Meu pai
Um corredor em algum lugar
Por Cesar Castanha
Há um momento em Meu Pai (The Father, 2020) em que Anthony (Anthony Hopkins) não consegue se referir mais ao espaço fílmico como seu espaço. Restrito a um quarto pequeno e sem personalidade, ele perde enfim qualquer senso de pertencimento, começando a perder também seu sentido de identidade. Anthony, que até então insistia teimosamente ser o proprietário dos interiores que habitava (“Este é o meu apartamento!”, repete o personagem no que pode ser a casa da sua filha, do seu genro ou a sua própria), falha enfim em reconhecer e relatar a sua presença no espaço.
Meu Pai é uma adaptação dirigida por Florian Zeller de sua própria peça de teatro. Na trama, Anthony é um homem idoso que, depois de ter entrado em conflito com uma série de enfermeiras contratadas por sua filha, Anne (Olivia Colman), para acompanhá-lo em seu próprio apartamento, é forçado a deixar o lugar quando sua filha o avisa que irá se casar. O que o filme nos apresenta, depois disso, é uma experiência descontínua de tempo e espaço, no que o protagonista vive uma dificuldade de se situar (temporal e espacialmente) depois do agravamento da doença de Alzheimer que parece ter sido parcialmente influenciado por essa mudança.
Aqui, os diferentes cenários se misturam na formulação desse mapa mental de Anthony, que deixa a cozinha de seu apartamento e se depara com a sala de estar de Anne, e que pode descobrir, no corredor, o armário onde guarda seus bens mais valiosos (em especial, o relógio indispensável para que ele sempre saiba as horas). As técnicas fílmicas que Zeller usa para reproduzir em quem assiste ao filme as sensações de desorientação que afligem Anthony têm sido identificadas como uma linguagem do cinema de suspense; acredito, no entanto, que se trata mais propriamente de um uso muito criativo (e muito cinemático) de uma encenação teatral.
No teatro, o cenário é indicado pelas interações performativas que se dão no palco. Este, porém, permanece o mesmo espaço, ainda que ele possa significar lugares diferentes. Em Meu Pai, a arquitetura que abriga os personagens, como um palco de teatro, parece não mudar muito. O corredor ainda é longo e estreito. A sala de jantar mantém a mesma disposição em relação à sala de estar, e o quarto de Anthony parece estar sempre ao fim do corredor. É apenas ao perceber as decorações, mobília e ao ser informado nesse sentido que Anthony pode se dar conta de que não está em um mesmo lugar.
Com esse uso do espaço, Zeller nos entrega uma abordagem original para a formulação cinemática da memória. Longe de ser um tema novo para o cinema, a ideia de desenvolver um filme a partir do exercício da memória (inconstante, afetivo e pouco confiável) já foi explorada de maneiras muito diversas, incluindo aí trabalhos canônicos de cineastas como Federico Fellini e Alain Resnais. Diferentemente do que é realizado nesses casos, Zeller trata as instabilidades da memória por um viés menos interessado nos fluxos da audiovisualidade no cinema (em que se enfatiza bastante como a imagem fílmica pode ser enganosa, produto da própria iniciativa memorialista de uma mente autoral e da fruição ficcional da montagem) e mais interessado no papel da performance para descrever e interagir com o que está em cena.
Para isso, Zeller é auxiliado por um trabalho excepcional de seu elenco. Olivia Colman e Imogen Poots se destacam nos momentos mais ternos das interações de suas personagens com Anthony. Já Hopkins apresenta aqui um de seus melhores trabalhos interpretando um homem que luta para sustentar sua altivez e seu orgulho enquanto procura se localizar em um espaço metamorfo. O gesto mais potente do filme, no entanto, é a conquista de um lugar que está além da angústia causada pela doença em interiores que se confundem. É o espaço que se olha para fora, através da janela, confirmando a presença do sujeito em algum lugar do mundo.