O elefante azul de James Cameron
HEITOR ROMERO
Chegamos na reta final de 2022 e o paradoxo Avatar (idem, 2009) vem novamente à tona: como um filme que se sustentou por quase uma década como a maior bilheteria de todos os tempos consegue por outro lado estar tão apagado na memória coletiva do público e na cultura pop? James Cameron já mantinha o posto de rei dos blockbusters há 12 anos com o fenômeno Titanic (idem, 1997) – este sim uma avalanche que marcou toda uma geração e que não gerava espanto quando se constatava seu enorme sucesso – e com essa grande produção reafirmava seu lugar de diretor comercial mais importante em Hollywood, a ponto de ganhar carta branca e um orçamento irrestrito para filmar seu projeto mais ambicioso até então. Envolvendo tecnologia pioneira e uma premissa grandiloquente, o Cecil B. DeMille dos nossos tempos expandiu todas as noções de ambição em uma indústria que já é marcada pelos delírios de grandeza e não só bateu seu próprio recorde como o ultrapassou e estabeleceu um novo auge que só foi ser superado por um dos mais recentes filmes do MCU. Nesses 13 anos que sumiu de cena para filmar e lançar Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way of Water, 2022), enquanto a Marvel trilhava todo um projeto a longo prazo para cativar e fidelizar um público através de inúmeros filmes interligados até finalmente alcançar o topo, Cameron não pareceu se preocupar com o esquecimento do público e a mudança de tendências no cinema comercial americano. Ainda que sempre ambicioso e claramente preocupado com a aprovação de sua audiência e dos críticos, o diretor parece pela primeira vez mais preocupado em fazer um filme sobre si e para si.
Avatar: O Caminho da Água é, para quem está familiarizado, um passeio pela filmografia de James Cameron, um universo expandido que assimila não somente o primeiro Avatar como também a maioria de seus outros filmes. Temos pitadas do trash inconsequente do início de carreira de Piranhas II: Assassinas Voadoras (Piranha Part Two: The Spawning, 1981), com direito a cena de braço decepado voando pela tela em tecnologia 3D, ou mesmo nos peixes aquáticos voadores e vorazes da fauna de Pandora; temos a aproximação com a robótica futurista já trabalhada na franquia O Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984); temos naves espaciais e a exploração alienígena no espaço sideral assim como em Aliens – O Resgate (Aliens, 1986); e temos cenas de embarcações afundando com seus personagens lutando para sobreviver ao naufrágio exatamente como em Titanic; ah, e temos também Sigourney Weaver (e certamente só não temos também Bill Paxton porque o ator infelizmente faleceu em 2017). Mas a maior aproximação de Avatar: O Caminho da Água é com o pouco conhecido e subestimado O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989), uma primeira tentativa de conciliar o fascínio pelo tema da vida extraterrestre com a paixão pelo fundo do mar e o discurso ativista em prol do meio ambiente. James Cameron faz de Pandora o seu próprio metaverso, um lugar saído de sua imaginação nos mínimos detalhes e que abraça todos seus elementos favoritos.
Em certos aspectos, Avatar: O Caminho da Água se assemelha bastante a Star Wars: Episódio V – O Império Contra-Ataca (Star Wars: Episode V – The Empire Strikes Back, 1980), uma primeira sequência que também vinha com a proposta de expansão de universo e mitologia, e que se permitia o deslumbramento com o próprio mundo, experimentando novas tecnologias para alcançar novos cenários, personagens e possibilidades narrativas. Embora engate um clímax de ação praticamente ininterrupto em sua hora final, Cameron não tem pressa de chegar a esse ponto e se equilibra com seu lado mais contemplativo, explora um mundo em diferentes geografias e potencializa visualmente tudo aquilo que já era impressionante no primeiro filme. Avatar: O Caminho da Água é, antes de tudo, um desbunde, um delírio visual e sonoro que não se cansa de embasbacar o espectador cena após cena com seu delicado e inteligente uso do 3D Imax (ver no cinema é parte especial para a literal imersão total proporcionada). Está longe de ser um filme carregado de CGI frio e todo filmado em um telão verde – pelo contrário, traz consigo qualidades artesanais na composição de imagem que são tão ricas em detalhes, cores, texturas, luzes e prismas que parece mais uma pintura. Concilia o que há de mais moderno e visionário nas tecnologias digitais atuais com o senso de espaço que está no sangue de um diretor que veio da velha escola oitentista de efeitos práticos e cinema de ação simples e bom. Nada de roteiro carregado de tentativa de complexidade existencial ou nuances de caráter: seus personagens se dividem entre o bem e o mal e o plot nada mais é que uma reciclagem daquele do primeiro filme, com os nativos de Pandora lutando para salvar seu planeta da exploração massiva e devastadora da raça humana invasora. Nesse meio a mensagem pró meio ambiente – em especial a vida marinha – se faz clara e gritada, já que sutileza não é o forte de Cameron. Como num bom filme de ação à moda antiga, a narrativa está no movimento, o coração está na imagem e o roteiro não precisa ir além do mero funcional.
É o tipo de filme que se justifica uma espera de mais de uma década, afinal de contas. Já que iniciamos a comparação, Cameron é tão visionário quanto um George Lucas, porém infinitamente mais talentoso como diretor. Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma (Star Wars: Episode I – The Phantom Menace, 1999) foi um banho de água fria para os fãs que aguardaram 16 anos, mas com Cameron cada hiato de reclusão é usado para aprimoramento de técnicas, desenvolvimento de tecnologias e esforço em ampliar os horizontes da imagem na era do cinema digital. Se esse contínuo avanço morre nas mãos de cineastas medíocres que jogam tudo nas costas da equipe de efeitos especiais e mal se preocupam com uma edição minimamente decente, Cameron pensa como pode redefinir as possibilidades do movimento e das dimensões de espaço na composição de imagens. Enquanto o cinema comercial segue essa moda de filmes escuros, sisudos, sombrios, perdidos em um minimalismo insípido como tentativa de serem levados mais a sério, Cameron não vê demérito na simplicidade, mas caminha na contramão e explode em cores, em luzes, em romances clichês, em vilões caricatos, em mocinhos heroicos e ideias que beiram o total absurdo. Pode até ser que a franquia Avatar não tenha carisma o suficiente para cativar o público e mantê-lo fiel esperando sabe-se lá quanto tempo pela próxima sequência, o que faz dela um belo elefante branco (ou azul) que mal consiga se pagar. Mas independente do que Cameron nos traga ou não no futuro, independente de Avatar: O Caminho da Água virar o próximo recorde de bilheteria ou um retumbante fracasso, aqui ele já fez seu filme-síntese e deixou resumido seu legado como um dos maiores visionários do cinema.
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