A NOITE QUE MUDOU O POP

“A Noite que Mudou o Pop”, um dos mais surreais e impressionantes momentos da história cultural recente

texto por Davi Caro

Poucas canções, por mais inescapáveis e inesquecíveis que sejam, possuem um legado tão inescapável, inesquecível, e complexo quanto “We Are The World”. A composição de 1985, de autoria de Michael Jackson e Lionel Richie – então em seus respectivos auges de popularidade global – foi o elemento chave do projeto USA For Africa, que visava gerar empatia, consciência e generosas doações em prol das vítimas da fome na Etiópia. Seja pela melodia grudenta, pela letra repleta de sacarose, ou pelo elenco estelar convocado para a gravação beneficente (conduzido pelo maestro e gênio Quincy Jones), dois fatos são inegáveis: “We Are The World” é, sem dúvida, um sucesso integeracional, conhecida mesmo por gerações pouco familiares com o trabalho de seus autores ou participantes mais ilustres; e tal popularidade, ou familiaridade, pode esconder o fato de que, dadas as possibilidades, se trata de uma canção bastante aquém do potencial de qualquer um dos envolvidos.

É importante rememorar estes dois pontos antes de apertar o play em “A Noite que Mudou o Pop” (“The Greatest Night In Pop”, 2024), documentário dirigido por Bao Nguyen e disponível via Netflix. Os créditos iniciais já garantem certo tom de credibilidade ao listarem um dos compositores por trás da canção-tema como produtor: além de garantir (até certo ponto) a veracidade e precisão dos fatos recontados, Lionel Richie serve como um narrador não-oficial da história que se inicia com um telefonema do músico e ativista Harry Belafonte, no fim de 1984, e termina com os catárticos milhões de cópias vendidas do compacto com a canção resultante, assim como a antológica realização intercontinental do Live Aid, no meio do ano seguinte. Carismático como sempre, transbordando honestidade e passando longe de cantar as próprias vitórias, o ex-Commodore detalha a disposição com a qual recebeu a ligação de Belafonte, o alertando para a situação desesperadora pela qual famílias inteiras passavam em solo africano, e ressaltando a importância de um chamado global para que o amparo chegasse aos mais necessitados. Com o então-recente êxito do single colaborativo “Do They Know It’s Christmas?”, encabeçado pelo frontman dos Boomtown Rats, Bob Geldof, e englobando a nata do pop britânico da época, a dupla via possibilidades reais de repetir o feito contando apenas com artistas americanos, e recrutou o filantropo e empresário Ken Kragen para possibilitar aquilo que parecia apenas um sonho distante.

O envolvimento de Michael Jackson (então num período de transição no qual seu “Thriller”, de 1982, já começava a ganhar status de lendário) se mostra ter sido um processo bastante espontâneo, tendo em vista a relação de longa data entre ele e Lionel. O mesmo pode ser dito da não-presença, à princípio, de outro ilustre e muito esperado colaborador: apesar de contactado no início dos preparativos, Stevie Wonder não respondeu ao chamado para auxiliar na composição da faixa, muito embora sua presença tenha se tornado fundamental no resultado final. Assim, os dois artistas iniciados pela gravadora Motown se puseram a trabalhar na composição, que seria gravada pouco mais de 20 dias depois, por ocasião dos American Music Awards (AMAs), nos quais Lionel serviria como mestre de cerimônias. O evento, que traria dezenas de artistas para Los Angeles, se mostrou proveitoso para garantir a presença de muitos dos envolvidos na eventual gravação do compacto, mantida em sigilo absoluto e marcada para acontecer nos estúdios da A&M Records. Entre artistas já escalados para participarem da premiação (como Cyndi Lauper, Hall & Oates, Prince, Sheila E. e Huey Lewis) ou não (caso de Dionne Warwick, então no meio de uma série de apresentações em Las Vegas; ou de Bruce Springsteen, recém-saído da gigantesca turnê de “Born In The USA”, de 1984), figurariam lendas da música norte-americana – como Diana Ross, Bob Dylan e Willie Nelson –, nomes mais modernos – como Kenny Loggins, James Ingram e Steve Perry, do Journey – e inclusive personalidades públicas, como o Caça-Fantasmas Dan Aykroyd. Além, claro, do quarteto Michael Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder e Quincy Jones.

O esforço heróico de Lionel em se dividir nas posições de apresentador de um dos principais eventos da música estadunidense da época e colaborador em uma ocasião deste calibre não passam despercebidos para o espectador, que vai acompanhando a contagem regressiva para o fatídico dia 22 de Janeiro de 1985 à medida que a música toma forma – em grande parte graças a Michael, que faz ótimo uso das melodias concebidas por Richie para elaborar uma mensagem devidamente clara e concisa – e novos colaboradores, como Ray Charles e Smokey Robinson também tomam parte no projeto. A noite de gravação, mesmo planejada com antecedência proporcional ao renome dos envolvidos, não passou sem seus percalços. Quincy Jones, de modo quase premonitório, salientou sua busca por realizar um bom trabalho dentro do pouquíssimo tempo disponível de forma sucinta: fixou um aviso com os dizeres “Deixe seu ego na porta” na entrada do estúdio, para que os artistas, já desprovidos da rede de segurança de seus acessores ou guarda-costas, evitassem choques de estrelismo e competitividade aflorada. E, apesar das expectativas, deu certo: Huey Lewis se lembra, em seu depoimento à produção, da experiência surreal de ver Diana Ross pedindo autógrafos à Daryl Hall; operadores de câmera se recordam de Al Jarreau, num misto de empolgação e descontração alcóolica, tendo dificuldades em acertar suas linhas vocais solo. Aqui está um outro acerto da produção: ao contar com imagens outrora não disponíveis para o público, é possível ver e ouvir os takes que antecederam àqueles famosos mundialmente, no que pode se tornar um exercício de curiosidade aos mais familiarizados com “We Are The World” como produto final.

Michael Jackson não consegue escapar de certo nível de protagonismo, mas sua performance faz por merecer: escutar sua gravação isolada é capaz de trazer calafrios, tamanha a maturidade e perfeição cristalina transmitidas em sua voz, ainda tão jovem. Feito similar pode ser atribuído ao eterno líder (ou “chefe”) da E Street Band: mesmo tendo sido alçado a um novo patamar de estrelato após o lançamento do compacto, Bruce Springsteen admite não estar na sua melhor vocal no dia do registro das vozes, muito devido à alta demanda de sua jornada mundial encerrada há pouco. São apenas algumas das muitas lendas sobre as quais o documentário joga luz, clareando suposições e comentários que há tempos cercam a ocasião: a presença disruptiva de Cyndi Lauper, cujos braceletes e badulaques interferiam na qualidade da gravação de seus versos; a solicitação de Prince em participar realizando um solo de guitarra, definido como desnecessário pelo produtor e condutor e causa de sua não-participação (que resultou em seu vocal sendo redesignado para Huey Lewis); o subsequente desconforto causado a Sheila E., que se viu sendo usada para atrair seu relutante colaborador e não poupa palavras, ainda que educadas, para demonstrar seu descontentamento; e a já infame sugestão de Stevie Wonder em incorporar versos cantados em Swahili, numa homenagem às pessoas que a canção visava ajudar – apenas para ser rebatido por Bob Geldof, presente no estúdio, de que o povo da Etiópia não falava o idioma (num debate que também levou ao súbito abandono do projeto pelo astro country Waylon Jennings, já em meio às gravações). Momentos de maior tensão, como o aparente mau-humor de Paul Simon frente à dificuldade de Kenny Rogers em acertar seu vocal, se alternam com passagens bastante bem humoradas, como os relatos de como Stevie Wonder teria “mostrado” a um brincalhão Ray Charles onde ficava o banheiro.

Entre momentos que arrancam risos ou provocam leve desconforto, o documentário acerta ao, mesmo que sem querer, destacar a presença de quatro performers em particular: Diana Ross, uma das mais renomadas e respeitadas figuras a participarem do projeto, não apenas se mostra à vontade com artistas com os quais não possuía tanta familiaridade, como também é lembrada como bastante sentida ao final das operações, que se estenderam até as primeiras horas do dia 23 de Janeiro: depoentes relatam a cantora das Supremes às lágrimas, emocionada e já saudosa dos momentos de riso e descontração que passou ao lado de colegas novos e amigos de longa data. Descontração, aliás, não é algo perceptível em Quincy Jones, aqui mostrado como um profissional com nervos de aço que, embora nunca rude, não tinha medo de chamar a atenção daqueles que regeria com dureza, independente de sua experiência ou importância – ao final, não restam dúvidas sobre a importância de sua condução da canção, bem como de seus comentários e direcionamentos à respeito da melodia e da estrutura vocal.

O filme acerta mais uma vez ao dar a devida atenção e importância ao papel desempenhado por Harry Belafonte junto aos outros cantores mais famosos do line up. Qualquer um que se disponha a assistir o mega-popular vídeo para “We Are The World” teria que fazer bastante esforço para perceber o idealizador principal do projeto, deslocado porém entusiasmado ao lado da também injustiçada Bette Midler e do estranhíssimo corte de cabelo à-la-Beakman de Lindsay Buckingham (então do Fleetwood Mac) nas fileiras mais altas do coro. É Al Jarreau, porém, quem promove um dos mais icônicos – e outrora inéditos – momentos do evento: após Quincy chamar a atenção e pedir aplausos a Belafonte, Jarreau começa a entoar “Banana Boat (Day-O)”, grande sucesso pré-Billboard de Harry, com o restante dos presentes se juntando na homenagem e comovendo o intérprete original, como que para lembrá-lo da importância de sua presença e de seu legado.

E este, conforme mostrado no documentário, era um ponto sensível na carreira de outro dos grandes nomes presentes nos estúdios da A&M: os anos 1980 passaram longe de serem generosos para Bob Dylan, que havia passado por momentos de pura transição na virada da década anterior a nível pessoal, artístico e religioso. A meses de lançar seu malfadado “Empire Burlesque”, Zimmerman se mostra inadequado junto aos outros cantores envolvidos – tal sensação transpira, como não poderia deixar de ser, nas primeiras tentativas de registro de sua parte solo. Mesmo os menos familiarizados sabem que não é comum ver Dylan inseguro, e este é o fator que faz desta uma das mais singulares passagens do filme inteiro. Ver o bardo de Minnesota sorridente após ser reconfortado e, porque não, guiado por Stevie Wonder (que, ao piano, entoa sua própria versão do que percebe como o estilo vocal de Bob) ajuda a clarificar o conflito inerente não apenas ao mítico compositor, então lutando conta a percepção de si mesmo como “ultrapassado”, como também à toda a sua geração, que se desdobrava para entender sua própria importância num cenário onde os objetivos, e o ferramental, já eram outros.

Os registros em vídeo da época, entre filmagens já bem conhecidas e outras completamente inéditas, são magistralmente bem aproveitadas pelo diretor Nguyen, que sabe contextualizar a importância do momento documentado intercalando muito bem com as bem conduzidas e pontuais entrevistas recentes. Lauper, em especial, se mostra cândida e esclarecida a respeito do momento em que vivia então, e Huey Lewis ainda parece estar deslumbrado com ter sido parte de tamanha união estelar. Os músicos participantes na construção da canção – entre os quais estiveram membros (então) presentes da banda Toto, como David Paich e Steve Porcaro, bem como o brilhante percussionista brasileiro Paulinho da Costa – mereciam pelo menos menções, num ponto no qual a produção fica seriamente devendo.

Ao mesmo tempo que, cultural e artisticamente, os envolvidos tenham sido capazes de alçar novos, e mais altos, voos em popularidade, a iniciativa USA For Africa acabou sendo o estopim para uma série de campanhas beneficentes semelhantes ao redor do mundo (indo desde o grupo Artists United Against Apartheid, encabeçado pelo guitarrista Steven Van Zandt, e do projeto Hear N’ Aid, englobando vocalistas e músicos da cena heavy metal, até a realização do disco “Nordeste Já”, que reuniu, em 1985, alguns dos maiores nomes da música brasileira e se desembocaria, muitos anos depois, no projeto Criança Esperança). Muitos questionamentos seriam levantados mais além do simples mérito artístico da canção-hino, e o impacto humanitário efetivo do projeto, bem como do subsequente Live Aid, já foi analisado e colocado em cheque – uma matéria de 1986 publicada pela revista Spin expunha as inúmeras dificuldades encontradas para que os recursos angariados pudessem, de fato, chegar às mãos dos mais necessitados. Claro que não se trata do maior interesse aqui: “A Noite que Mudou o Pop” centra seu foco na improvável, desafiadora e triunfal tarefa de reunir alguns dos maiores nomes da música popular em todos os tempos, com o objetivo de gerar empatia e consciência para com populações historicamente desfavorecidas. Neste aspecto, o filme alcança seu objetivo com louvor, com o resultado final fazendo jus ao renome dos envolvidos, quer estejam estes presentes ou não (Harry Belafonte, inclusive, faleceu em Abril de 2023, e é homenageado nos créditos finais ao lado de Jackson e Jarreau, entre outros). Cada história tem vários lados, e abordar todos pode ser uma tarefa conflitante e infrutífera – mesmo assim, trata-se de um documento mais do que digno de um dos mais surreais e impressionantes momentos da história cultural recente, onde, mais do que caminhar entre reles mortais, pretensos deuses da música tiveram que aprender a caminhar uns entre os outros em nome de um bem maior.

(FONTE > https://screamyell.com.br/site/2024/02/14/critica-a-noite-que-mudou-o-pop-um-dos-mais-surreais-e-impressionantes-momentos-da-historia-cultural-recente/

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