Formação jurídica precisa incorporar a crítica das mídias

Formação jurídica precisa incorporar a crítica das mídias

Por André Azevedo da Fonseca

Basta acompanhar qualquer grupo de advogados no WhatsApp para constatar o alto nível de analfabetismo funcional na leitura crítica que muitos supõem realizar sobre os meios de comunicação. De profissionais experientes em todas as áreas do Direito — incluindo juízes, promotores e delegados, além de estudantes, professores e pesquisadores acadêmicos — muitos se igualam naquela ignorância arrogante que nasce da absoluta incompreensão acerca das dinâmicas contemporâneas de produção e veiculação de notícias no contexto das novas mídias.

Por consequência, se tornam reféns de sua própria desinformação ao fundamentar as suas convicções sobre o mundo a partir de “fatos incontestáveis” de veículos sensacionalistas, “opiniões isentas” em linhas editoriais carregadas de interesses políticos e econômicos, além de — o que é ainda mais desastroso — conteúdos deliberadamente fraudulentos de sites e blogs obscuros que, sem qualquer pudor ou compromisso, reproduzem ou simplesmente inventam fake news cuidadosamente produzidas para confundir e viralizar. Sem contar aqueles posts e memes com “verdades categóricas” que circulam nas redes sociais…

Ora, quem nunca se surpreendeu ao testemunhar colegas aparentemente muito sensatos compartilhando, na maior indignação, as mais esdrúxulas teorias da conspiração?

Para sermos justos, é preciso admitir que essa ignorância não é um privilégio dos bacharéis de Direito. O problema é universal. Mas como estamos falando de profissionais cuja essência do trabalho exige um exercício rigoroso de interpretação da realidade, a incompetência na leitura das mídias pode provocar danos sérios a si mesmo e aos outros. A falta de consciência sobre os inúmeros condicionamentos que as velhas e novas mídias impõem à nossa leitura da realidade é uma deficiência que a universidade não pode deixar de superar.

Raramente a formação superior em Direito inclui em seu programa aquilo que estudiosos de Comunicação chamam de alfabetização midiática — ou media litteracy na tradição inglesa. Essa escola de pensamento parte do princípio de que, desde o século XX, o estudo sobre as linguagens das mídias deveria se tornar uma matéria tão fundamental à formação escolar, acadêmica, profissional e cidadã quanto a língua portuguesa, a metodologia científica, o Direito Constitucional ou a habilidade de fazer a própria declaração ao imposto de renda. No contexto do capitalismo informacional, marcado pela influência decisiva dos meios de comunicação em praticamente todas as instâncias da vida social, é indispensável conhecer os mecanismos que condicionam a produção e circulação de mensagens nas mídias.

É preciso saber, por exemplo, que empresas de mídia tratam a informação como um produto ou um serviço à venda. Ou seja, uma notícia de jornal está situada nas mesmas leis de oferta e procura que regem o comércio de sabonetes ou de petições. Isso nos leva à consciência de que parte importante das motivações que induzem este ou aquele veículo a publicar, ou não, esta ou aquela notícia, frequentemente se relaciona mais com os interesses comerciais da empresa do que com o interesse público propriamente dito. Em outras palavras, uma notícia importante que não corresponde às demandas imediatistas dos clientes deixa de ser publicada para dar espaço à notícia pitoresca que sempre atiça a curiosidade e garante a audiência. Um jornal diz muito sobre a sua visão de mundo naquilo que não publica. O silêncio ensurdecedor sobre determinados temas é um sinal tão importante quanto uma manchete escandalosa sobre outros.

Os interesses particulares dos proprietários dos meios de comunicação ora se alinham, ora se chocam com as políticas econômicas do governo vigente. Da isenção de impostos em determinados setores à regulamentação dos meios de comunicação, muitos dos temas noticiados são enviesados em benefício dos interesses da empresa jornalística que, naturalmente, os apresentam como se tratassem de interesse público. Políticos bem relacionados com empresários de mídia, sobretudo aqueles que tradicionalmente aprovam grandes volumes de publicidade governamental nas páginas de seus veículos de estimação, tendem a receber uma cobertura jornalística mais amistosa e, de certo modo, domesticada. Por outro lado, aqueles que não frequentam os salões e preferem descentralizar as verbas para valorizar veículos alternativos chegam a ser ostensivamente perseguidos. Este comércio varia da reciprocidade tácita às práticas veladas ou explícitas de chantagem e suborno.

Tudo isso nos leva à conclusão de que todas as notícias devem ser interpretadas a partir do princípio de que a defesa dos interesses do próprio veículo pode se expressar de forma oculta na linha editorial supostamente voltada ao interesse público. Ou seja, se toda mensagem nas mídias está carregada de ideologia, também não deixa de ser enviesada por relações comerciais objetivas que escapam da vista dos leitores.

Nem sempre os vieses são perceptíveis. O mito da neutralidade e da imparcialidade da imprensa ainda persiste na imaginação de leitores ingênuos que se julgam críticos. Ora, o jornalista está apenas noticiando um fato, citando fontes, registrando os dois lados — supõem. Nem estou me referindo apenas ao problema apontado no clássico “Como mentir com estatísticas”, de Darrell Huff — um livro brilhante que denuncia os artifícios para manipular gráficos de modo a forjar conclusões enganosas a partir de dados verdadeiros para fins de propaganda ideológica. Em uma educação para as mídias, os leitores devem aprender que as ideologias precisam ser desveladas na diversidade de recursos jornalísticos que, ao lado da retórica do texto, se expressam também em elementos não-textuais — incluindo imagens e a própria disposição dos blocos de informação no decorrer da página.

Uma fotografia que flagra aquele instante em que um político se contorce em uma careta repulsiva ao espirrar, ou ao se recuperar de um bocejo involuntário, provoca mais danos à sua imagem do que um longo editorial denunciando a sua suposta incompetência. Uma imagem pejorativa pode ridicularizar o personagem ou o tema da notícia ao ponto de induzir o leitor a uma interpretação irônica de um registro informativo. As cores ou a falta de cores; o tamanho reduzido ou ampliado dos caracteres empregados no título, nas legendas ou nos elementos gráficos sugerem uma interpretação positiva ou negativa, que reforçam, complementam ou conferem conotações diversas ao conteúdo da reportagem. Capas de revistas semanais representando personagens políticos como, por um lado, santos, heróis ou sábios; e por outro, demônios, monstros ou loucos, nos mais variados graus de sutileza, contribuem para forjar uma determinada reputação a partir de emoções subjetivas que não necessariamente estão explícitas no conteúdo da reportagem.

Muito já foi publicado sobre essas dinâmicas. Nos campos da Educação e das Ciências da Comunicação, há um consenso de que uma das melhoras formas de aprender a ler as mídias é produzi-las de forma experimental. Esta é a perspectiva da mídia-educação. Em síntese, essa pedagogia propõe o uso de jornais em sala de aula como recurso didático para que estudantes realizem a crítica das mídias a partir da compreensão do próprio processo de produção. Isso implica não só na leitura, mas no exercício de criação de seus próprios jornais experimentais. Ao vivenciar o exercício de discutir pautas; delegar funções; escolher as fontes de informação; entrevistar; interpretar; sintetizar; redigir o texto jornalístico nos seus mais variados gêneros; decidir quais reportagens, notícias, artigos, crônicas e charges produzidas para aquela edição serão realmente publicados; hierarquizar as informações, conferindo mais destaque a algumas em detrimento de outras; definir a manchete da capa; escolher as palavras dos títulos; associar fotografias e manipular os blocos de texto; tudo isso a partir da compreensão da disputa desigual de poderes em uma estrutura de imprensa – que inclui proprietário, diretor comercial, editor, repórteres, fotógrafos, redatores, revisores, diagramadores, impressores e distribuidores, cada um com seus próprios desafios e interesses. Com todo este exercício, estudantes tendem a decodificar as mensagens nas mídias com mais habilidade.

Essas e outras dimensões do ensino superior em Direito são objeto do livro Direito e Ensino Jurídico em Desordem, uma obra de referência organizada pelo professor de Direito Constitucional André Del Negri, lançada pela Editora D’Plácito, de Belo Horizonte. Este texto integra o capítulo “A crítica das novas mídias: uma competência indispensável ao ensino de Direito”. Partimos do princípio de que, precisamente por serem novas, essas plataformas impõem desafios inéditos na formação acadêmica e profissional nas mais diversas áreas do Direito. Esperamos que, com a leitura, os estudantes exercitem o seu espírito crítico e passem a interpretar as novas mídias a partir de um conjunto mais amplo de referências. E com isso, se tornem mais interessados em exercitar as habilidades de interpretação das mídias, em vez de passar vergonha nos grupos do WhatsApp…

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André Azevedo da Fonseca é professor e pesquisador no Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

( Fonte:http://observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/formacao-juridica-precisa-incorporar-a-critica-das-midias/)

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