Bob Dylan – Entrevista

Na semana em que Bob Dylan lança seu trigésimo nono álbum, o primeiro em oito anos, o Letras e Livros traz uma rara entrevista com o astro. Leia na íntegra.

Entrevista : Bob Dylan

Em rara entrevista o ganhador do prêmio Nobel fala sobre mortalidade, suas inspirações do passado e sobre o novo álbum, “ Rough and Rowdy Ways”.

JUNE 13, 2020

Por Douglas Brinkley

Alguns anos atrás, sentado sob as sombras das árvores em Saratoga Springs, Nova York, tive uma conversa de duas horas com Bob Dylan que abordou Malcolm X, a Revolução Francesa, Franklin Roosevelt e a Segunda Guerra Mundial. Em um dado momento, ele me perguntou o que eu sabia sobre o Massacre de Sand Creek de 1864. Quando respondi: “Não o suficiente”, ele se levantou da cadeira dobrável, subiu em um ônibus de turismo e voltou cinco minutos depois, com fotos que descreviam como as tropas americanas massacraram centenas de indígenas pacíficos Cheyenne e Arapahoe no sudeste do Colorado.

Dada a natureza de nosso relacionamento, eu me senti à vontade em entrar em contato com ele em abril, depois que, no meio da crise do novo coronavírus, ele lançou inesperadamente uma épica canção de 17 minutos, Murder Most Foul, sobre o assassinato do presidente John Kennedy. Desde que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2016, Dylan só havia concedido uma grande entrevista a seu site oficial. Apesar disso, ele aceitou conversar comigo por telefone de sua casa em Malibu, Califórnia. Essa se tornou sua única entrevista antes do lançamento de Rough and Rowdy Ways, seu primeiro álbum de músicas originais desde Tempest em 2012.

Como a maioria das conversas com Dylan, Rough and Rowdy Ways abrange territórios complexos: transes e hinos, blues desafiadores, anseios de amor, justaposições cômicas, brincadeiras com jogo de palavras, fervor patriótico, resistência rebelde, cubismo lírico, reflexões do fim da vida e satisfação espiritual.

Na acelerada Goodbye Jimmy Reed, Dylan homenageia o bluesman do Mississippi citado no título, com riffs de gaita ferozes e letras obscenas. No blues lento Crossing the Rubicon, ele sente “os ossos sob a pele” e considera suas opções antes da morte: “Três milhas ao norte do purgatório – a um passo do grande além / eu rezei diante da cruz e beijei as meninas, e eu cruzei o Rubicon.”

Mother of Muses é um hino ao mundo natural, aos coros de igrejas e a militares como William Tecumseh Sherman e George Patton, “que abriram caminho para Presley cantar / que abriram caminho para Martin Luther King”. E Key West (Philosopher’s Pirate) é uma meditação etérea sobre a imortalidade, situada em uma viagem de carro na Rota 1 até o arquipélago Florida Keys, com o acordeão de Donnie Herron canalizando Garth Hudson, do grupo The Band. Nessa música, Dylan presta homenagem a “Ginsburg, Corso e Kerouac”.

Talvez um dia ele escreva uma música ou faça uma pintura em homenagem a George Floyd. Nas décadas de 1960 e 1970, após o trabalho de líderes negros do movimento pelos direitos civis, Dylan também trabalhou para expor a arrogância do privilégio branco e a crueldade do ódio racial nos Estados Unidos por meio de músicas como George Jackson, Only a Pawn in Their Game e The Lonesome Death of Hattie Carroll. Uma de suas frases mais ferozes sobre polícia e raça veio na balada Hurricane, de 1976: “Em Paterson, é assim que as coisas acontecem / Se você é negro, é melhor não aparecer na rua / A menos que queira chamar atenção”

Eu tive um breve encontro com Dylan, 79, um dia depois que George Floyd foi morto em Minneapolis. Claramente abalado pelo horror que havia ocorrido em seu estado natal, ele parecia deprimido. “Me enojou infinitamente ver George torturado até a morte dessa forma”, disse ele. “Foi mais do que feio. Vamos torcer para que a justiça seja rápida para a família Floyd e para o país”.

Estes são trechos editados das duas conversas.

‘Murder Most Foul’ foi escrita como um tributo nostálgico a uma época há muito perdida?

Para mim, não é nostálgica. Não penso em Murder Most Foul como uma glorificação do passado ou algum tipo de despedida para uma época perdida. A música fala comigo nesse momento. E sempre falou, especialmente quando eu estava escrevendo a letra.

‘Contain Multitudes’ tem uma frase poderosa: “Eu durmo com a vida e a morte na mesma cama.” Suponho que todos nos sentimos assim quando atingimos uma certa idade. Você pensa na mortalidade com frequência?

Eu penso na morte da raça humana. A longa e estranha viagem do macaco nu. Sem querer ser leviano, mas a vida de todos é tão transitória. Todo ser humano, não importa quão forte ou poderoso, é frágil quando se trata de morte. Penso nisso em termos gerais, não de maneira pessoal.

Há muitos sentimentos apocalípticos em ‘Murder Most Foul’. Você está preocupado que em 2020 tenhamos passado de um ponto em que não dá mais para voltar? Que a tecnologia e a hiperindustrialização vão trabalhar contra a vida humana na Terra?

Claro, há muitas razões para ficar apreensivo com isso. Definitivamente, há muito mais ansiedade e nervosismo agora do que costumava existir. Mas isso só se aplica a pessoas de uma certa idade como eu e você, Doug. Temos a tendência de viver no passado, mas isso somos nós. Os jovens não têm essa tendência. Eles não têm passado, então tudo que sabem é o que veem e ouvem, e eles acreditam em qualquer coisa. Daqui a 20 ou 30 anos, eles estarão na vanguarda. Quando você vê alguém com 10 anos, ele estará no controle em 20 ou 30 anos, e ele não terá ideia do mundo que conhecíamos. Os jovens que estão na adolescência agora não têm memórias suficientes para se lembrar. Então provavelmente é melhor entrar nessa mentalidade o mais rápido possível, porque essa será a realidade. No que diz respeito à tecnologia, ela torna todos vulneráveis. Mas os jovens não pensam assim. Eles não poderiam se importar menos. Telecomunicações e tecnologia avançada são o mundo em que nasceram. O nosso mundo já está obsoleto.

Uma frase em False Prophet – “Eu sou o último dos melhores – você pode enterrar o resto” – me lembrou das mortes recentes de John Prine e Little Richard. Você ouviu a música deles depois que eles faleceram como uma espécie de homenagem?

Os dois foram triunfantes na obra deles. Eles não precisam que ninguém faça homenagens. Todo mundo sabe o que eles fizeram e quem eles eram. E eles merecem todo o respeito e reconhecimento que receberam. Nenhuma dúvida sobre isso. Mas eu cresci com Little Richard. E ele começou antes de mim. Acendeu algo dentro de mim. Me conectou com coisas que eu nunca saberia por conta própria. Então, eu penso nele de forma diferente. John veio depois de mim. Portanto, não é a mesma coisa. Eu os reconheço de maneira diferente.

No álbum “Tempest” você interpreta “Roll on John” como uma homenagem a John Lennon. Há outra pessoa para quem gostaria de escrever uma balada?

Esse tipo de canção vem para mim do nada, do nada. Eu nunca tenciono escrever nenhuma delas. Mas ao dizer isso, há certas figuras públicas que estão apenas no seu subconsciente, por uma razão ou outra. Nenhuma dessas canções com nomes designados é escrita intencionalmente. Apenas caem do espaço. Estou tão desorientado como qualquer outra pessoa quanto ao motivo de eu as escrever. A tradição popular tem uma longa história de canções sobre as pessoas, no entanto. John Henry, Mr. Garfield, Roosevelt. Acho que estou apenas preso a essa tradição.

Você homenageia muitos grandes artistas em suas músicas. Sua menção a Don Henley e Glenn Frey em ‘Murder Most Foul’ foi uma surpresa para mim. Quais músicas do Eagles você mais gosta?

New Kid in Town, Life in the Fast Lane, Pretty Maids All in a Row. Essa talvez seja uma das melhores músicas de todos os tempos.

Você também faz referência a Art Pepper, Charlie Parker, Bud Powell, Thelonious Monk, Oscar Peterson e Stan Getz em ‘Murder Most Foul’. Como o jazz o inspirou como compositor e poeta ao longo de sua longa carreira? Você tem escutado artistas de jazz ultimamente?

Talvez as coisas mais antigas de Miles (Davis) na Capitol Records. Mas o que é jazz? Dixieland, bebop, fusion? O que você chama de jazz? É Sonny Rollins? Eu gosto do calypso de Sonny, mas isso é jazz? Jo Stafford, Joni James, Kay Starr – eu acho que elas eram todas cantoras de jazz. King Pleasure, é essa minha ideia de um cantor de jazz. Eu não sei; você pode colocar qualquer coisa nessa categoria. O jazz remonta à década de 1920. Paul Whiteman foi chamado de o rei do jazz. Tenho certeza que se você perguntasse a Lester Young, ele não saberia do que você está falando. Algo de jazz já me inspirou? Bem, sim. Provavelmente muito. Ella Fitzgerald como cantora me inspira. Oscar Peterson como pianista, absolutamente. Algo me inspirou como compositor? Sim, Ruby, My Dear, de Monk. Essa música me colocou no caminho de fazer algo parecido. Me lembro de ouvir essa canção várias vezes.

Qual o papel da improvisação na sua música?

Nenhum. Não há como você mudar a natureza de uma música depois de inventá-la. Você pode definir diferentes padrões de violão ou piano nas linhas estruturais (da música) e partir daí, mas isso não é improvisação. A improvisação deixa você aberto para performances boas ou ruins, e a ideia é permanecer consistente. Você basicamente toca a mesma coisa várias vezes da maneira mais perfeita possível.

‘I Contain Multitudes’ é surpreendentemente autobiográfica em partes. Os dois últimos versos exalam um estoicismo de não ligar para os outros, enquanto o resto da música tem um tom confessional e bem-humorado. Você se divertiu ao brigar com impulsos contraditórios de si mesmo e da natureza humana em geral?

Eu não tive que brigar muito. É o tipo de coisa em que você vai escrevendo em fluxo de consciência e, em seguida, deixa o texto por um momento para depois começar a cortar algumas partes. Nessa música em particular, os últimos versos vieram primeiro. Era essa a direção para a qual a música estava se dirigindo o tempo todo. Obviamente, o catalisador da música é a frase do título. É uma daquelas frases que você escreve por instinto, meio que em estado de transe. A maioria das minhas músicas recentes é assim. As letras são reais, tangíveis; eles não são metáforas. As músicas parecem conhecer a si mesmas e sabem que eu posso cantá-las, vocal e ritmicamente. Eles meio que se escrevem sozinhas e contam comigo para cantá-las.

Mais uma vez nesta música você nomeia muitas pessoas. O que o fez decidir mencionar Anne Frank ao lado de Indiana Jones?

A história dela significa muito. É profunda. E difícil de articular ou parafrasear, especialmente na cultura moderna. Todo mundo tem uma atenção tão curta. Mas você está tirando o nome da Anne do contexto, ela é parte de uma trilogia. Você também poderia perguntar: “O que o fez decidir incluir Indiana Jones ou os Rolling Stones?”. Os nomes em si não são solitários. É a combinação deles que soma algo mais do que suas partes singulares. Entrar em detalhes demais é irrelevante. A música é como uma pintura, você não pode ver tudo de uma vez se estiver muito perto. As peças individuais são apenas parte de um todo. “I Contain Multitudes” é mais como a escrita de transe.   É a maneira como eu realmente me sinto sobre as coisas. É a minha identidade e eu não vou questioná-la, não estou em posição de questioná-la. Cada linha tem um propósito particular. Em algum lugar do universo, esses três nomes devem ter pago um preço pelo que eles representam e estão trancados juntos. E eu dificilmente posso explicar isso. Por que ou onde ou como, mas esses são os fatos.

Mas Indiana Jones era um personagem fictício?

Sim, mas o roteiro de John Williams o trouxe à vida. Sem a música não teria sido um grande filme. É a música que faz o Indy ganhar vida. Então essa talvez seja uma das razões pelas quais ele está na música. Eu não sei, os três nomes vieram de uma vez.

Uma referência aos Rolling Stones está em “I contain multitudes”. A título de brincadeira, que canções Stones você gostaria de ter escrito?

Oh, eu não sei, talvez “Angie”, “Ventilator Blues” e o que mais, deixe-me ver. Oh, sim, “Wild Horses”.

Como você passou os últimos dois meses em isolamento em Malibu? Você conseguiu soldar ou pintar?

Sim, um pouco.

Você consegue ser criativo musicalmente em casa? Você toca piano e passa tempo em seu estúdio particular?

Faço isso principalmente nos quartos de hotel. Um quarto de hotel é o mais próximo que chego de um estúdio particular.

Ter o Oceano Pacífico em seu quintal te ajuda a processar a pandemia de covid-19 de maneira espiritual? Existe uma teoria chamada “mente azul” que acredita que morar perto da água faz bem para a saúde.

Sim, eu posso acreditar nisso. Cool Water, Many Rivers to Cross, How Deep Is the Ocean. Eu ouço qualquer uma dessas músicas e é como um tipo de cura – não sei para quê, mas uma cura para algo que nem sei que tenho. Uma cura de algum tipo. É como uma coisa espiritual. A água é uma coisa espiritual. Eu nunca ouvi falar dessa teoria antes. Parece que poderia ser algum tipo de música lenta de blues. Algo que Van Morrison escreveria. Talvez ele tenha escrito, eu não sei.

É uma pena que, quando a peça ‘Girl From the North Country’, que tem músicas suas, estava recebendo ótimas críticas, a produção teve que ser interrompida por causa da covid-19. Você já assistiu à peça ou à filmagem da encenação?

Claro, eu já vi, e me tocou. Eu vi como um espectador anônimo, não como alguém que estivesse envolvido com a peça. Só deixei acontecer. A peça me fez chorar no final. Eu nem sei dizer o porquê. Quando a cortina se abriu, fiquei atordoado. Eu realmente fiquei. Pena que a Broadway fechou, porque eu queria assisti-la novamente.

Você pensa nessa pandemia em termos quase bíblicos? Como uma praga que varreu a Terra?

Eu acho que é um indicador de algo mais por vir. É uma invasão, com certeza, e é generalizada, mas bíblica? Você quer dizer algum tipo de sinal de alerta para as pessoas se arrependerem de seus erros? Isso implicaria que o mundo está para receber algum tipo de punição divina. A arrogância extrema pode ter penas desastrosas. Talvez estejamos na beira da destruição. Existem várias maneiras de pensar sobre esse vírus. Eu acho que temos que deixar ele seguir seu curso.

De todas as suas composições, passei a gostar mais de ‘When I Paint My Masterpiece’ ao longo dos anos. O que fez você voltar a tocá-la em shows recentes?

Também passei a gostar mais dessa música. Eu acho que essa música tem a ver com o mundo clássico, algo que está fora de alcance. Em algum lugar que você gostaria de estar além da sua experiência. Algo que é tão supremo e de primeira qualidade que você nunca poderia descer da montanha. Que você alcançou o impensável. É isso que a música tenta dizer, e você precisa colocá-la nesse contexto. Ao dizer que, mesmo que você pinte sua obra-prima, o que você fará então? Bem, obviamente, você tem que pintar outra obra-prima. Isso poderia se tornar um ciclo interminável, uma armadilha de algum tipo. A música não diz isso, no entanto.

Como está sua saúde? Você parece estar em forma. Como você mantém a mente e o corpo trabalhando juntos em uníssono?

Essa é a grande pergunta, não é? Como é que alguém faz isso? Sua mente e seu corpo andam de mãos dadas. Tem que haver algum tipo de acordo. Eu gosto de pensar a mente como espírito e o corpo como substância. Como você integra essas duas coisas, eu não tenho ideia. Eu apenas tento ir em linha reta e ficar nela.

( Publicado originalmente no The New York Times)

Fonte: https://www.nytimes.com/2020/06/12/arts/music/bob-dylan-rough-and-rowdy-ways.html)

Ouça “Murder Most Foul”

https://www.youtube.com/watch?time_continue=8&v=3NbQkyvbw18&feature=emb_logo

 

Ouça “ False prophet”

https://www.youtube.com/watch?v=2QPBpFAKTGo

 

 

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