“O que a gente fez com a gente?”
Rafael Oliveira
A frase acima é dita pelo personagem de Matheus Nachtergaele na derradeira cena final de Mais Pesado é o Céu (Mais Pesado é o Céu, 2023) com um céu límpido, azul e vivo como elemento de opressão sobre figuras que representam um Brasil que se recusa a morrer, que se recusa a sucumbir. São recusas que demarcam desde o início a jornada de Teresa (Ana Luiza Rios) e Antônio (Nachtergaele) por um sertão cearense, mais especificamente em Jaguaribara, cidade abandonada após a invasão das águas da Barragem Castanhão, mas que ainda se apresenta aos personagens como essa estrada que pode lhes levar a sonhos ainda almejados, a um sentimento de esperança que ainda se mantém para ambos, enquanto uma nova vida se apresenta no caminho desses personagens, um bebê abandonado às margens da água da barragem que é um simbolismo literal sobre o sofrimento ao qual aquela região foi condenada.
À margem sempre foi uma boa definição para os filmes de Petrus Cariry, talvez um dos representantes mais fortes e anti-tradicionalistas do cinema cearense. De Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, 2015) a O Barco (Barco, O, 2018), o cinema de Petrus é esse amálgama de presenças querendo descobrir o mundo, enquanto passeiam por ambientes de opressão e sufocamento, e neste caso, nada pesa tanto sobre os personagens quanto o céu que cobre suas violências cotidianas, das micro as macros, enquanto o desejo de seguir em frente é o ponto de alicerce de vivências que convergem, apesar de Cariry não esquecer que os papéis de gênero definem escolhas e consequências muito particulares.
E neste ambiente de ausências e anseios, onde não existe um fim, mas anseios por um novo caminho, o cineasta transcende a própria dor de seus personagens não somente trazendo um quê de lirismo, um quê de fantástico a suas experiências que encontram ecos nas próprias de excelentes coadjuvantes posicionados pela narrativa (existe um momento de confissão de Teresa para a personagem de uma magnética Danny Barbosa que é de uma sensibilidade tamanha), mas jamais nos permitindo esquecer que aquela região, apesar de condenada ao esquecimento e ao apagamento social, é viva e pulsante de vidas que se agarram a suas próprias existências – algo ressaltado pela fotografia exuberante do próprio Petrus Cariry (que ainda assina montagem e roteiro ao lado de Rosemberg Cariry, seu pai) e pela trilha sonora tão bem posicionada de João Victor Barroso.
Cientes das nuances tão complexas de seus respectivos personagens, vemos uma dupla de atores dos mais sóbrios e concisos dentro de seus papéis e do que suas presenças em cena buscam. Nachtergaele, fixado no imaginário brasileiro com suas performances carregadas de afetação (e este comentário não é um demérito), aqui se despe dessa persona e abraça uma performance de sentimentos quase indecifráveis, e ao mesmo tempo tão carregada de pensamento prestes a explodir de sua carne, o que ainda assim não exatamente nos prepara para seu ato final. Ana Luiza Rios chega muito perto de tomar o filme para si e sem precisar se desculpar por isso, recebendo a tarefa de protagonizar as cenas mais difíceis e desafiadoras da narrativa (um dos poucos deslizes de Cariry é pesar a mão nas violências sofridas por Teresa a partir certo momento). A já citada Danny Barbosa irradia a tela nos momentos que se faz presente, aliando sua compreensão sensível sobre a realidade que aquelas pessoas passaram a conhecer com um timing cômico que o desejo de conhecer ainda mais sobre sua personagem é inevitável.
Nota-se como o roteiro dos Cariry se preocupa em aliar aquelas figuras com as matizes que circundam aquela região, personagens que são muito mais que representações simbólicas dessa parte abandonada do Brasil e as difíceis decisões pela sobrevivência que surgem a partir daí. É quando o “o que a gente fez com a gente?” segue a ressoar em nossa cabeça muito após o findar dos créditos finais.
FONTE : https://www.cineplayers.com/criticas/mais-pesado-e-o-ceu