Em “Nosferatu”, Robert Eggers evita a nostalgia reverencial e constrói sua própria obra-prima
Davi Caro
É possível dizer que ninguém explora o horror psicológico no cinema moderno da mesma forma que Robert Eggers. O diretor estadunidense, que construiu um excelente currículo de produções que se alternam entre o amedrontador e o intrigante (tal qual “A Bruxa” e “O Farol”, de 2015 e 2019, respectivamente), não é estranho a projetos ambiciosos, e carregados de simbolismo – e, desta forma, capazes de capturar por completo o imaginário dos fãs de terror junto à sétima arte. Ainda assim, mesmo toda a boa vontade angariada com seus trabalhos anteriores (em que pese o controverso “O Homem do Norte”, último longa dirigido pelo cineasta, de 2022) poderia cair por terra frente ao desafio de adaptar, ou mesmo ressignificar, um dos grandes clássicos do terror e da história do cinema como um todo – uma história recheada de ambição e simbolismo – com êxito.
Por mais que possa ser de conhecimento popular em 2025, não custa nada lembrar: “Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror” (“Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens”), longa-metragem expressionista dirigido pelo alemão F.W. Murnau em 1922, nada mais é do que uma adaptação não-autorizada do imponente “Drácula”, romance de Bram Stoker escrito no fim do século XIX. Não que isso realmente importe, para além dos elementos em comum que unem as duas narrativas, ou que tampouco impacte o legado daquele que é tido como o marco zero do cinema de vampiros. Eggers, tanto quanto o fã mais dedicado, sabe muito bem disso. E, em seu próprio “Nosferatu” (2024), que chegou aos cinemas brasileiros na primeira semana de 2025 após uma excelente estreia internacional, o diretor evita pender para a reinvenção ou para a homenagem derivativa. O resultado é um longa bem trabalhado, que não esconde sua admiração para com o clássico que o antecedeu (ou mesmo o menosprezado filme de 1979, dirigido por Werner Herzog) embora procure construir sua própria visão, explorando o contexto histórico da obra original para encontrar novos, e bem-vindos, aspectos narrativos que enriquecem a experiência de espectadores, sejam eles neófitos ou experientes iniciados.
Após incumbir o casal de amigos Friedrich (Aaron Taylor-Johnson) e Anna Harding (Emma Corrin) de manter sua esposa segura, o agente embarca em sua viagem – durante a qual se depara com uma estranha aldeia romena com rituais bizarros, que podem ter relação direta com seu destino final. É somente quando se encontra com a grotesca figura de seu cliente, entretanto, que Hutter desconfia estar envolvido em um plano maior e muito mais sinistro. E conforme as crises de Ellen retornam, mais agravadas do que nunca, impactando seus incrédulos anfitriões, e Knock misteriosamente desaparece, as teias de uma nefasta conspiração passam a se aclarar, revelando perturbadoras conexões entre a jovem moça e a sanguinária criatura ancestral que hospeda seu marido. E mesmo a ajuda do pouco ortodoxo Professor Von Franz (Willem Dafoe) pode não ser o suficiente para impedir um destino cruel de aplacar todos os envolvidos.
Basta olhar os muitos nomes elencados no longa para se dar conta do nível de profundidade a ser canalizado, pelo roteiro escrito pelo próprio Eggers, e a ser ilustrado pela magnífica cinematografia, em si repleta de planos amplos e movimentos alternantes de câmera. Porém, em uma das pouquíssimas ressalvas a serem feitas aqui, é justo afirmar que uma parte dos personagens não é agraciada de tanta profundidade em seu desenvolvimento: o casal interpretado por Aaron Taylor-Johnson e Emma Corrin, por exemplo, possui um arco pouco claro ao longo da trama, com o ceticismo do primeiro mostrando pouca ou nenhuma transformação, e a trágica sina da segunda apenas esclarecendo seu papel como ferramenta de roteiro. O mesmo pode ser dito do Herr Knock de Simon McBurney – qualquer um familiarizado com a primeira filmagem de “Nosferatu”, ou mesmo com a história que o inspirou diretamente, tem conhecimento (ou pelo menos indícios) do papel a ser desempenhado por este; ainda assim, fica a sensação de vazio em relação a seu destino final, ainda que seu desempenho não seja totalmente insatisfatório.
A (muito) boa notícia é que Eggers acertou brilhantemente ao centrar seu foco no núcleo formado pelos quatro personagens centrais do filme: Nicholas Hoult vem se mostrando cada vez mais talentoso e versátil ao longo dos anos, e seu Thomas é dividido em partes iguais de angústia, ingenuidade e determinação. Sua performance funciona como um contraste interessantíssimo com o Von Franz de Willem Dafoe (diretamente calcado, é notável, no Abraham Van Helsing de Bram Stoker), cujo “esoterismo” frente aos colegas e co-geracionais ajuda a ressaltar o pragmatismo e a inflexibilidade do pensamento caracterizado pelo período no qual a história se passa. Ambos surpreendem, mesmo desempenhando papéis já tão imbuídos no imaginário popular.
Surpreender, no entanto, é a especialidade de Lily Rose-Depp: quase como se a atriz tivesse embarcado no projeto disposta a apagar da história os infelizes resultados obtidos em “The Idol” (projeto de triste memória encabeçado por Abel “The Weeknd” Tesfaye em 2022), seu papel como Ellen Hutter é uma crescente constante, equilibrando com sutileza e maestria a fragilidade de uma jovem assolada por um mal por ela acidentalmente desperto, e a selvageria de uma mulher reprimida em sua individualidade, sua sexualidade e seu valor junto à sociedade na qual habita e cujos valores se vê forçada a seguir.
Mesmo em sua mais nova versão, esta se trata de uma obra melhor desfrutada uma vez que se procure entender seu contexto histórico, e sua visão acerca do individualismo que caiu em obsolescência em uma Alemanha que testemunhava a aurora da Revolução Industrial. Tal qual os outros longas dirigidos por Robert Eggers, “Nosferatu” se vale de um roteiro magistral e de atuações magnéticas, hipnóticas e macabras em níveis iguais para construir uma obra que, a exemplo do imortal longa mudo que a antecedeu, deve possuir um legado a longuíssimo prazo. Em sua época, o filme de Murnau atraiu a ira do espólio de Bram Stoker, que exigiu que todas as cópias existentes da produção fossem destruídas. As fitas sobreviventes, e utilizadas em restaurações e reexibições ao longo das décadas, foram essenciais para chamar a atenção de incontáveis devotos do cinema de horror ao redor do mundo para um trabalho pioneiro, revolucionário, e apropriadamente creditado como uma obra-prima. Afortunado, então, seja Robert Eggers, cujo “Nosferatu” pode, afinal, ser reconhecido como a grande obra de arte que é em sua própria época.
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