Generalizações pseudointelectuais: o “mal de Pondé”
Por Franthiesco Ballerini
Algumas semanas atrás, o filósofo Luiz Felipe Pondé escreveu, na Folha de S.Paulo, mais um de seus textos que partem de generalizações amplas para resumir, em poucas palavras, as pessoas, os comportamentos, as tendências, enfim, o mundo todo. No texto, Pondé diz que “a virtude mais rara no debate público contemporâneo é alguma dose mínima de maturidade. E as redes sociais só pioram: em termos de debates de ideias, as redes sociais só pioraram o mundo. O debate nas redes sociais é coisa de gente boba”. Mais à frente, mudando de assunto como quem muda de canal, Pondé diz que “os jovens mais puritanos, fundamentalistas e intolerantes são os que pensam assim. O veganismo é uma forma de fundamentalismo que carrega rúculas ao invés de bombas”. E tem também digressões típicas daqueles velhos babões solitários, sem sexo e sem amigos, sobre o comportamento sexual dos jovens no século 21. Epa, melhor não generalizar, nem todo homem de mais idade é assim. De qualquer forma, Pondé parece escrever com a autoridade de quem só conhece o tema pelos livros, sendo ele mesmo a melhor definição daquilo que descreve no final de seu próprio texto: “um terreno baldio de bobos e raivosos regados a algoritmos”. Só que sem os algoritmos.
Mais do que provocar o cancelamento de assinaturas da Folha ou reações raivosas nas redes sociais, Pondé aprofunda um problema muito frequente nas matérias, reportagens, notas, artigos e críticas do jornalismo cultural brasileiro, talvez também mundial: as generalizações. Há excelentes jornalistas e especialistas culturais que fogem deste perigo, evitando cair na tentação de achar que generalizar é mostrar conhecimento de causa pelos anos de estrada jornalística, pela amplitude de sua experiência prática, teórica etc. Há também aqueles que fogem da generalização como o diabo da cruz: querem buscar a exceção como critério jornalístico de publicação: a relevância.
Mas a generalização talvez seja mais comum do que os casos acima citados. O “mal de Pondé” se estende tanto na cobertura de jornalistas recém iniciados quanto – e talvez com mais frequência – nos colegas com décadas de experiência na área. A generalização pode ser um hábito que nem se percebe. É como dizer, naqueles programas de fofoca ou colunas sociais, que tal celebridade continua “brilhando”, talvez pra justificar a própria pauta e nada mais.
No jornalismo político – opinativo, ou até mesmo, ainda mais grave, no factual – generalizar é dizer que a corrupção se alastra pelo país, jogando no mesmo buraco aqueles muitos (a maioria) que trabalham e vivem com dignidade e ética. No jornalismo econômico, a generalização pode transparecer pelo uso de números ou algoritmos – usando os termos do Pondé – para desenhar um cenário absolutamente desolador do país ou do mundo, como um apocalipse financeiro prestes a explodir tudo e todos, usando aqui duas palavras do reino máximo das generalizações. No jornalismo cultural, no entanto, a generalização se dá muitas vezes de maneira menos óbvia do que nas rápidas opiniões “fast-writing” das colunas do filósofo.
No cinema, por exemplo, o “mal de Pondé” pode partir do pressuposto de que todo filme caro é bom, gerando coberturas extensivas de baboseiras hollywoodianas cuja qualidade está à altura das opiniões do colunista. Trata-se de algo tão sério no cinema que dois dinamarqueses – Thomas Vintenberg e Lars Von Trier – criaram, nos anos 1990, um movimento – o Dogma 95 – na qual uma das finalidades era justamente destruir este estereótipo de “filme caro é bom”. Pena que o movimento não foi adiante, por razões que não cabem aqui explicar.
Em outras áreas, como literatura e artes plásticas, o “mal de Pondé” pode vir de textos que reduzem a um estilo, um formato, às vezes até uma intenção ou discurso toda a obra de um escritor ou artista, rotulando-os como monocórdicos especialistas que eles mesmos nunca quiseram ser. Na música, generalizações jogam todas as canções, álbuns e cantores de uma banda como fazedores de rock meloso, funk agressivo, bossa nova sofisticada, axé erotizado etc. Ou mesmo quando, após anos de carreira, o jornalista – e isso nem sempre numa crítica e, sim, em cabeçalhos de uma matéria “factual” sobre o lançamento de um novo disco – diz que Marisa Monte continua “cafona”, “melosa” etc.
É claro que nem toda generalização se traduz num erro ou num “mal de Pondé”. As chamadas ciências duras partem muitas vezes de generalizações para o avanço do conhecimento do universo ao redor. “Nada nem ninguém é mais veloz do que a luz” é uma generalização. Mas no caso das ciências duras, generalizações são sempre articuladas como hipóteses a serem confirmadas, sobre as quais os próprios cientistas perseguirão, ad infinitum, uma refutação, como a descoberta de algo que viaja acima da velocidade da luz. O “mal de Pondé”, no entanto, são generalizações sobre temas que passam longe de hipóteses científicas, cuja comprovação é improvável ou impossível. Acredita-se na generalização apenas pela força simbólica (curricular, midiática, universitária, intelectual) de seu emissor. Nada mais. O “mal de Pondé”, portanto, não gera uma série de cientistas loucos para refutar uma bem construída hipótese. No melhor dos cenários, gera mais bobos raivosos regados a certezas profundas como pratos e pires, cujo conhecimento do mundo não passa de suas estreitas e facilmente alcançáveis bordas.
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Franthiesco Ballerini é escritor, jornalista e autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’. www.franthiescoballerini.com