“Dias Perfeitos”, Wim Wenders (2023)
Hirayama segue uma rotina semanal praticamente idêntica desde que acorda diariamente com o barulho da vizinha varrendo a calçada: ele se levanta, dobra o futon e o cobertor, escova os dentes, água seu pequeno jardim interno de plantas, pega a roupa de trabalho, abre a porta de casa, contempla o dia sorrindo, retira um café em uma máquina e, já no banco de seu pequeno furgão, dá o primeiro gole. Então escolhe uma fita cassete, coloca para tocar e dirige degustando a canção até chegar em seu trabalho. Extremamente dedicado e cuidadoso, Hirayama cumpre sua função de maneira meticulosa. Nas pausas, come um sanduíche e fotografa o sol entre as árvores. Seu dia segue com outros fatos corriqueiros, mas antes que o espectador imagine se tratar de uma ode à rotina, “Perfect Days” (seu título em inglês) revela pequenas nuances de mudanças tanto na maneira como a câmera focaliza cada iniciar de dia, sempre de um ângulo diferente, quanto com os acasos que surgem, inexoravelmente, na vida de todos nós, alterando de maneira leve o caminho do personagem. Lá pelas tantas (“Perfect Days” é formado por quatro contos quase não identificáveis tamanha a unidade da história), a associação que vem à mente diante da atuação magistral de K?ji Yakusho (que ganhou o prêmio de Melhor Ator em Cannes por seu papel) é de que tanto seu Hirayama quanto o Miles de Paul Giamatti (favorito ao Oscar) em “Os Rejeitados” são, a rigor, a mesma pessoa, mas lidando de maneira diferente com seus traumas pessoais: enquanto Miles distribui amargor e rancor, Hirayama devolve bondade e sorrisos. A beleza (e destreza) com que o roteiro meticuloso de Wim Wenders e Takuma Takasaki constrói Hirayama é típica dos grandes mestres transformando “Dias Perfeitos”, representante do Japão na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar, num daqueles filmes que mais do que assistido, ouvido (a trilha sonora é de arrepiar a alma – tente ouvi-la numa sala de cinema!) e admirado precisa ser estudado, porque o que temos aqui é nada mais do que uma delicada obra-prima, mais uma de Wim Wenders. Aplausos!
Dias Perfeitos acha beleza e até variedade ao reconhecer crueldade da repetição
Wim Wenders revela e celebra sentimentos que quase nunca têm vez no cinema
Em algum ponto das pouco mais de duas horas de Dias Perfeitos, o espectador começa a sentir que se tornou um conhecedor íntimo da casa de Hirayama (Koji Yakusho), protagonista do longa. Isso porque, enquanto acompanha o faxineiro por umas duas semanas de dias pouquíssimo excepcionais, o diretor Wim Wenders se dedica também a explorar e reexplorar as entranhas do pequeno sobrado onde ele vive, equilibrando com cuidado a repetição dos atos e movimentos da rotina do protagonista e a busca por ângulos de câmera novos (cortesia da fotografia metódica de Franz Lustig), que revelem um olhar expressivo para essa rotina.
Daí que a luz neon rosa que ilumina o quarto-estufa do segundo andar da casa se torna fantasmagórica ou convidativa, dependendo do contexto de cada cena. A janelinha ao lado da porta da frente, enquanto isso, vira instrumento para Wenders e Lustig emoldurarem a curta caminhada de Hirayama até seu carro durante uma manhã particularmente difícil, evidenciando subitamente a tensão voyeurística da proposta narrativa do filme. A cozinha-banheiro onde o protagonista escova os dentes de manhã, a escada estreita que dá para seu quarto, a salinha diminuta onde guarda seus livros… as marcas de uma vida “pequena” que por vezes parece claustrofóbica, por vezes reconfortante em sua simplicidade.
É nessa oscilação entre ajuste e desajuste, constância e… (LEIA COMPLETO)