‘O mito do mito’: romance póstumo de Rita Lee passa a limpo comportamento dos personagens do show business
Nelson Motta resenha romance escrito pela rainha do rock: ‘comédia psicanalítica, a cura pelo riso”
Por Nelson Motta
Assim como em sua autobiografia póstuma, cumpro o desejo de Rita de que esse amigo de toda a vida faça a resenha dessa sua primeira ficção, “O mito do mito”, iniciada em 2019 e que, como se sabe, serve para revelar muito do ficcionista real. No caso de Rita, que sempre flutuou entre a realidade e a ficção, ela criou um romance pop, em que revela verdades íntimas e profundas, mas com um distanciamento crítico, uma espécie de revisão geral de suas ideias sobre ídolos e fãs, contada pelos seus diálogos com um jovem e misterioso psicanalista alemão, que a chama de madame e a atende numa casa mais misteriosa ainda no Centro de São Paulo, e com a assessoria da irmã Virginia fazendo comentários e passando instruções pelo earphone do celular de uma casa ao lado. Comédia psicanalítica. A cura pelo riso.
Fiquei chapado com o seu conhecimento, suas pesquisas e experiências e as suas reflexões sobre esse ser contemporâneo que significa tanta coisa: o fã. Rita identificou e catalogou dezenas de tipos de fãs — e suas relações com os artistas. E dos artistas com eles. Alguns são hilariantes, outros dramáticos, perigosos, invejosos, assassinos como Marc Chapman. Você vai encontrar todos os tipos de fã que você nem imagina nesse catálogo que ela organizou e comentou.
Rita esteve dos dois lados do balcão, começou no Fã Clube Viúvas de James Dean e seguiu com os Beatles, os Stones, Bowie, e depois Caetano, Gil, Jorge Benjor, João Gilberto, Cole Porter e muitos outros que a inspiraram pela vida. Rita sempre teve seus ídolos e amou ser fã. E sempre tratou os fãs muito bem. O seu “estudo antropológico do fã” merece estudos mesmo, porque revela tanta coisa dos artistas e do público brasileiro, suas formas às vezes controversas de expressar amor (ou ódio), que vai bem além da superfície que se ouve nos aplausos.
Como em tudo que fez na vida, é o fio luminoso do humor que costura os diálogos e revelações de Rita, em plena maturidade não só como mulher, mas como escritora de respeito e estilo, que escreve com fluência e naturalidade e um ótimo ritmo, ajudada pelo que a música lhe ensinou. Gabriel García Márquez dizia que era preciso hipnotizar o leitor com o ritmo das frases e a sonoridade das palavras até levá-lo ao próximo parágrafo. Rita consegue fácil.
“O mito do mito — De fã e de louco todo mundo tem um pouco” é pura Rita Lee altamente refinada no humor e na visão desse mundo cheio de loucos que cultuam mitos e ídolos que cultuam loucos. E de cara entra com o pé na porta: “Minha única condição é que esse livro só saia depois de morta. Artista morto vale mais. Além do mais não quero ninguém me perturbando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora mistério.”
Fundo de todos os poços
A escritora também sempre esteve envolvida com magia, espiritualidade, discos voadores, fetiches, civilizações extraterrestres, e com uma infinita curiosidade foi desvendado os caminhos do mistério ao longo de sua vida. Esteve no fundo de todos os poços e saiu melhor. Com toda sua experiência e maturidade ela pode falar com autoridade de sexo, drogas e rock and roll como ninguém. E também de mitos, como ela mesma, e dos mitos que a música pop cria no imaginário popular.
Rita fez minuciosa análise de diversos tipos psicológicos de fãs e ídolos. Um não existe sem o outro. Por exemplo:
“Fã-ponta-da-língua. Artista-esquecido. Sua memória é extraordinária, lembra de coisas que nem o próprio artista não sabe e lembra as que ele esqueceu. Descobri que Renato Russo foi meu fã-ponta-da-língua quando o encontrei no camarim do Chacrinha e comentei sobre um show que fiz no iniciozinho do Tutti Frutti em Brasília, e ele com uma expressão seriíssima me enfrentou no ato: ‘Foi no Colégio Marista e entre tais e tais músicas você cantou ‘Ready for Love’, do Bad Company, e usou a guitarra Fender Telecaster do ano tal. No bis você cantou ‘Ovelha negra’ com uma cartola preta e um violão Martin.”
E assim ela vai apresentando outros combos, como o “Fã-educado. Artista grosso”; ou o “Fã-dãã. Artista-putz”, entre tantos. E tem também o caso do “Fã-inconveniente. Artista-severo” — quando uma famosa atriz não reconhece sua ex-psiquiatra, e fã, que vai cumprimentá-la no camarim. No fim, Rita chamou a atriz para uma reflexão: “Custava muito dizer que se lembrava dela e pronto? E a atriz respondeu: ‘Me dei alta há séculos. Aquela mulher é que precisa de terapia’. Artista adora terapia”.
Verdades expostas com leveza e autocrítica
Cada uma dessas dezenas de categorias “fã-artista” recebe um texto de comentários, histórias, deboches e achincalhes de Rita, causos hilariantes com anônimos e famosos, misturados com memórias e reflexões sobre essa relação que move o show business.
Rita tem alma de fã, é daquelas que chama o ator pelo nome do personagem da novela, adora o tapete vermelho do Oscar, pelo prazer em falar mal das roupas, achar horrível o penteado, flagrar as canastrices das estrelas. “Já notou como gringo arrumadinho para festa tem um certo cotê brega? Superproduzidos, ficam parecendo mórmons.”
São flashes de entrevistas, histórias de carreira, bastidores do mundo artístico, fábulas e folclores, aventuras com Leila Diniz e com Santo Antonio, que vão compondo um painel divertido sobre a natureza complexa do fã e do mito, sendo ela mesma os dois:
“Santo Antonio era fã do Menino Jesus. Em todo santinho eles estão juntinhos. Madonna deve ser fã de Marilyn Monroe, mas nunca confessa. Michael Jackson e Elizabeth Taylor eram a mesma pessoa. Roberto Carlos é fã de João Gilberto. Os Beatles eram fãs de Elvis, que quando teve um encontro com eles os esnobou duramente. Os Rolling Stones são fãs de Chuck Berry. Minha gata é fã do meu cachorro. Eu não sou fã de mim porque tenho a Lua em Virgem.”
Não conheço nenhum artista brasileiro importante que tenha exposto tanto e tão profunda e sinceramente as suas verdades, as melhores e as piores, e com tanta graça e leveza e autocrítica como Rita, e principalmente por ser mulher e enfrentar todos os preconceitos e pressões do patriarcado e da macharia, sempre vitoriosa, castigando pelo riso, ensinando pelo fracasso, escrevendo uma história de vida em várias linguagens, das memórias, da ficção, da autobiografia, das letras de música, dos discursos e entrevistas, das participações na TV. Do início ao fim os fãs viajam com ela dançando e gargalhando, chorando bastante, se arrepiando de emoção, acreditando no poder transformador da arte e no Amor com maiúscula, à família, à descendência, à natureza e aos animais, às forças misteriosas do Universo. E aos seus ídolos. E aos seus fãs.