Cazuza – Meu lance é poesia
Meu lance é poesia reúne a obra poética de Agenor de Miranda Araujo Neto (1958-1990), mais conhecido como Cazuza, com organização de Ramon Nunes Mello. São ao todo 238 poemas, criados entre 1975 e 1989 – dos manuscritos e datiloscritos às famosas canções que marcaram gerações –, entre os quais 27 inéditos encontrados nas pastas de documentos originais do Arquivo Viva Cazuza. Os poemas estão dispostos na ordem cronológica em que foram escritos, proporcionando ao leitor a oportunidade de acompanhar o processo de transformação do poeta e de sua escrita, intimamente ligada à sua trajetória pessoal e profissional. A publicação reúne notas sobre os poemas e depoimentos dos principais parceiros de Cazuza, contextualizando a história da criação dos versos. Além de “Textos críticos” assinados por Eliane Robert Moraes, Italo Moriconi, Silviano Santiago e Augusto Guimaraens Cavalcanti, “Artigos” de Caio Fernando Abreu, Nelson Motta, Karina Buhr e pelo próprio Cazuza (organizado por Ezequiel Neves), e uma seção com principais trabalhos realizados pelo poeta, assim como um caderno de manuscritos e datiloscritos.
Contracapa
Cazuza foi o grande poeta do rock no Brasil, sem dúvida; apaixona do pela vida. Ele amava Cartola, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Rimbaud, Kerouac, os poetas beats… Tinha um referencial forte, talvez tenha sido o músico com o pensamento mais claro e crítico da década de 1980, que de fato colocava o dedo na ferida. Ney Matogrosso
Cazuza tinha um modo corriqueiro de dizer coisas profundas. Era um belo observador do ser humano e possuía a ousadia de universalizar sua individualidade. Tinha também a dimensão da tragédia muito explícita, muito almejada, desejada e produzida pela dinâmica vital. Gilberto Gil
Todo período conturbado na vida de um país acaba produzindo seu poeta nacional do momento, cantor das dificuldades de seu tempo e da esperança possível no futuro. A seu modo, Cazuza foi o Rimbaud da desgraça brasileira nos anos 1980, a nossa década perdida. Na melhor tradição de Fagundes Varela e Sousândrade, ele consumiu o fogo intenso de sua curta vida no combate à hipocrisia e à violência cotidianas, inaugurando no Brasil um olhar contemporâneo sobre um novo modo de viver que não espera pela história, mas que se impõe pelo desejo, agora. Devorado por sua incompatibilidade com o horror de seu tempo, Cazuza foi nosso triste poeta da esperança. Cacá Diegues
Sobre o Autor
Ramon Nunes Mello (Araruama/RJ, 1984) é poeta, escritor e jornalista. Desde 2012, vive com hiv e é ativista de direitos humanos. Mestre em Poesia Brasileira (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2017) e doutorando em Ciência da Literatura pela mesma instituição. Autor dos livros Vinis mofados (Língua Geral, 2009), Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011) e Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016). Organizou Escolhas: Uma autobiografia intelectual, de Heloisa Buarque de Hollanda (Língua Geral/Carpe Diem, 2010), Maria Bethânia – Guerreira Guerrilha, de Reynaldo Jardim (Móbile/Debê, 2011, com Marcio Debellian), Tente entender o que tento dizer: Poesia + hiv/aids (Bazar do Tempo, 2018), Ney Matogrosso: Vira-lata de raça – memórias (Tordesilhas, 2018).
Gaúcho de Passo Fundo (1971), Daniel Kondo viveu muitos anos em São Paulo, onde desenvolveu boa parte de sua carreira profissional na publicidade, migrando gradualmente para o design editorial e para ilustração. É conhecido por parcerias inusitadas entre universos de múltiplas linguagens, como na música, em parceria com Lulu Santos, no livro LULU Traço e verso (Pancho sonido, 2020), e com Fernanda Takai, no livro Quando curupira encontra Kappa (WMF Martins Fontes, 2023). Com o livro Tchibum! (Cosac Naify, 2009), lado a lado com o campeão olímpico Gustavo Borges, foi premiado na Feira Internacional de Bolonha (menção honrosa por prêmio New Horizons). Com o livro O vermelho vaidoso, em parceria com Alejandra González, publicado por esta editora, conquistou o prêmio The Braw Amazing Bookshelf, na categoria Opera Prima, da Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha em 2023. Atualmente, reside em Punta del Este, no Uruguai. A relação do ser humano no com a natureza e o meio ambiente inspira continuamente grande parte de sua obra.
RESENHA ( FOLHA DE SÃO PAULO)
Cazuza ressurge mais poeta que roqueiro em livro com letras e 27 poemas inéditos
‘Meu Lance é Poesia’ reúne canções e escritos do vocalista do Barão Vermelho, que também é tema de obra com fotografias
Lucas Brêda
São Paulo
“Morro de medo de solidão/ a que certos intelectuais precisam se entregar/ para produzir alguma coisa mais ou menos profunda/ Ficar um dia sozinho me leva à loucura/ convívio social também/ Ao mesmo tempo eu temo a loucura e/ vou vivendo assim/ feito uma bola entre duas raquetes de/ frescobol”.
Esses versos confessionais, escritos por Cazuza em 1989, ao mesmo tempo contrastam e confirmam o clima da casa de sua família em Petrópolis, no Rio de Janeiro, descrito por Lucinha Araújo, mãe do cantor. O artista, morto há 34 anos, chamava o local de Cineac Trianon, nome que escolheu para dar título ao poema —inédito em sua integralidade até agora.
“Naquela época, era muita boemia”, diz Lucinha. “O João [Araújo, pai do cantor e criador da gravadora Som Livre] trabalhava com música, e a gente recebia muitos artistas na casa. Ninguém dormia, ficava todo mundo cantando e tocando violão e o Cazuza vendo tudo isso com uns 12 ou 13 anos.”
Em “Cineac Trianon”, um dos 27 poemas inéditos de “Meu Lance é Poesia”, livro lançado pela WMF Martins Fontes com toda antologia de Cazuza, o artista medita sobre questões existenciais —felicidade e tristeza, loucura e sanidade, e a escrita como veículo de tudo isso. É uma das obras reveladas agora que expandem o entendimento do ex-vocalista do Barão Vermelho como poeta, para além de grande letrista e cantor.
“O que mais me chamou a atenção são esses poemas mais longos, caso do ‘Cineac Trianon’, que é enorme, tem umas sete páginas”, diz Ramon Nunes Mello, que organizou esse e outro livro lançado agora pela mesma editora, “Protegi Teu Nome por Amor”, com mais 700 fotografias de Cazuza. “É uma outra abordagem, que muita gente não conhece.”
Dessa mesma linhagem é “Work in Progress”, texto um tanto lisérgico em que Cazuza tenta entender Jimi Hendrix e o rock —ou “a raiva amplificada em não sei quantos mil watts”—, sua própria cidade e existência, em que despeja sonhos e medos no papel sem muita preocupação formal. Como diz num verso, “que mal em um bêbado brincando de criar palavras próprias?”
“Dá para ver como ele estava preocupado em experimentar a linguagem poética”, diz Nunes Mello. “E ao mesmo tempo tem temáticas ali que se repetem em outros poemas. Então, você vê que ele vai pegando isso e exercitando de outro jeito quando começa a escrever de uma maneira mais musical com seus parceiros.”
A poesia na vida de Cazuza, de certa forma, precede e sucede a música. Ele escrevia ainda crianças poemas para mostrar à avó materna, Alice, deixou papéis espalhados pela casa que foram guardados por Lucinha ao longo dos anos, e nos últimos dias de vida, levou uma máquina de escrever ao hospital, quando estava tratando o HIV.
Parte dos inéditos revelados agora estavam com seu parceiro Ezequiel Neves, morto em 2010. Mas não só —enquanto organizavam o livro de fotos, Nunes Mello e Lucinha receberam escritos que Cazuza foi deixando com amigos e parceiros.
É o caso de “[Ao Serginho]”, texto romântico escrito num caderno escolar de Sergio Dias Maciel, namorado de Cazuza entre 1981 e 1986. Também de “Pobreza”, que o compositor fez em 1980 para Léo Jaime que, sem dinheiro, ia à casa de Cazuza almoçar, e era chamado de “pobreza” pelo amigo.
“Léo foi o grande descobridor do Cazuza”, diz Lucinha. “Não sabia nem que ele cantava nem que tocava violão. O Léo que falou ‘você canta muito bem’, mas Cazuza dizia ‘não posso, meu pai é o maior nome da indústria fonográfica brasileira, vão pensar o que de mim?’ Sempre teve esse receio. Léo foi convidado para integrar o Barão Vermelho, disse que não iria, mas indicou o amigo.”
Lucinha conta que Cazuza dizia ter vergonha de ter o pai rico, mas diz que essa condição privilegiada não caiu do céu. “O pai dele era divulgador de discos —botava o disco debaixo do braço, pegava o bonde e pedia para tocar nas rádios do centro. A gente morava num quarto e sala, aí quando o João fundou a Som Livre, foi sucesso já no primeiro ano.”
Mas, segundo a mãe, Cazuza “nasceu em berço esplêndido” no quesito música popular brasileira. De Elis Regina a Novos Baianos, quase todos os gigantes da MPB frequentavam a casa dos Araújo quando o filho de Lucinha ainda não tinha despertado sua veia musical.
Antes e durante esse processo de se aceitar músico, Cazuza estava escrevendo. Sua obra é, como diz o título do poema, um trabalho em progresso. Em “Meu Lance é Poesia”, é possível acompanhar as versões alternativas de canções famosas. Há três de “Um Dia na Vida” e duas de “Exagerado”, “Ideologia” e “Eu Queria ter Uma Bomba”, por exemplo.
“Quando ele começa a fazer canções, aí é que vira uma coisa mais estruturada”, diz Nunes Mello. “Em ‘Exagerado’, por exemplo, ele corta versos. Em outras versões de músicas, ele recupera alguns versos.”
O livro traz, além dos 27 poemas inéditos, explicações mais completas sobre o contexto de cada um deles. É uma atualização de “Preciso Dizer Que te Amo”, lançado em 2001, mas também uma expansão do entendimento de Cazuza como escritor —o “poeta do rock”, como ele ficou conhecido, talvez fosse ainda mais poeta do que roqueiro.
Em “Protegi Teu Nome por Amor”, o livro de fotos, o retrato de Cazuza também vai além da reunião de fotografias do artista, da infância aos últimos dias. Traz documentos, recortes de jornal e imagens com parceiros como Gilberto Gil —autor do prefácio do livro.
Há, por exemplo, uma reprodução do caderno em que ele anotou o número do jornalista Pedro Bial, amigo que fez na infância. E também uma sequência de páginas sobre sua relação com os signos e a astrologia.
Mas nem a mais nítida das imagens é capaz de revelar tão bem o espírito de Cazuza quanto sua caneta —ou máquina de escrever— no sigilo do papel. Feroz em cima do palco, descolado sob seus óculos escuros, ele escorria pelas palavras como um romântico sofredor, uma alma perdida em busca de algum sentido para sua existência.
Em “Meu Lance é Poesia”, Cazuza surge paradoxal, à flor da pele, por inteiro. Há referências ao rock e à poesia beat, paixões intensas e alucinantes, flertes em bares e nas ruas, desejo sexual, seu deboche típico da caretice, alteração de consciência através das drogas, denúncia da hipocrisia à brasileira, a expressão do sentimento de uma geração, a vida em perspectiva após o diagnóstico de HIV. Mas, talvez acima de tudo, uma vontade patente de aproveitar sua passagem pela Terra na máxima potência.
Nas palavras do próprio Cazuza —”A poesia é linda porque nela tudo cabe,/ porque não é certa nem errada./ Mesmo eu sendo um anacronismo, me sinto poeta.”