O mecânico e o sensorial
FRANCISCO CARBONE
Há exatos 20 anos, o bem sucedido diretor de teatro Sam Mendes saía do escopo minimamente controlado do palco para uma jornada ininterrupta no cinema, descortinando universos do lado oposto ao que um autor teatral propõe. Mesmo em seu projeto inicial, Mendes sempre desejou ampliar seu olhar para o macro das encenações. Seu diferencial foi uma busca pela captura de uma nuance mínima dentro do lugar amplificado pela tela grande, que acabou por consagrá-lo desde a estreia.
Olhar 1917 agora e encontrar esse filme mergulhando sua mecânica evidente em um jogo de sutileza sensorial é perceber que esse cineasta já estava lá em Beleza Americana, no vizinho voyeur que observa tanto os seios nus da jovem pela janela quanto o tórax igualmente nu do pai da mesma. Ao nos colocar como testemunhas de eventos que revelam os buracos de fechaduras patéticos do ‘american way of life’, Mendes já tecia sua teia de ligação entre os eventos da tela e o espectador fora dela.
Em determinado momento desse novo filme, o jovem soldado protagonista fere sua mão num arame farpado em intenso forjar que se segue ao mergulho da mesma mão em um, digamos, orifício inesperado, invadindo a já capturada plateia a uma imersão cognitiva natural entre os que conjuram sensibilidade e inteligência cênica ao seu talento natural. Com essa cena, esse artifício invisível nos submerge a um estado enquanto público que já estava se costurando desde o plano de abertura, um campo dividido entre o mato relaxado e as parcas flores que se abre para filmar a dupla protagonista; ali, o anzol já tinha sido lançado, e os prováveis peixes mordido a isca.
Ao longo de quase 2h de duração, seguimos tanto os rapazes em missão quanto o aprimoramento do encontro entre Mendes e o gênio Roger Deakins, parceria iniciada em Soldado Anônimo e elevada a um patamar impossível de alcançar aqui, que transmite tanto a atmosfera perteita ao filme como realça os cuidados sensoriais que o diretor tinha acurado com seu primeiro parceiro, o igualmente genial Conrad L. Hall, que com ele ganhou seus 2 Oscars – ainda que o segundo tenha sido póstumo. Foi nesse primeiro duo que Mendes elaborou um processo que culmina em 1917, um lugar perdido dedicado ao toque, ao olhar, à humanidade, dentro da maquinaria superlativa.
Como já dito, esse é o ponto-chave de sua filmografia. Mesmo quando suas produções são polaroides de simplicidade contemporânea, o cineasta filma qualquer que seja sua escolha narrativa com tintas grandiloquentes, criando ele mesmo o contraponto na forma intimista com que encerra suas ações. Ainda que elas sejam partidas do agente britânico mais famoso do cinema, Mendes encapsula em suas imagens o espaço para o humano perdido no labirinto. É de momentos onde as pessoas se conectam e literalmente sentem, entre si ou sozinhas na escuridão, que reside a inflexão de 1917.
Ainda que sua estratégia em emular um plano-sequência interminável produza algo a princípio emocionalmente inerte, pouco depois de sua metade a ‘magia’ se desfaz e resta ao longa o capital mais precioso a qualquer filme: a conexão. É dessa nova recapitulação que vem a mente os cavalos abatidos, o resgate na fazenda, o rio de cadáveres, a ponte improvisada e tantas outras cenas que já tinham explorado os limites entre o potencial mecânico da produção e a sensorialidade das reações humanas a cada evento e cada encontro.
A dubiedade entre promover um espetáculo de tintas fortes e o encontro sutil dos personagens com suas sensações garantiu até hoje uma parte considerável do fascínio de Mendes na tela grande, e aqui essa capacidade é exacerbada para ambos os lados. Com a ajuda da espetacular lente de Derkins e da cenografia arrepiante de Dennis Gassner, Sam Mendes olha com a mesma compreensão para os esqueletos expostos em cena e para os que tentamos esconder em momentos de terror, mas que escapam à nossa vontade em singeleza inesperada. A despeito da trilha ligeiramente insidiosa de Thomas Newman, a experiência ampla proposta parece não se encerrar com o término.
De material imagético inegavelmente impactante (como as cenas da cidade em chamas, que nos remete ao horror que Vitorio Storaro conseguiu em Apocalypse Now), 1917 acaba por impressionar muito mais por, apesar de tudo, nunca perder de vista o material humano que é sua força-motriz, um rapaz chamado George MacKay. Seu arco dramático perfeito parece justificar inclusive o ‘truque’ de Mendes com o ‘one shot’ falso, indo da abertura ao encerramento só pra que descansemos juntos aos olhos do jovem soldado, voltando mais uma vez ao que lhe interessa acima do espetáculo, e que ao mesmo tempo o justifica.
( Fonte: www.cineplayers.com)