A FAZENDA DOS ANIMAIS/ A REVOLUÇÃO DOS BICHOS – OS 80 ANOS DE UM CLÁSSICO DE GEORGE ORWELL

I

80 anos de ‘Revolução dos Bichos’: entenda a fábula de George Orwell sobre um mundo melhor

Publicado em 1945, Revolução dos Bichos é uma das obras mais conhecidas de George Orwell. Na história, os animais de uma fazenda se rebelam contra os humanos para criar uma sociedade justa e igualitária — mas acabam vendo seus ideais traídos quando novos líderes assumem o controle. A fábula, escrita como sátira política da Revolução Russa, segue essencial para entender como o poder distorce sonhos e por que a busca por um mundo melhor não termina.

A Inglaterra que inspirou Fazenda dos Bichos há 80 anos

Durante os primeiros anos da segunda guerra mundial, George Orwell acreditava que o momento revolucionário da Inglaterra havia chegado.

A derrota na batalha épica de Dunkirk desacreditou a elite dominante do país. A confusão havia deixado a Inglaterra à beira da invasão e da derrota.

Para vencer a guerra e derrotar o fascismo, uma revolução social era necessária, como Orwell explicou em seu manifesto socialista, O Leão e o Unicórnio (1941).

Aquela era a hora, ele argumentou, de transformar “esta guerra em uma guerra revolucionária e a Inglaterra em uma democracia socialista”.

Orwell acreditava que essa revolução, embora provavelmente violenta, libertaria “o gênio nativo do povo inglês”. A longa tradição liberal da Inglaterra seria mantida e aprimorada, e a revolução seria mais patriótica do que baseada em classes:

“A partir da cultura de língua inglesa … uma sociedade de seres humanos livres e iguais acabará por surgir.”

Desencanto de Orwell com a revolução 

No entanto, embora Orwell nunca tenha abandonado abertamente seu compromisso com a revolução socialista, ele rapidamente perdeu a esperança.

O escritor chegou a acreditar que a guerra derrotaria o fascismo, mas não o totalitarismo, e que o socialismo real ainda teria um longo caminho para se estabelecer. 

Nesse clima ele escreveu Animal Farm (Revolução dos Bichos) nos últimos meses de 1943 e na primeira metade de 1944 – com muito apoio e possivelmente contribuição substancial de sua primeira esposa, Eileen O’Shaughnessy.

O dia 17 de agosto de 2025 marca o aniversário de 80 anos da publicação da obra. 

Em setembro de 1944, logo após terminar de escrever Revolução dos Bichos, Orwell explicou alguns de seus propósitos mais amplos em uma cartaao intelectual americano e colega socialista liberal Dwight Macdonald.

A União Soviética, pensou Orwell, realmente forneceu às pessoas esperança em um futuro socialista, e por essa razão não seria bom vê-la destruída.

Mas, ao mesmo tempo, os trabalhadores no Ocidente precisavam “ficar desiludidos com ela e perceber que deveriam construir seu próprio movimento socialista sem a interferência russa”.

O sucesso disso poderia então ter uma “influência regenerativa sobre a própria Rússia”.

(1a. edição. Inglaterra 1945)

Orwell, Zamyatin e Fazenda dos Bichos 

Foi enquanto escrevia Animal Farm que Orwell conheceu melhor  o autor russo Yevgeny Zamyatin e sua sátira distópica, We, publicada em 1924.

Esse livro se tornou uma influência significativa para Nineteen Eighty-Four (1949).

Embora Orwell não tenha lido We em sua totalidade até o final de 1945, ele sabia um pouco sobre o livro por meio de uma antologia de Gleb Struve, 25 Anos de Literatura Russa Soviética no início de 1944, e escreveu a Struve para dizer a ele que havia aguçado seu apetite para saber mais sobre Zamyatin.

A antologia de Struve cita uma passagem que Orwell escolheria como importante.

Nela, um personagem declara que “nossa revolução foi a última e nunca pode haver outra”. Ao que seu interlocutor responde:

“Assim como os números, as revoluções são infinitas e nunca pode haver uma final.”

Quando adaptou Fazenda dos Bichos para o rádio, em 1946, Orwell fez Napoleão, o porco, dizer:

“Quando houve uma rebelião, nunca pode haver outra”.

Mas ele certamente deve ter tido em mente a resposta:

“Sempre pode haver outra.”

Foi novamente para Macdonald que Orwell explicou as implicações da Fazenda dos Bichos, em dezembro de 1946.

(1a. edição norte-americana)

Fazenda dos Bichos: além de uma sátira da revolução russa 

Embora “principalmente” uma “sátira da revolução russa”, Orwell deixou claro que tinha “aplicação mais ampla” como uma denúncia de “aquele tipo de revolução (violenta, conspiratória) que só pode levar a uma mudança de chefes”.

As revoluções podem melhorar as coisas, escreveu ele, mas somente quando “as massas sabem como expulsar seus líderes assim que tiverem feito seu trabalho”.

Orwell havia escritoanteriormente, em setembro de 1944: 

“Todas as revoluções são fracassos, mas nem todas são o mesmo fracasso”.

Todas falham porque a perfeição está além da compreensão humana – o desafio é “falhar melhor” e conseguir melhorar a situação, como ele disse a Macdonald:

“Se as pessoas pensam que estou defendendo o status quo [em Revolução dos Bichos], isso é … porque elas se tornaram pessimistas e assumem que não há alternativa, exceto ditadura e ou capitalismo que deixa tudo correr.”

A Fazenda dos Bichos é um exemplo de livro muito curto e muito acessível que desafia a interpretação fácil.

Outros exemplos clássicos são O Príncipe (1532) de Niccolo Machiaveli e Utopia (1516) de Thomas More. Embora políticos, eles não são manifestos, ao contrário de O Leão e o Unicórnio, de Orwell – esse livro procurou mobilizar as pessoas por trás de uma visão clara de um futuro melhor alcançável.

Animal Farm, em contraste, é um reflexo melancólico sobre a corrupção da revolução e a necessidade de continuar procurando por uma melhor.

                                                    (1a. edição brasileira. 1964. Ed. Globo)

Quem inspirou Fazenda dos Bichos?

Orwell não deve ter lido nada de Yevgeny Zamyatin além de seu romance distópico, We. Mesmo nos dias de hoje, pouca coisa do autor foi traduzida para o inglês, além de uma coleção muito recentede algumas histórias da Alma Classics.

Suas duas curtas sátiras da hipocrisia hipócrita inglesa de classe média, que Orwell teria desfrutado, já estiveram disponíveis, como Ilhéus e Pescador dos Homens.

A Penguin Books também publicou uma coleção de diversos contos de Zamyatin: The Dragon and Other Stories.

Ela contém, entre muitas outras coisas, “dois contos para crianças adultas” (uma descrição que poderia se aplicar ao livro Fazenda dos Bichos).

Uma delas é uma história de duas páginas, A Igreja de Deus, que conta o que acontece quando atos violentos são usados para perseguir propósitos nobres (neste caso, santos).

Como Fazenda dos Bichos, a história é uma reflexão sobre a relação entre fins e meios. As obras de Zamyatin falam sobre esse tema. Ele foi um dos primeiros apoiadores dos bolcheviques e um crítico igualmente precoce da revolução bolchevique

Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons. 

 

II

O TRADUTOR VESTE FARDA – Camila Djurovic

Guerra cultural e a primeira edição de  A revolução dos bichos no Brasil

Em uma granja, animais se rebelam contra seus donos em busca de uma sociedade ideal, que logo se desdobra em uma tirania ainda mais opressiva que a dos humanos. Embora essa história seja familiar para muitos, só agora vem a público que a chegada do livro A revolução dos bichos ao Brasil guardou uma relação direta com o golpe de 1964.

Nascido no Rio Grande do Sul em 1936, Heitor Aquino Ferreira foi um típico homem de bastidor. Sua trajetória na cena política teve início na década de 1960, quando ainda jovem tenente do Exército tornou-se assistente pessoal do general Golbery do Couto e Silva, líder da conspiração contra o governo João Goulart orquestrada a partir do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS).

Durante a ditadura, Ferreira acompanhou a montagem do Sistema Nacional de Informações (SNI), principal órgão de vigilância e repressão do regime. Com passagem para a reserva, trabalhou na Amazônia no megalômano Projeto Jari e também na Petrobrás. Entre os anos de 1974 e 1979 foi secretário particular de Ernesto Geisel e articulador político de seu governo.

Consciente de estar testemunhando a História, escreveu diários e acumulou uma relevante documentação sobre o período, que entregou posteriormente ao amigo e jornalista Elio Gaspari, dando subsídio à conhecida série de livros sobre a ditadura.

Apreciador de videocassetes, charutos Davidoff, suspensórios e livros [1], Ferreira também transitou no mundo editorial e realizou diversos trabalhos como tradutor, se especializando em obras de cunho político e social.

Ainda no começo da carreira, o gosto pelos livros o levou a integrar um grupo de trabalho no IPÊS dedicado a editar, patrocinar e distribuir clandestinamente publicações anticomunistas, do qual também fizeram parte importantes figuras do mundo literário como Rachel de Queiroz, Augusto Frederico Schimidt e o então romancista iniciante José Rubem Fonseca.

Neste período realizou o seu trabalho mais importante como tradutor, mas que curiosamente também permaneceu nas sombras. A primeira edição brasileira do clássico A revolução dos bichos, publicada em 1964 pela editora Globo com patrocínio do IPÊS, omitiu o nome completo e a patente militar de seu tradutor. Nos créditos do livro, constou apenas uma menção genérica a “Heitor Ferreira”, em uma tentativa de ocultar as intenções políticas e ideológicas por trás desta edição.

Na tradução do então tenente Ferreira, a sátira de George Orwell teve seu caráter anticomunista reforçado e adaptado para a realidade brasileira. O carregado componente ideológico é perceptível já na adaptação do título original Animal farm – a fairy story (que em uma tradução literal se aproxima de “Fazenda dos animais – um conto de fadas”) para “A revolução dos bichos”, no qual optou-se pelo uso das palavras “bicho” (gíria utilizada por estudantes nos anos 1960), ao invés de “animal”, e “revolução” (sentido ausente no original), de maneira a remeter o leitor diretamente à questão do comunismo (2). Em diversas as passagens do texto, inclusive, a palavra “rebellion”, que em português se aproxima do termo “rebelião”, é traduzida como “revolução”. O título também desloca a ênfase de Orwell sobre o resultado da história – a fazenda passa a pertencer aos animais – para o próprio processo revoltoso.

Ferreira optou ainda por não incluir na tradução brasileira o subtítulo original da obra (“a fairy story”) que a enquadrava dentro do gênero literário da fábula. Possivelmente tal escolha se deva à vontade de direcionar o livro a um público adulto, principal alvo da propaganda ideológica do IPÊS. A intenção de utilizar o livro como arma ideológica fica patente em uma correspondência do tenente, na qual descreveu a publicação de Animal Farm como fruto do esforço do grupo editorial do instituto de imprimir e encaminhar para os “editores amigos” várias obras de “propaganda democrática anticomunista”(3).

Além da tradução, os elementos não textuais apontam que a edição patrocinada e encomendada e pelo IPÊS à editora Globo teve como objetivo intensificar a crítica de Orwell à Revolução Russa e, mais especificamente, ao stalinismo. A ilustração da capa da segunda edição, assinada por Vitório Gheno, tem como elemento principal um porco desenhado com contornos grossos e irregulares, que aponta adiante como se desse ordens a três cães que aparecem em segundo plano. O desenho corresponde ao enredo da história, em que cães raivosos assumem a função de executar as decisões do autoritário porco Napoleão, o autodeclarado chefe dos animais da granja, que na alegoria do autor corresponde à figura de Stalin. Os olhos vermelhos e furiosos do porco em primeiro plano conferem-lhe uma feição demoníaca que remete à imagem do “mal”, à qual o comunismo foi historicamente identificado.

Além de realizar a tradução da obra, Ferreira foi o responsável por conduzir a negociação para a publicação do livro com o diretor da editora Globo, de Porto Alegre, com quem possuía laços de amizade. À editora foi oferecido um acordo de colaboração que incluía a compra de um determinado número de exemplares pelo IPÊS caso o livro encalhasse nas livrarias.

Afora a garantia de venda, a Globo também pôde reduzir os custos da edição se beneficiando da parceria estabelecida entre o instituto brasileiro e a United States Information Agency (USIA). A agência diplomática do governo dos EUA possuía um projeto para estimular a produção e circulação de publicações nos países do chamado “terceiro mundo” que oferecia às editoras locais uma lista de textos originais em língua inglesa para os quais cedia gratuitamente os direitos autorais e a tradução.

Mas esse auxílio certamente não era desinteressado. A bibliografia subsidiada pela USIA, bem como suas políticas culturais em geral, serviam aos propósitos da política externa e da disputa cultural traçada pelo governo estadunidense no âmbito da Guerra Fria. Entre 1962 e 1964 pelo menos 20 livros listados e subsidiados pela agência estadunidense foram distribuídos pelo IPÊS, sendo todos eles de viés anticomunista.

Tanto a USIA quanto o IPÊS tinham por praxe omitir seus nomes dos créditos das publicações, que eram lançadas como se fossem projetos exclusivamente idealizados e realizados pelas editoras. Essa estratégia de ação clandestina dificultou por muito tempo a identificação da verdadeira rede de financiamento por trás deste conjunto de publicações.

Escrito durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1945, Animal farm causou polêmica à época por sua crítica mordaz ao regime de Stalin, então um importante aliado das potências ocidentais no combate ao nazifascismo. A perspectiva crítica de Orwell para com os rumos da Revolução de 1917 havia nascido da experiência como combatente na Guerra Civil Espanhola, quando testemunhou a perseguição dos soviéticos aos republicanos que não se alinhavam à ortodoxia marxista. A partir de então passou a definir-se como um socialista democrático, embora sua trajetória política tenha sido provavelmente mais contraditória. Documentos que vieram a público nos anos 1990 indicam que o escritor teria delatado intelectuais simpatizantes do comunismo ao governo britânico (4).

Por sua crítica ampla ao totalitarismo, a obra de Orwell foi alvo de disputa no período da Guerra Fria, sendo capturada tanto pelo imaginário da esquerda quanto da direita. No Brasil, a trajetória da primeira edição de Animal farm esteve inserida num contexto de intensa polarização política e tornou-se exemplo da estratégia de apropriação e descontextualição das críticas ao governo soviético vindas da esquerda “não alinhada” para fins de propaganda ideológica anticomunista.

Por quase 60 anos, a tradução realizada pelo militar Heitor Aquino Ferreira foi a única versão da obra existente no Brasil e passou pelas mãos de milhões de jovens leitores através de sucessivas reedições. Em 2007, a Biblioteca do Exército (BIBLIEx) publicou a sua própria, reforçando o apreço dos militares brasileiros pela literatura orwelliana. Por outro lado, recentemente algumas editoras vêm preparando traduções inéditas e debatendo os significados adquiridos pelo livro desde o seu lançamento.

Em janeiro do próximo ano, quando a obra de Orwell entrará em domínio público, A revolução dos bichos sairá com novas traduções por diversas editoras, como a Globo Livros, a Novo Século e a LP&M (5). Agora em 2020, a Companhia das Letras lança uma tradução de Paulo Henriques Britto com um título bem mais próximo do original: A fazenda dos animais. A opção parece alinhada aos nossos próprios tempos e soa quase como uma reparação histórica. Mas igualmente relevante foi a decisão da editora de manter no catálogo, ao lado da edição especial, a antiga tradução de Ferreira com o título consagrado. Sendo o livro um objeto repleto de sentidos – que vão para muito além das intenções do autor – propiciar novas possibilidades de leitura sem deixar de debater criticamente o passado é sempre um caminho mais interessante.

Notas (1) A lenta queda de Heitor. Isto É, São Paulo, 12 out. 1983. Arquivo Ana Lagôa – UFSCar. (2) CARVALHO, C. H. A Revolução dos Bichos de George Orwell: tradução e manipulação durante a ditadura militar no Brasil. 2002. Monografia (Bacharelado em Letras) – Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2002, p. 83. [3] FERREIRA, H.A. Carta a Sônia Seganfredo, 25 out. 1962. Fundo IPES – Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. [4] OPPENHEIMER, Walter. George Orwell delatou 38 intelectuais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 jun. 2003. [5] GABRIEL, Ruan de Sousa. ‘A revolução dos bichos’ muda título em novas traduções, se reaproximando do original. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 de out. 2020.

*

Camila Alvarez Djurovic é historiadora e mestranda em História Econômica na FFLCH/USP, desenvolvendo pesquisa sobre as publicações da direita no pré-golpe de 1964. Também trabalha como pesquisadora do Memorial da Resistência de São Paulo.

https://www.glacedicoes.com/post/o-tradutor-veste-farda-camila-djurovic

.                                (Da esq. para direita : General Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel, Heitor Ferreira)

 

III

Sobre a edição de 2020 da Companhia das Letras

Nova edição: por que ‘A Revolução dos Bichos’ virou ‘A Fazenda dos Animais’

Em 1945, George Orwell publicou “Animal Farm”, história em que os animais tomam a fazenda onde vivem acossados pelos humanos; aos poucos, no entanto, os ideais da ação acabam desvirtuados. O romance, ao lado de “1984”, tornou Orwell conhecido em todo o mundo. A contemporaneidade das obras faz com que o britânico seja lembrado com frequência nos atuais debates sobre a ascensão de governos totalitários.

“Animal Farm” chegou ao Brasil em meados da década de 1960. Na ocasião, recebeu um título distante do original, mas que se tornou clássico: “A Revolução dos Bichos”. Desconheço leitores que nunca tenham ouvido falar no livro. Não é por acaso, então, que a nova edição que a Companhia das Letras publicará da fábula orwelliana tem causado surpresa. No dia 10 de novembro, chegará às livrarias uma tradução de “Animal Farm” feita pelo craque Paulo Henriques Britto com um título bem mais próximo do original: “A Fazenda dos Animais”.

É uma escolha que chacoalha a cabeça. De cara, nos lembra dois pontos: traduções sempre são versões e, de tempos em tempos, olhares novos e alinhados à própria época fazem um bem danado aos clássicos. Não há como compreender a escolha do novo título em português de “Animal Farm” sem entender as ideias que levaram Orwell a escrever o romance e a maneira como o livro se espalhou pelo mundo.

“Pensamos em dar mais uma opção para o leitor. Manter em catálogo nossa edição consagrada de ‘A Revolução dos Bichos’, e contar essa história da história, de como o ‘Animal Farm’ foi usado como arma ideológica no Brasil e no mundo. No posfácio, escrito para a nova edição, o professor e crítico Marcelo Pen narra com detalhes esse episódio — muito orwelliano, diga-se. Crítico dos totalitarismos, Orwell se desiludiu com o regime soviético, mas seguiu sendo socialista — acreditava, na verdade, que o mito soviético atrapalhava o socialismo ocidental. Mas viu seu livro se tornar propaganda contra todo socialismo”, me escreveu Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras.

A questão ideológica é tratada pelo próprio Orwell em um dos textos que fazem parte da nova edição brasileira. Num prefácio para a edição ucraniana publicada em 1947, o escritor lembra de sua formação socialista e indica os descaminhos que notava na União Soviética entrecruzados com a experiência que vivera na Guerra Civil Espanhola. No texto, explicita que o regime soviético era a inspiração, o ponto de partida, para construir uma narrativa que representa totalitarismos diversos.

“Devemos lembrar que a Inglaterra não é completamente democrática. Também é um país capitalista onde existem grandes privilégios de classe e (ainda hoje, mesmo depois que a guerra nos fez tender à igualdade) acentuadas diferenças econômicas”, registra. “Os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos”, continua, para depois explicar: “Decidi analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais. Para eles, claro, o conceito de luta de classes entre os seres humanos era pura ilusão, pois sempre que fosse necessário explorar os animais os seres humanos se uniam contra eles: a verdadeira luta se dava entre os bichos e as pessoas”.

Em “O Animal se Torna Humano e o Humano, Animal (Um Esclarecimento)”, o posfácio de Marcelo Pen mencionado por Fraia, compreendemos como uma crítica ampla à propaganda totalitária a partir de um olhar a União Soviética se transformou, na cabeça de muitos, numa espécie de manifesto fabulesco contra as ideias do comunismo. Quando “Animal Farm” chegou aos Estados Unidos, a crítica desconsiderou a biografia e as ideologias de Orwell para pintar o livro como “uma defesa da livre-iniciativa e de convicções que pactuavam com o American way of life”, aponta Marcelo, que também recorda: Orwell chegou a “se queixar ao poeta Stephen Spender de que não havia escrito um livro ‘contra Stálin para fornecer propaganda aos capitalistas'”.

Com essa visão deturpada, após a morte de Orwell braços do governo norte-americano começaram a investir na obra do autor (que “defendia a nacionalização da terra, dos bancos e das grandes indústrias, bem como a redistribuição ou limitação de renda”, lembra Pen) para usá-la como propaganda contra o comunismo. Financiadas pelos Estados Unidos, adaptações para o cinema de “Animal Farm” e “1984” foram pensadas para pesar a mão na mensagem pró capitalismo. Dinheiro também era investido em traduções oficiais ou clandestinas dos livros em diversas partes do mundo.

É nesse cenário que “Animal Farm” chega ao Brasil. Por aqui, quem planejou e bancou a primeira edição do romance foi o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPES, entidade responsável por disseminar a ideologia que levou ao golpe civil-militar de 1964. A ação com o livro foi impulsionada “menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista”, explica Marcelo. Publicado pela editora Globo com tradução de Heitor de Aquino Ferreira, em 1964 “Animal Farm” chegou aos leitores brasileiros com o nome de “A Revolução dos Bichos”.

“No Brasil, recebemos a obra com o famoso título ‘A Revolução dos Bichos’, deslocando o foco do fruto do ato para o ato em si, do espaço para a ação. Cabe ressaltar que se trata de um espaço importante, não apenas por revelar um ambiente muito típico da realidade rural inglesa, que Orwell tinha em mente, remetendo à sua infância e às circunstâncias em torno da gênese da obra, mas ainda por indicar aquilo que importa, em termos narrativos, isto é, que a propriedade passa a pertencer aos bichos, ou aos que trabalham nela, não aos que detêm o privilégio, e as consequências e transformações que se dão nessa localidade, depois disso”, analisa Marcelo.

O pesquisador também destaca que, até onde sabe, somente aquela edição brasileira apostou na palavra “revolução”, que sequer aparece no texto original, para o título. “A questão adquire maior interesse quando se considera que a palavra ‘revolução’ não aparece no original, mas apenas ‘rebelião’, fato que levou Ferreira a trocar esta por aquela algumas vezes, sobretudo no hino que substitui a combativa canção ‘Bichos da Inglaterra’ pela versão conspurcada, composta pelo poeta oficial”. Segundo o pesquisador, Orwell acredita no “ímpeto revolucionário e o empresta em algum grau aos animais e, talvez por isso, nunca use a palavra ‘revolução’, ao passo que a versão de 1964, justamente por enfatizá-la desde o título, parece negar a ela o seu valor e o seu futuro”.

Se fica claro como certas cabeças manipularam a obra e deturparam ou desprezaram as convicções de Orwell para utilizá-las justamente como a propaganda que tanto condenava, um olhar renovado para o título brasileiro de “Animal Farm” é muito bem-vindo. Trata-se de mais um passo importante para alinhar o nome de Orwell aos ideais que ele defendeu em vida e que serviram de base para os momentos mais conhecidos de sua ficção.

https://www.uol.com.br/splash/colunas/pagina-cinco/2020/10/22/nova-edicao-por-que-a-revolucao-dos-bichos-virou-a-fazenda-dos-animais.htm

 

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