BABILÔNIA

Lágrimas para o cinema

Um dos melhores filmes dos primeiros anos do cinema musical em Hollywood se chama Black and Tan (1929), um curta-metragem dirigido por Dudley Murphy e estrelando Duke Ellington, homem preto e astro do jazz. No livro Dancefilm: Coreography and Moving Image, a autora Erin Brannigan descreve a forma inovadora desse filme como um “exemplo notável que combina performance e tecnologia para ir além de figuras singulares e determinadas e criar transformação por meio de movimento contínuo”. Em outras palavras, o filme, anterior às mais conhecidas coreografias de Busby Berkeley, introduz uma maneira de encenar a dança no audiovisual que seja especificamente cinemática, fazendo uso das possibilidades criativas e cênicas desse meio.

O livro de Brannigan, no entanto, é uma exceção entre os textos sobre cinema e audiovisual. A maior parte dos mais conhecidos trabalhos sobre o cinema sonoro e o filme musical tende a ignorar a existência de Black and Tan. Daí a minha surpresa quando o vi referenciado em Babilônia (Babylon, 2022), o novo filme do diretor Damien Chazelle, mais conhecido por La La Land (idem, 2016). Se, nesse outro filme, Chazelle já acionava seus conhecimentos do gênero musical para compor um filme autorreflexivo sobre o legado imaginativo do gênero, em Babilônia ele dirige essa autorreflexão para a história de Hollywood como um todo.

No novo longa, acompanhamos um conjunto de personagens que se tornam estrelas do cinema mudo em um momento em que a indústria Hollywoodiana já era consolidada, mas em que suas morais, ambições criativas e formas performáticas ainda se situavam em um entrelugar de diferentes tradições das artes da cena. No filme de Chazelle, o burlesco é apresentado como a principal referência da época, e daí temos uma celebração da sexualidade e sensualidade, do corpo excessivamente expressivo e de uma arte do improviso que seria interrompida uma vez que o som síncrono passasse a integrar essa equação e, junto a ele, uma nova moralidade em Hollywood.

Chazelle é perspicaz em vincular o som síncrono a uma nova moralidade. É verdade que esse disparo em direção a uma encenação mais realista (ou, ao menos, transparente e verossimilhante) desestabilizaria o equilíbrio entre as diferentes tradições cênicas que compartilhavam da indústria até a década de 1920. Com o som síncrono, a forma cinematográfica que se desdobrou do teatro cristão (de onde vinha, por exemplo, Cecil B. DeMille, fundador da Paramount) passou a ter o domínio econômico necessário para expurgar de Hollywood os filmes que ainda tinham como referência o burlesco e assim egendrar uma verdadeira revolução cultural conduzida pelo conservadorismo de costumes e pela propaganda ideológica cristã, nacionalista e burguesa.

Desse modo, quando Chazelle celebra figuras históricas como Clara Bow e Duke Ellington (através dos personagens de Margot Robbie e Jovan Adepo, respectivamente), ele não o faz para promover um revisionismo que torne a história da indústria mais “palatável” (como ocorre na péssima minissérie Hollywood, de Ryan Murphy), mas para dar conta da complexidade política e da diversidade performática que fizeram parte da construção do cinema estadunidense (e global, consequentemente). Os excessos de Babilônia, ainda que tenham evidentemente também a função diferenciar o filme pelo viés do exagero (em que ele pode se vender como tão mais ousado, arriscado ou revolucionário que outros filmes sobre Hollywood), serve também como um marco de posição em favor de fazer o caminho de volta e reencontrar as performances, os corpos em cena e os desejos anteriores à tomada conservadora do cinema hollywoodiano.

Isso é realizado pelo excelente trabalho de seus atores, coreógrafos, diretores de arte, figurinistas, além da sonoplastia e trilha sonora. Todos esses elementos, interessantemente, são os que agem sobre a superfície do filme, sobre o seu aspecto mais visível, sonoro, plástico e sensível, o que é adequado à oposição que ele elabora contra a transparência do primeiro cinema sonoro, em que o espectador era convidado a compreender o filme e interpretar a sua rigorosa moral, mais do que a ser afetado por ele.

No final da primeira longa sequência de Babilônia, ao fim da festa, quando Margot Robbie sai da casa ao amanhecer, a composição da imagem junto à trilha cria uma forma de melancolia de final de festa (algo que atravessa o filme, inclusive) que me lembra muito A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960). Não acho que a comparação exija nenhum grande esforço ou que esteja falando de filmes em patamares muito distantes. Federico Fellini, afinal, também foi um diretor que enfrentou desconfiança na maneira como empreendia uma série de artifícios audiovisuais para criar uma imagem exuberante, tomada por beleza e cheia de significados em relação ao que tem a dizer sobre a própria imagem – todas essas críticas que parecem atravessar agora Babilônia, em que o filme é tipo como beirando o cafona em seus gestos de excesso, sejam os escatológicos e sexuais ou os de apuração da plasticidade.

É compreensível que se trate Babilônia com esse cinismo com que outras filmografias que vendem a ideia de “bela metafantasia do cinema” (tal qual a de Fellini) também são tratadas. Acredito, no entanto, que a favor de Chazelle está a maneira que o diretor nunca escapa a esse risco, que o filme não se desculpa por nenhum tipo de grandiloquência. Pelo contrário, a reafirma sempre que tem a oportunidade. Assim, Babilônia é um filme também um pouco anacrônico. A maneira como trata o cinema como uma festa e um sonho pertence sim a um tipo de deslumbramento sessentista, de um cinema que precisa voltar a seus artifícios mais básicos (do choque, da beleza, do corpo exposto e da sexualidade – um cinema, em geral, afetado) porque está em crise. Será que esse filme pode atender especificamente à crise atual do nosso cinema ou será que ele atende a uma outra, passada, um susto sessentista com a suposta morte da mídia que parece mais adequada à nostalgia com a qual o filme conclui? Eu não sei, mas mais uma vez tendo a me engajar com o anacronismo de Chazelle, sua visão meio deslocada, mas ainda rigorosa e respeitosa, de um cinema que passou.

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