obras da magnitude de um Hospedeiro (Gwoemul, 2006) ou Memórias de um Assassino (Salinui Chueok, 2003), é bem possível que se vender tenha sido via fácil: quando for de sua conveniência, a garotinha se torna um titã indiscutível; quando não, um objeto a ser literalmente transportado. Disfarçado pelos véus de sua criação, parece existir, ainda, a ingênua ideia da criança como portadora de uma bondade não-corrompida: todos os adultos ao seu redor mentem, até mesmo seu avô, mas tentarei não falar, aqui, da inocência de Bong, somente de sua aparente vendagem.
Pior: em seu abraço a um mundo bipartidário (porque o resto da civilização foi excluída ou não importa, na maior parte do tempo) ‘defensores x interesseiros’, essa mesma protagonista é o único jorro inquebrável de pureza. A Força de Libertação Animal a trapaceia (e a si mesma, a seus valores, bamboleante que é), a empresa também (e a si mesma, quando for conveniente ao desenvolvimento da trama mostrar sua podridão também interna), embora isto já fosse óbvio. Diante das agruras internas da organização e da aceleradíssima, previsível e programada derrocada da empresa, a permissividade impregna de máscaras e acidez a pauta animal-ambientalista: no filme de bandeira, tudo vale.
É como se, numa dramatização maniqueísta das boas intenções que eventualmente virarão (e viraram) distorcidas e malignas, um roteiro que, convenhamos, já se apresenta mastigado e revirado às centenas, em Okja ficasse mais do que claro todo um abuso de hashtags, filtros, denúncias, tomadas de consciência e desconstrução, ou seja, uma nova qualidade do político que infiltrou o cinema para corroê-lo por dentro e defendê-lo de fora: a etiqueta inescusável da bandeira. Ela funciona de forma a inserir na obra qualquer causa que seja, tornando-a um jogo de oposições e forças em que a trama precisa se adaptar para a ela dar espaço: vê-se uma superação peculiar do maniqueísmo clássico: há jogadores de um lado, jogadores de outro e um protagonismo puro no meio (que este varie entre graus máximos de “fibra moral” e mínimos de fraqueza-em-vias-de-ser-transformada não importa muito). Daí, pelas gargantas do público majoritariamente dividido entre os politicamente conscientes e aqueles que não verão mal numa dose de problematização, tudo precisa descer de maneiras palatáveis: (fora a causa em si, que costumeiramente se apresenta nos trajes de uma “questão social”) há momentos de alívio cômico, algumas dezenas de falas panfletárias, uma estetização para garantir os louros da fotografia, etc. A intenção é que se abrace o maior número de olhos possível.
Mas, a bem da verdade, há uma cena de Okja que bem define sua ineficácia enquanto abraço de uma causa e enquanto obra por si só; ou melhor, uma transição: saída da fábrica após deliciosa negociação com uma das gêmeas más, possivelmente o momento-chave do filme, a garotinha passa por um campo de super-leitões prontos para o abate e presencia um momento de “humanidade sobre-humana” por parte de um casal de bichos: os pais de um pequeno porco abrem espaço na cerca elétrica, em meio a dores indizíveis, para que seu filhote seja salvo, e este foge escondido na bocarra da doce e gigante Okja. O momento, que só pode significar uma tentativa de tornar mais humanos que nós aqueles bichos, mas também convocar a mais palpável empatia em quem o assiste (somos nós enquanto seres de consciência, não há dúvidas), é logo cortado pela resolução prevista: o animal e a menina, agora com a adição de um filhote à família, voltam a viver em tranqüilidade. Haverá corte mais revelador de uma ingenuidade, ou símbolo maior do quanto a arte, ao se tornar meio de, propagador de discurso, invólucro de disputas que a superam (o que não quer dizer, repetirei infinitamente, que os âmbitos são imiscíveis), torna-se qualquer coisa menos aquilo que realmente é? E se a pergunta subseqüente é: o que ela é?, tampouco saberia respondê-la: seu âmago se perdeu nos desvios.
( Fonte : www.cineplayers.com )