Blade Runner 2049

Blade Runner 2049

Por Bernardo D.I. Brum

Villeneuve sonha com ovelhas elétricas.

Ao contrário do cult movie original dirigido por Ridley Scott, baseado no conto Do Androids Dream of Electric Sheep? do visionário autor de sci-fi Philip K. Dick, Blade Runner 2049 não é propriamente um pesadelo sujo, onde o progresso científico e tecnológico não acompanharam o desenvolvimento humano; a sequência que comanda é um diferente tipo de perturbação. É o pesadelo da assepsia, onde a decadência humana não é mais uma questão. Ela veio, viu e venceu. Os poderosos têm seus delírios biológicos ao seu bel prazer, seus comandados levam vidas monocórdicas e o que seria a escória vive como pano de fundo ou mesmo lenda.

Em Blade Runner 2049, o replicante blade runner K caça um dos últimos replicantes rebeldes sobreviventes, Sapper Morton. No quintal de sua casa, descobre a ossada de uma replicante que aparentemente estava grávida; a existência dessa criança (um andróide nascido, não criado) pode mudar o curso da humanidade, o que satisfaria tanto os anseios de Niander Wallce, fundador de uma megacorporação responsável por criar replicantes com menos possibilidade de rebelar-se, quanto mostraria os replicantes como o próximo passo na evolução biológica. E todos os caminhos parecem levar ao lendário blade runner Rick Deckard, desaparecido há décadas.

O mistério que carrega as extensas 2 horas e 43 minutos de Blade Runner 2049 é totalmente infundido na sua atmosfera lenta, calculada, seus grandes espaços, seus grandes silêncios, sua higienização doentia, sua interação com simulacros (K namora uma acompanhante holográfica; Wallace é cego e só enxerga através de pequenos drones). A opulência lembra – e muito – a do original, a percepção de como a tecnologia superou o homem, mas a câmera não é “colada” aos seus protagonistas, na solidão de Deckard ou a vida marginal e perigosa dos replicantes. A vida tediosa de K é construída com silêncio e com detalhes, com a amargura e o cinismo de todo típico herói noir desde Sam Spade e Philip Marlowe, mas também aparece como um herói confuso, perdido, constantemente alterado e até perturbado pela situação que o cerca.

Villeneuve, junto com Roger Deakins, compuseram com paciência essa opulência terrível. A mais banal das conversas guarda um jogo de expectativas por trás de si e cada travelling que descreve as paisagens em grandes planos gerais nos dá a sensação de um gigantismo que não podemos alcançar. A trilha sonora de Hans Zimmer jamais é excessiva – comenta, amplifica, é frequentemente assustadora. Estamos diante da mais paciente das composições, afinal de contas. Villeneuve lança mão de mais de um recurso narrativo, escondendo reviravoltas enquanto nos faz crer que estamos a par de tudo, tornando-os tanto cúmplice do buraco onde K se mete, mas tão impressionado quanto ele em revirar o passado desse Estados Unidos especulativo.

A temporalidade sempre foi uma arma dos filmes de Villeneuve, haja visto a contínua decadência moral de uma típica família em Suspeitos; no mundo feio, sujo e malvado que constantemente nos trai em Sicário; a via crucis de Incêndios; a incompreensão quase absoluta de O Homem Duplicado e a busca pela mesma em A Chegada. Seu tempo é sempre dilatado, a reação dos seus atores é sempre minúscula, sua narrativa flui como o escorrer de água, lenta porém inexorável; não contente apenas com em agradar olhos e ouvidos, faz questão de valorizar a intenção catártica de cada plano – curiosidade, agonia, sacrifício. A beleza não deixa de ser desconfortável nesse filme onde o belo é uma perseguição em escala industrial, projetado, emulado, jogado mas nunca materializado, encarnado, vivido.

Seria fácil encontrar uma moralidade de que é uma história sobre uma sociedade “que vive de aparências”, mas que certamente cultiva sua obsessão por simulacros de outra vida. E em Blade Runner 2049, o eterno conflito do personagem cinematográfico de querer outra vida parece a única coisa real. Os hologramas querem ser matéria sólida; os replicantes gritam e choram de frustração e tristeza; e os poucos humanos da trama são em grande parte os mais desprovidos de sentimentos, seja pelo excesso de passado ou o peso do desejo pela melhoria e eficiência artificial. Em 2049, humanos querem ser máquinas (priorizando a perfeição, os ângulos retos, o profissionalismo) e máquinas querem ser humanos (sentir, relacionar-se, conviver, unir-se).

Fácil, também, é taxar Villeneuve de frio, de pouco simpático, de anti-climático; mas quantos pequenos clímaxes não estão pingados por um ou dois segundos em Blade Runner 2049, onde acompanhamos as reações de seus atores sem cortes, sem closes abusivos, sem apelações sensoriais que cobrem uma resposta imediata. Não projeta em nós, mas antes projetamos neles as dúvidas e as expectativas. O que pode ser chamado de inexpressivo na verdade é o clamor por nós prestarmos atenção no que se passa por trás daquilo tudo, onde pequenos gemidos vacilações precedem grandes ações, onde o plano estático, o foco seletivo e o travelling lento são prenúncios da montagem alternada, dos cortes secos e agressivos, evoluindo naturalmente para o grotesco. Porque todo o filme de Villeneuve é ligado à narrativa. Todos estão perseguindo narrativas, seja a história onde os humanos conseguirão dominar o universo ou onde as máquinas conseguirão cortar seu cordão umbilical dos humanos. Todos imaginam sua própria fábula particular, sua própria mentira, todos estão armados de uma viseira contra uma realidade que cedo ou tarde bate à porta. O conflito entre imaginar e aceitar é o mote de Villeneuve compôr como compõe.

Entre o jogo de luzes, sombras e neon, o filme de Villeneuve pode não se manter sempre interessante ao longo de sua duração realmente exaustiva – às vezes parece dois filmes em um quando passa a focar em mais de um personagem e cede à algumas facilidades como flashback em forma de áudio de outras cenas para externar o que o protagonista pensa naquele momento. O recurso da “cena revivida” nem sempre é errado – é usado de forma primorosa no diálogo entre Deckard e Wallace, onde o flashback do Blade Runner de 1982 encaixa-se por um fugaz momento em uma relação de câmera subjetiva de plano e contraplano que Deakins faz com tanta imersão nos filmes do irmãos Coen, por exemplo. Demonstra, acima de tudo, uma sede por compôr um cinema dissidente do típico mainstream, mas sem perdê-lo de vista. Aborda questões éticas e religiosas, mas sem perder a força simbólica que a ficção científica especulativa e o cinema policial carregam em si de exteriorizar preocupações através do estilo. O sonho com ovelhas elétricas de Villeneuve potencialmente se equipara à iconografia desbravadora do cyberpunk de Ridley Scott, atualizando suas questões para nosso tempo, potencializando a força de um mito e abrindo um caminho próprio da ficção científica de um novo século. A fabulação, aqui, é perseguida como o mais opressivo dos sonhos e o mais belo dos pesadelos.

( Fonte : www.cineplayers.com)

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