Um convite à reflexão
Por Rodrigo Torres,
As Jornadas de Junho de 2013 cindiram a população brasileira. A revolta do Movimento Passe Livre contra o aumento das passagens públicas, ligado a fortes suspeitas de corrupção (no caso do Rio de Janeiro, à relação sórdida entre o PMDB e o “Rei dos Ônibus” Jacob Barata), foi logo instrumentalizada como um sentimento de revolta contra o Governo Federal e seus representantes — algo inflamado pela crise que o país de fato enfrentava.
Após as eleições do ano seguinte, o país ficou polarizado entre dois grupos: o que apoiou o candidato derrotado Aécio Neves em sua promessa de invalidar o pleito a todo custo, com direito a fake news sobre fraude nas urnas e todo tipo de narrativa falsa que desestabilizasse a presidenta eleita e a impedisse de governar; e a esquerda, seus simpatizantes e uma ala menor de pessoas imparciais cientes da natureza (corrupta), das intenções (o poder) e dos meios (espúrios) dos políticos que impunham a deposição de Dilma Roussef.
Todos os episódios que se seguiram revelaram — para quem quisesse ver — a fragilidade da democracia brasileira. Em todos os seus poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário, imprensa. Nos noticiários, escândalos de um sistema político irreformável, baseado em dois problemas fundamentais: a sujeição do presidente em fazer alianças com as classes mais altas e conservadoras do país; e os financiamentos de campanha, que subordinam a classe política ao poderio financeiro e às contrapartidas exigidas pelo empresariado.
A democracia é, portanto, algo delicado no Brasil. Manobras recentes revelam um estado atual preocupante. A bem da verdade, parte da população não se importa, haja vista a eleição de um apoiador da ditadura e seus torturadores, Jair Bolsonaro, como presidente. A classe artística, por sua vez, segue majoritariamente vigilante. Reflexo disso é o fato de o cinema brasileiro já ter produzido, em dois anos, três longas documentários sobre o tema: o ótimo O Processo, de Maria Augusta Ramos; o (ir)regular Excelentíssimos, de Douglas Duarte; e esse recente Democracia em Vertigem, de Petra Costa.
Além de mais recente, Democracia em Vertigem é o mais autoral dessa trinca. Ou o mais artístico, no sentido de arte ser forma, parafraseando Eugène Green. Tal como no tocante Elena, Petra Costa é, mais uma vez, narradora e personagem do documentário. E é com boa habilidade que a cineasta associa a história política do país à história de sua família. Ela, uma contemporânea da volta da democracia no Brasil, e sua mãe, uma estudante universitária (e militante) na década de 60, de um lado; do outro, seus avós e a parte mais abastada da família, empresários em conluio com as maiores e mais tradicionais lideranças políticas do país (e, assim, enriquecendo e perpetuando seus privilégios de classe). Conflitos íntimos que são um libelo do Brasil de hoje, e há uns bons anos. Desse modo, de quebra, Petra blinda algo característico de seu cinema de funcionalidade narrativa, impedindo que seu filme soe gratuitamente autorreferencial.
Formalmente, Democracia em Vertigem é coerente e constante. Desde a abertura, de câmera na mão nervosa que se agita dentro de um carro cercado por flashes em uma noite escura, à cena mais icônica do filme (uma tomada aérea em travelling frontal sobre o Congresso Nacional e seus gramados), a fotografia, a trilha sonora e a narração dão o tom do filme: um realismo que demanda e emana suspense. Pertinente, assim sublinhando uma realidade que se torna mais sombria e dramática perante as tramoias do Planalto. Dentre esse absurdos, de áudios criminosos entre políticos e empresários à desfaçatez de deputados que se contradizem ao votar pela manutenção no poder do corrupto Michel Temer meses depois de impicharem Dilma Roussef por muito menos (ou nada, do ponto de vista legal). Ainda mais chocante é constatar que parte da população assiste a isso com indiferença e age com virulência ao se deparar com manifestantes vestidos de vermelho. Um fenômeno chamado intoxicação ideológica.
Essa trama desalentadora, que tão bem reflete o sentimento da população diante dos desmandos do governo (pesquisa recente mostra que 83% dos brasileiros estão insatisfeitos com a democracia), pauta a atmosfera de Democracia em Vertigem. Em passeios solenes por um imponente Palácio do Planalto vazio que se torna escuro ao longo da projeção. Na contraluz que transforma os funcionários de Brasília em meras silhuetas — espectros, o que ilustra sua insignificância. Quando uma dessas sombras ganha cor e voz, para manifestar sua opinião sobre o impeachment de Dilma Roussef, o relato é arrasador.
O discurso começa hesitante, cético, até contraditório, assim já sendo cheio de significados sobre o estado de confusão que acometeu o povo em meio a tantas narrativas dissonantes. O relato se torna mais sofisticado quando a faxineira lamenta não poder limpar as sujeiras do governo Dilma com um pano, com água. Então, em um incrível fluxo de consciência, ela vai, vem e avança em suas próprias conclusões: “Essas coisas sempre acontecem na política. Na minha opinião, fez por merecer. Senão a população toda não pensava assim. Mas acho que não tem ninguém limpo. Acho que o povo escolheu ela. Na minha opinião, novas eleições seria melhor. Porque eu não sei se ela foi tirada pelo povo. Não foi uma escolha do voto. Não foi uma democracia… Na verdade, no Brasil não existe democracia! Acho que não…” Tanto quanto sua percepção, triste daquele que subestima a sabedoria popular.
Esse cenário é muito bem delineado sem o anseio de ser imparcial — algo que nem existe. No texto, com Petra Costa declarando abertamente o seu lado e a sua tese (condizente com a teoria demonstrada por Noam Chomsky no fundamental Requiem For The American Dream). Em cena, o que pode soar egóico em seus momentos frente às lentes. No registro, com a câmera sempre próxima e sensível a Lula e Dilma. E na estrutura: o eixo de Democracia em Vertigem é a prisão do ex-presidente. O ponto de partida para contar toda essa história sobre o fim da democracia. Porque Lula é inocente? Não. Não necessariamente — o doc não entra nesse mérito e até critica o PT que ele moldou no governo. Mas, sim, não se furtando de compor toda uma reconstituição que fundamente o ponto de vista da diretora: de que a condenação do fundador do Partido dos Trabalhadores é política. De que a Lava Jato foi um evento parcial, talhado para arrancar um braço corrupto da vida pública e manter outro(s), assim perpetuando todo um sistema de corrupção. E, como o filme faz ao retornar para o dia 7 de abril de 2018 em seu clímax, para enfraquecer uma ideologia e descartar um símbolo tão eloquente, tão influente, do jogo político.
Não precisa ter o mesmo viés político e ideológico de Petra para avalizar Democracia em Vertigem. Ao contrário daquele filme revisionista sobre a ditadura militar e o golpe de 1964, o novo documentário da Netflix se pauta em fatos. Com lacunas, claro, mas sem distorções. Um recorte consistente, bem montado e didático. O objetivo: mostrar o que vem acontecendo e a gravidade disso — ruim para todos que não se incluem entre os poucos. Com profundo respeito pelo que o Brasil vive e a História já atesta. Ao mesmo tempo em que o conteúdo de reportagens do The Intercept Brasil parecem comprovar sua tese. Em dado momento, a câmera só encena os quadros de fotos dos políticos que presidiram o Senado: todos homens, todos brancos. Reflexo de um Brasil conservador mais comprometido em manter privilégios do que em ser democrático. Petra não diz, mostra. Assim fazem os bons filmes.
Dada essa demonstração da hegemonia masculina na História do Brasil, é ainda admirável o tratamento dispensado por Democracia em Vertigem a Dilma Rousseff. A cineasta associa o legado da ex-presidente à militância de sua mãe nas décadas de 60 e 70. Mas não é só. Assim como Maria Augusta Ramos em O Processo, Petra se preocupa, em particular, em ouvir Dilma. Uma política que teve sérios problemas como governante, sem dúvida, mas sai aparentemente limpa de toda essa sujeira. Deposta por não ceder às chantagens de um corrupto notório. Isolada em meio a tantos homens tão poderosos. Petra se identifica. Com Dilma e com a faxineira descrente na democracia. Dentre tantas qualidades, uma força pulsante nesse documentário é sua sensibilidade. Assim como é louvável mostrar que elas, mulheres, estão fora do jogo e não se abatem na luta por um Brasil melhor — e se unem.
Fica, assim, um belo recado. Com essa união, essa empatia, o país não estaria tão tenso, violento, irracional e sem rumo. Também por isso eu enxergo Democracia em Vertigem como mais que um exercício para convertidos. Discursivamente, é um convite à reflexão de todos. E é, cinematograficamente, um ótimo documentário.
(Fonte: www.cineplayers.com )