Sorriso amargo
Por Francisco Carbone
Do coração ferido de Arthur Fleck brotou uma flor artificial que ‘sangra’ água quando ele é surrado na primeira sequência de Coringa, olhar corajoso e rejuvenescido para o homem cuja alcunha do título o tornou célebre. Essa surra é apenas a primeira das inúmeras que o personagem leva no filme em várias instâncias diferentes, das literais às metafóricas e simbólicas; nenhuma delas consegue fazer nascer qualquer válvula de comiseração por parte do público. O sentimento desde o início é de estranheza, que se transforma em incômodo, passa pelo espanto e termina… Bom, termina na subjetividade de cada um, mas há de se olhar pro longa e compreender sua capacidade de provocar discussão com um tema tão em voga e se firmar como arte acima de tudo, aquela que não tem qualquer intenção de ser paternalista com seu público.
O logo da Warner Bros. setentista deixa claro de cara para onde Todd Philips está apontando com seu filme, mas as dúvidas restantes vão se esvaindo bem depressa assim que temos acesso à ambientação claustrofóbica de cenários fechados e reproduções em estúdio, as cores esmaecidas onde o amarelo-refletor permeia a construção imagética optada por, nas reproduções inteligentes do figurino da época (sem a deslocada extravagância com a qual se associa preguiçosamente o período), ou seja, há uma ideia de manutenção do projeto para ser inserido no período passado na narrativa, ganhando charme e ambiência com esse recurso.
Por essas inspirações não é de se estranhar que o cinema da Nova Hollywood seja uma inspiração para Pihilips, aqui, especificamente, Martin Scorsese. Enquanto títulos como Taxi Driver e O Rei da Comédia estão explicitamente homenageados, dados o contexto em um e a narrativa no outro, indo da psicopatia como forma de pulsão social causada pelo exterior ao estudo obsessivo de personalidade e delírios igualmente sociais, um terceiro título une as duas vertentes e cria uma terceira em análise. Cabo do Medo promove ainda o elemento imagético (presente igualmente nas duas obras supracitadas) para ridicularizar suas imagens. O visual do Max Cady de Robert DeNiro está transposto para Joaquin Phoenix, assim como suas risadas inconvenientes e altas na cena do cinema e de um plano específico, onde Cady se exercita e vemos as costas de DeNiro definidas pela malhação, ao passo que as de Phoenix são filmadas iguamente em esforço, porém em prol de um feixe de ossos.
Esses filmes citados, além de Clube da Luta e a versão de Christopher Nolan para o personagem em O Cavaleiro das Trevas são exemplos utilizados para alertar para possíveis usos do filme a título de não apenas justificar tragédias vindouras, mas principalmente debater a utilização dos ‘incels’ pelo cinema – sigla para celibatários involuntários criada nos EUA, para especificar homens que explodiram em violência após se considerarem perseguidos pela sociedade e desprezados pelas mulheres. Alguns acusam essas obras de fornecer motivos para a psicopatia desses homens, o que não é o caso de Arthur Fleck, um homem de fato sem oportunidades em uma terra cujo sonho estava desmoronando, mas o roteiro apresenta na narrativa outras pessoas também desassistidas que ainda assim não incorreram no crime.
O filme ainda poderia funcionar como um díptico a Onde os Fracos não têm Vez, dos irmãos Coen, no que concerne ao surgimento e à escalada da violência enquanto alegoria no mesmo recorte de período. Se no interior da América essa violência é insidiosa e sorrateira nessa primeira fase de surgimento, em Gotham ela irrompe com a fúria escandalosa dos grandes centros, descomunal e virulenta em seus excessos. Ambas são filhas do adoecimento geral da sociedade, ainda que no já clássico de 2007 tudo se dê no campo da ingenuidade do interior, e no novo ela é palpável como a matriz principal desse microcosmos degenerado.
Tecnicamente irrepreensível, Coringa é um avanço para o cineasta responsável pela série Se Beber, Não Case!, que aqui demonstra não apenas segurança no trabalho sofisticado que apresenta como amplia possibilidades para parceiros de longa data como o fotógrafo Lawrence Sher, que apresenta um trabalho tão brilhante quanto o da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir, responsável pela magnífica trilha de Chernobyl e que aqui mostra ter tido um ano impressionante. A trilha de Hildur promove uma ranhura bem vinda com a mise-en-scène do diretor, que assume uma proposta enclausurada, ao passo que a trilha aponta acordes agudos para narrar a história de Fleck.
Longe de exaltar seu protagonista, o filme apenas acompanha uma sociedade apodrecida por inteiro, poderosos e desvalidos, ricos e pobres, um mundo à beira de um colapso social há quase 40 anos, onde as questões morais foram extintas e que reflete sobre o hoje de maneira repetitiva. Se Arthur Fleck é um produto desse meio, suas falhas como indivíduo não deixam de ser sublinhadas, assim como as do Estado, em círculo vicioso.
Ainda que o diretor exiba merecidamente orgulhoso sua evolução de cineasta a autor, a alma de Coringa pertence a um homem que não erra. Em interpretação espetacular, mais uma vez Joaquin Phoenix prova porque é o melhor ator vivo em atividade; original, imprevisível, repleto de nuances, capaz de arrepiar com gargalhadas alucinantes emendadas com choro sempre envolto em mágoa, não há uma só cena do filme onde o ator não dê aula de interpretação, deixando qualquer espectador sem conseguir esboçar reação. É na contribuição inestimável de Joaquin que tudo dá certo e Todd Philips consegue moldar sua obra atrevida e muito adulta em um estudo de personagem dos mais complexos dos últimos anos.
( Fonte: www.cineplayers.com)