Doutor Sono

Fugindo do passado

RODRIGO CUNHA

Confesso que não fiquei muito animado quando Doutor Sono, sequência direta para O Iluminado, foi anunciado e começou a ganhar forma ao longo de sua produção. Quase 40 anos se passaram e a obra foi elevada a um status quase intocável que qualquer coisa que viesse depois poderia soar desnecessária ou inferior ao que Kubrick havia feito em 1980. Isso sem contar que Stephen King, o autor, sempre foi um confesso crítico da adaptação, principalmente por Kubrick ter mudado pontos cruciais do livro, deixando de fora praticamente toda a parte sobrenatural e focando na história mais intimista de uma família que vê o pai sucumbir à loucura em um hotel isolado e amaldiçoado.

Sem se escorar na nostalgia o tempo todo, Doutor Sono consegue a proeza de ser uma sequência direta ao filme de 1980, mas sem ficar totalmente dependente dele. Mostrando o que aconteceu a Danny após os traumáticos eventos no Overlook Hotel, suas duas horas e meia expandem de maneira significativa esse universo dos ‘iluminados’ e conta sua própria história: o que aconteceu com ele e sua relação com Abra, uma potente e jovem iluminada que começa a ser caçada por um grupo que se alimenta da energia vital dessas pessoas especiais. A narrativa passeia por esses três arcos pacientemente até se colidirem, construindo não apenas um Danny quarentão e problemático, mas também apresentando conceitos e detalhes que antes ficavam apenas subentendidos, ou até mesmo inexistentes, no filme original.

Mike Flanagan, jovem, mas experiente com obras de horror, ficou nessa incômoda posição de estar entre fãs de uma obra clássica do cinema e de um autor insatisfeito, precisando aparar arestas e entregar um trabalho que agradasse tanto a um quanto a outro. Teve carta branca para isso e até que o resultado é bem digno: se Doutor Sono não está nem perto de ser uma obra-prima como seu filme inspiratório, não faz feio também.

Ao abraçar novas ideias e adotar um conceito visual bem diferente, o filme tenta desesperadamente se desprender de O Iluminado e consegue fazer isso relativamente bem, criando novos personagens envolventes, com personalidades fortes, e imprimindo uma narrativa mais tradicional ao cadenciado e minimalista Kubrick, com seus salões amplos e solitários, cheios de cores fortes e uma tensão crescente. Há muita coisa acontecendo em paralelo em Doutor Sono e isso pode soar desinteressante no começo, mas as amarras são bem feitas em uma obra que dessa vez respira King do início ao fim, com suas principais características quase que enumeradas em tela – para o bem e para o mal.

Ewan McGregor tem uma responsabilidade maior por dar vida a um menino que sofreu um grande trauma no passado, além da dificuldade de criar um vínculo com o alcoolismo que seu pai tinha na história original, mas que fora ignorado por Kubrick. Isso, para as pessoas comuns que o rodeiam, justifica os atos violentos de Jack Torrance, escondendo o tom sobrenatural que a história carrega. São mais de trinta anos entre o personagem criança e o de 2011 (primeiro ato em que aparece), mas fica um pouco difícil de acreditar que são a mesma pessoa. Danny Lloyd, que fez o pequeno Danny no primeiro filme, aqui faz uma pequena ponta como expectador durante a sequência de baseball.

Trabalho um pouco mais agradável para Rebecca Ferguson, que não tem o peso do passado e total liberdade para imaginar como seria sua Rose, resultando em uma personagem sedutora, altamente perigosa, liderando a gangue que caça os iluminados para buscar uma vida com mais longevidade. E no terceiro lado desse triângulo está Kyliegh Curran com sua jovem Abra Stone, uma espécie de super iluminada que atrai a atenção do grupo de Ferguson, mas não soa como mero alvo indefeso ao surpreendentemente confrontar Rose não apenas de igual para igual, mas batendo-a em diversos momentos. Quando isso acontece, Rose não soa desacreditada – personagem poderosa facilmente dominada -, mas sim enaltecendo todo o poder de Abra. Méritos do filme e de seu roteiro.

Há um aspecto de super produção que não tinha no filme do Kubrick, mesmo com Nicholson e toda sua pompa encabeçando aquele elenco, que acaba afastando um pouco o tom de horror que permeia toda a obra e dando uma sensação mais plastificada a ela. É como se o filho quisesse seguir por um caminho totalmente diferente do pai, mas sem jamais deixar seu DNA, o que é bem confuso de entender e explicar. Não tem a mesma elegância e nem o mesmo poder de ser imortal, e nas vezes em que chega mais perto disso é justamente quando se conecta diretamente com Kubrick através de easter eggs e referências diretas. Daí a complexidade em explicar que o filme é bom, mesmo sendo sequência de O Iluminado, mas sem ser O Iluminado. Geralmente meio termos são perigosos, mas esse aqui é um dos raros casos em que ficou bom. Em uma escala muito, muito menor, mas é.

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A decisão de recriar momentos de O Iluminado e posteriores com outros atores reprisando os papéis principais é genial – e, sinceramente, foi bem inesperada. No começo, quando vemos Danny andando com seu triciclo pelos corredores do Overlook Hotel e de repente começamos a ver momentos que não estavam no filme do Kubrick, mas detalhadamente recriados em uma arte e interpretações impressionantes, aquilo assusta. O trabalho de Alex Essoe ao reviver Wendy Torrance é um dos grandes pontos altos do filme. A atriz pegou trejeitos, tonalidade de fala, modo de se expressar, tudo idêntico.

O mesmo não pode ser dito do ator que interpreta Jack Torrance. Agora escravo do hotel, ele aparece como o barman que tem um rápido acerto de contas com o filho. Bom, não é Jack Nicholson, fisicamente pouco se parece com ele e os principais trejeitos de Torrance, como o levantar de sobrancelhas e a risada enigmática são ignorados em uma interpretação que lembra, mas está longe de ter o impacto que poderia ter tido. Talvez pudessem ter acertado isso no digital.

Olha, é inegável que toda essa puxação de O Iluminado no final, trazendo corredores, a cena do elevador, o copo largado no bar, até mesmo Jack Torrance e a trilha sonora impositiva são gratuitos, principalmente pela coerência que o filme mantinha até então, mas também é impossível negar que aquilo ficou uma delícia de se ver; seja fan service ou não, valeu muito a pena terem incluído. Inesperado, bem recriado e tão forte que acaba até diminuindo toda a história adicional que a gente tinha acompanhado. É muito difícil se desgrudar do clássico, tanto para Danny quanto pra quem se baseia em uma obra tão forte quanto O Iluminado. O passado não apenas persegue como cobra seus royalties.

( Fonte: www.cineplayers.com )

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