“Malês”, de Antonio Pitanga, é um filme importante e excelente sobre o levante negro na Bahia do século XIX
Por Renan Guerra
A historiografia oficial do Brasil foi durante muito tempo feita por mãos brancas e, como propôs a historiadora Beatriz Nascimento, era preciso repensar as nossas memórias, pois vivemos em um país que possui essencialmente uma história negra, feita por pessoas negras. O ator e diretor Antonio Pitanga, figura central da cultura brasileira do século XX e voraz pesquisador das narrativas negras no Brasil, vinha há anos pensando em como trazer essa história afro-brasileira para as telas. Com uma ideia surgida de forma embrionária em uma conversa com o cineasta Glauber Rocha durante as filmagens de “A Idade da Terra” (1980), a ideia de levar às telas a narrativa do levante dos Malês se transformou em projeto posto em prática a partir dos anos 90 e de lá pra cá foram mais de 30 anos até o filme chegar ao grande público.
“Trazer a história dos Malês para o cinema foi sempre um desejo muito grande, já que eu conhecia essa história desde rapaz. Todos os baianos, principalmente nascidos nas década de 20, 30 e 40, como eu, temos conhecimento da importância desses negros sequestrados do norte da África, que vieram do Togo, do Mali, de Omé, Senegal, Nigéria, que vieram com o conhecimento da física, da engenharia, da matemática, um real saber. É uma história de negros sequestrados na África com outros negros nascidos no Brasil que se organizam contra todo tipo de preconceito, de escravidão, de invisibilidade. É uma história crucial para ser contada: sobre um dos mais importantes levantes que aconteceram no país”, explicou Pitanga.
“Malês” (2025), que chega agora oficialmente aos cinemas brasileiros, é baseado em fatos históricos, recontando a Revolta dos Malês, o maior levante organizado por pessoas escravizadas da história do Brasil. Em 1835, a insurreição mobilizou a população negra – escravizada e liberta – pelas ruas de Salvador contra a escravidão. Encabeçada por africanos muçulmanos, os chamados malês, a rebelião aconteceu no final do Ramadã, celebrado em janeiro pelo Islã. Após o fracasso da revolta, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra os negros no Brasil aumentou. No longa, Antonio Pitanga faz as vezes de diretor e protagonista, interpretando Pacífico Licutan, um dos líderes do levante que reforçava a importância da participação de diferentes tribos e religiões para o sucesso da revolta e o fim da escravidão. Em seu entorno, se desenvolvem diferentes narrativas contadas a partir de personagens reais, como Ahuna (Rodrigo de Odé), Manoel Calafate (Bukassa Kabengele), Vitório Sule (Heraldo de Deus) e Luís Sanim (Thiago Justino), bem como personagens fictícios que ilustram dramas reais da época, como Dassalu (Rocco Pitanga), Sabina (Camila Pitanga) e Abayome (Samira Carvalho).
Considerando essas amarrações reais e fictícias, o longa tem início no Reino de Oyó, na África, em 1830, onde Dassalu (Rocco Pitanga) se prepara para seu casamento com Abayome (Samira Carvalho). O que deveria ser o dia mais feliz da vida do casal se torna um pesadelo quando uma tribo rival invade a cerimônia e eles são capturados, separados e levados ao Brasil. Ao chegar em Salvador, Dassalu é vendido para a cruel fazendeira Mamãe A (Patrícia Pillar) e conta com a ajuda de Ahuna (Rodrigo de Odé) para tentar encontrar a noiva. Rodado em Cachoeira e Salvador, na Bahia, e em Maricá, no Rio de Janeiro, “Malês” parte da apresentação das difíceis condições de vida de homens e mulheres negros na Bahia do século XIX, para construir uma narrativa que reforça os movimentos de inssurreição dos povos escravizados e de um importante resgate da ação dessas populações no combate ao racismo extremo, à pobreza e à intolerância religiosa.
Com direção de Antonio Pitanga, o longa tem roteiro assinado por Manuela Dias e é baseado nas pesquisas do professor e historiador brasileiro João José Reis, autor de “Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835” (Companhia das Letras). Envolvida no projeto ao lado de Pitanga há muitos anos, Manuela é uma espécie de calcanhar de Aquiles do longa-metragem: como falado no início, há uma discussão latente há anos no Brasil sobre as histórias negras contadas por mãos brancas, portanto, a escolha de Manuela, uma autora branca, para assinar o roteiro do filme rendeu questionamentos de pensadores e pesquisadores negros. E isso tem um agravante: Manuela Dias está na mira do público pelo seu malfadado remake de “Vale Tudo”, repetidamente criticado por sua narrativa falha, rasteira e mais focada na inserção constante de merchandisings do que na real construção de seus personagens. E adicione aí o fato de que no meio da campanha de divulgação do filme, o debate público se intensificou com uma celeuma entre Manuela e a protagonista de sua novela, Taís Araújo, que reclamou publicamente dos rumos dado a sua personagem e deixou claro como ela estava buscando novas perspectivas de narrativas negras – e isso apenas escancarou o complexo olhar que Manuela tem sobre suas personagens negras em suas narrativas televisivas.
Dito isso, fica a pergunta: o que o texto ruim e vulgar de Manuela Dias na TV tem a ver com o filme que estamos debatendo aqui? É meio natural que com a relação passional que o brasileiro tem com as novelas isso seja passado para o filme de Antonio Pitanga e precisamos ser justos: o roteiro de Manuela Dias é realmente bastante didático e se repete em diferentes momentos, mas não é um roteiro ruim, longe disso: o filme sabe se desenhar e desenvolver seus personagens de forma interessante, criando ritmo, tensão e emoção no espectador. E essas narrativas se sustentam de forma sólida nas atuações de Rocco e Camila Pitanga, Bukassa Kabengele, Samira Carvalho, Indira Nascimento e Thiago Justino, com destaque especial aqui para as presenças de Patrícia Pillar e Edvana Carvalho, atrizes que aparecem pouco, mas que trazem pontos opostos completamente importantes para a expansão da narrativa. Vale destacar também a direção de fotografia de Pedro Farkas; Pitanga deixou claro que queria fugir daquelas fotografias que filmam o corpo negro suado ou sempre com tons de azul, por isso é interessante ver como a cor e a luz de Farkas filmam a pele negra de forma absolutamente bonita, sabendo jogar de forma inteligente com luz e sombra.
Dito tudo isso, seria fácil cair no chavão de dizer que “Malês” é um filme importante – o que realmente é, pois é urgente que se revise a nossa história do Brasil reajustando lentes e focos narrativos -, mas trata-se também de um excelente filme enquanto narrativa que nos envolve, que nos deixa tensos na poltrona, que nos emociona e nos movimenta de diferentes formas. É filme para se ver na tela grande, para se mergulhar de forma especial em suas histórias e sons – em excelente trilha sonora de Antônio Pinto e Barulhista.
“Malês” é um sonho de vida de Pitanga e que, felizmente, ele pode compartilhar com a gente ainda em vida, num momento especial em que temos a chance de ver, ouvir e imaginar outros futuros ao lado de um dos nossos mais importantes artistas brasileiros!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
Veja trailer:
FONTE : https://screamyell.com.br/site/2025/10/03/cinema-males-de-antonio-pitanga-e-um-filme-importante-e-excelente-sobre-o-levante-negro-na-bahia-do-seculo-xix/