Bonança
RODRIGO TORRES
O Brasil acertou. Em pleno 2020, o Brasil acertou. Após anos fazendo cagadas por motivação ideológica, o Brasil acertou na escolha de seu representante ao Oscar 2021. Primeiro, por justamente entender as motivações políticas que venham a influenciar um votante da Academia, e que uma cinebiografia sobre Hector Babenco ganha chances por ele ser um artista previamente incensado pela AMPAS (em 1986, indicado pela direção de O Beijo da Mulher Aranha). Em segundo, porque imagino que isso aumente as chances do filme na categoria documentário. Por fim, porque o filme de estreia de Bárbara Paz é realmente lindo. Lindo.
Babenco – Alguém Precisa Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2019) chama atenção desde antes da sessão começar. Pela possível pretensão de seu longo título, também belo e poético. Eu, pelo menos, lembrei na hora de um dos grandes filmes do gênero: Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza (As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, 2000). E o bacana notar é que Bárbara Paz pode mesmo ter visto e se inspirado na obra-prima de Jonas Mekas. Logo que o filme começa, fica evidente, torna-se fato, que Babenco tem as mesmas referências de Mekas, como as influências do cinema experimental e basear seu forte apelo emocional em dois pilares: registro e memória. Que são também, a título de curiosidade, elementos característicos de Elena (2013), longa-metragem que revelou a cineasta Petra Costa, produtora associada de Babenco.
Hector é um ótimo personagem para um documentário póstumo, e Bárbara soube explorar isso muito bem. Especialmente a relação íntima e natural que seu marido sempre teve com a morte. Desde jovem, trampando como vendedor de cemitério, e nos últimos 30 anos de vida, entre idas ao hospital e vindas do além. Em suas próprias palavras: “Eu sempre vivi a morte”. Diante da certeza de que sua vida estava no fim, era chegada a hora de fazer um filme sobre sua morte. E é exatamente isso que ele faz. Seu canto do cisne é ensinar para Bárbara o seu ofício, de diretor, para que ela seja capaz de realizar o filme póstumo. E ela tem todo o mérito de aprender e filtrar as lições com sua sensibilidade de mulher, atriz e admiradora do Hector.
Babenco é um documentário que se apresenta como um organismo vivo em nossa frente. Em vários momentos, seu processo de construção se dá na frente das câmeras, e do espectador. E a artista detrás das lentes, Bárbara, tem a extrema sensibilidade de perceber isso e já intervir, na hora, como que decupando a obra ao vivo. Um exemplo maravilhoso disso é a cena em que ela aprende a usar o foco filmando o próprio Babenco. Irritadiço a princípio, ele vai ficando mais calmo na medida em que ensina a arte para Paz. Babenco dá uma breve aula de cinema. Com uma paixão tamanha que o protagonista, adoentado, vai, aos poucos, se acalmando. A cólera repentina, insensata, dá lugar à generosidade. O personagem ganha complexidade. Barbara sabe disso e intervém: “Como você é bonito. Você é muito bonito.” Como toda figura dotada de paixão e camadas dentro de si, e mesmo que certas camadas venham a depor contra o personagem. Sem romantizar defeitos, apenas pensando na arte: a boa narrativa extrai a beleza do ser humano quando assim o retrata — como um ser humano, como alguém complexo, o bem e o mal.
Essa qualidade em Babenco é coisa e fina e rara. É sempre fascinante quando um documentarista trabalha o imponderável ocorrido em cena, sublinha o acaso na ilha de edição e direciona o filme em torno desses tornados pontos-chaves. Já no fim, dando só mais um exemplo, Bárbara Paz brinca com o foco, como modo de mostrar que aprendeu muito bem a usar o efeito ao alternar do embaçado à nitidez como forma de construção de sentido narrativo — de materialização do desejo de Hector que ele fosse celebrado após sua morte. Com o foco, Bárbara encena a realização do desejo de Hector. Que é, de certa forma, o filme inteiro.
Assim, Babenco se materializa como um desfecho otimista para o Babenco pessimista. “Depois do sucesso vem a tempestade”, ele conclui por (sempre) adoecer depois de uma conquista pessoal ou artística. Pois não: Babenco é bonança. Babenco materializa a calmaria da morte após uma vida de tanta dor física — expressa e palpável na voz fraca de Hector, que sai como que arrancada a fórceps para narrar o documentário. Babenco o contradiz em ser a bonança que sucede o sucesso de sua trajetória. E como é bom que esse tributo explore tanto a contradição do artista.
Um argentino brasileiro. Nem argentino, nem brasileiro. Judeu sem pátria. Um homem que se proclama anarquista, mas um artista com olhar socialista. Uma amante oriental, Hong Kong… seus desejos são delírios. O preto-e-branco não poderia ser mais acertado. Além de lindo em si, o tempo todo coeso visualmente, ilustra também, tão bem, as dualidades de Hector. Suas contradições, por ele mesmo. Babenco respeita o fluxo de consciência de Babenco. Entre ecos, zunidos e múrmurios, o som de talheres, medicamentos e reclamações, sua voz corta a respiração pesada e narra memórias. As memórias das glórias, as memórias das dores. Paradoxos.
O efeito sonoro de um cinematógrafo denuncia o anseio artístico do documentário. Em rememorar uma história real com todos os artifícios do cinema — ?ficção por excelência. Bárbara é incrível. Perpassa a vida de seu marido com cenas da obra de Hector Babenco. Lembra seus filmes e os ressignifica, até melhora; com o filtro do P&B, o contexto da vida do autor e com a arte da montagem. Trechos aleatórios de Lúcio Flávio (1977) e Pixote (1981), de Carandiru (2003) a Meu Amigo Hindu (2015), ajudam a compreender Babenco — ?e Babenco. Assim, Bárbara pacifica a “relação difícil entre o fazer e o pensar” que perturbava o cineasta veterano, e brilha intensamente. A grande obra foi feita.