No aniversário de 80 anos de Chico Buarque, três publicações abordam vida e obra de um dos maiores artistas brasileiros.
Trocando em miúdos: Seis vezes Chico
Trocando em miúdos, biografia meticulosamente elaborada por Tom Cardoso, celebra os 80 anos de um ícone musical, político e literário: Chico Buarque, um dos maiores nomes da cultura brasileira.
Dono do eu lírico feminino mais aclamado do Brasil, contestador irredutível da ditadura civil-militar e vencedor do prêmio Jabuti por três vezes, Chico Buarque tornou-se um símbolo nacional, que diz: não é possível fazer cultura sem pensar a política.
Nascido em meio à efervescência cultural do Rio de Janeiro, o compositor e cantor emergiu como um polímata, cuja atuação transcendeu os limites da música para abraçar também o teatro, a literatura e o ativismo político. Filho do ilustre historiador Sérgio Buarque de Holanda e da intelectual Maria Amélia Buarque de Holanda, Chico encontrou na palavra o seu elemento basilar, dando vida a composições, livros e manifestações que ecoam os anseios e as contradições da alma brasileira.
A narrativa habilmente tecida por Tom Cardoso nos leva a explorar os meandros das experiências de Chico, desde os embates com a censura durante os anos sombrios da ditadura militar até os aspectos mais íntimos de seus processos criativos. Passamos por seis temas extremamente caros à vida pública e particular do cantor e compositor: a política, a literatura, a fama, as polêmicas, a censura (assim como a autocensura) e o futebol. O autor reúne depoimentos, entrevistas e uma extensa pesquisa bibliográfica para apresentar ao leitor o retrato múltiplo de um dos maiores artistas vivos da cultura popular brasileira.
Na orelha deste livro, Maria Ribeiro assim caracteriza o trabalho narrativo de Tom Cardoso: “Eu amo as biografias do Tom. Por causa dele, me apaixonei pelo Tarso de Castro, virei torcedora retroativa do Sócrates, e coloquei a capa da Nara ao lado da foto do meu pai. Isso sem falar no Caetano, que tenho a sorte de amar em vida. Os brasileiros do Tom são uma espécie de bandeira ideal – e um jeito espertíssimo de conhecer nossa história.”
Editora Record; 1ª edição (6 maio 2024)
Idioma Português
Capa comum 280 páginas
ISBN-10 850192122X
ARTIGO
Livro de Tom Cardoso perfila um Chico Buarque pouco conhecido
Tom Cardoso retrata Chico Buarque em livro que explora aspectos como fama, censura, política e literatura. Publicação celebra os 80 anos do compositor
Quando Tom Cardoso começou a escrever Trocando em miúdos — Seis vezes Chico, esperava encontrar um personagem menos beligerante do que Caetano Veloso, sobre o qual escreveu livro no mesmo formato. Enganou-se. O Chico Buarque perfilado pelo jornalista em Trocando em miúdos compra brigas, se envolve em polêmicas, fala o que pensa e não contemporiza. É um Chico pescado no calor da hora das dezenas de entrevistas pesquisadas para o livro, pensado para comemorar os 80 anos do compositor, celebrados no próximo 19 de junho.
Como fez com o volume dedicado a Caetano para comemorar a mesma ocasião, Cardoso dividiu o livro em seis capítulos e evita chamá-lo de biografia. “A editora chama, mas não gosto desse rótulo, diria que é mais um ensaio jornalístico, não uma biografia tradicional contando toda a vida”, avisa. A política, a literatura, a fama, o futebol e a censura são os fios condutores da narrativa, que deixa de fora o compositor e evita entrar em análises musicais. “O Chico compositor é muito dissecado, então pego aspectos mais pessoais, mas tudo que está ali também está ligado ao processo de composição”, explica Cardoso.
O Chico político dá início ao livro. Apoiado em uma compilação de entrevistas concedidas pelo compositor ao longo de décadas, o autor investiga a presença da temática política na obra do artista para concluir, com certa surpresa, uma rejeição quando se trata das canções versadas em comentários referentes aos acontecimentos políticos de diferentes épocas. “A política só fez mal ao Chico artista”, garante o autor. “Ele mesmo diz que as canções com menos qualidade são as políticas e rechaça o rótulo de canção de protesto.” Segundo Cardoso, Chico Buarque resolveu compor canções políticas mais por obrigação do que por vontade. Para o compositor, artistas como ele, com grande projeção, teriam a obrigação de se posicionar politicamente porque são blindados. “Dificilmente alguém iria prendê-lo e torturá-lo sem grandes repercussões. As canções da época da ditadura, se fosse por escolha dele, ele nem teria feito. Ele acha que há outras superiores”, garante.
Um capítulo inteiro é dedicado às polêmicas nas quais Chico Buarque se envolveu ao longo da vida. A briga com Millôr Fernandes, por exemplo, resultou em um cusparada na cara do cartunista, um ato extremo para um Chico tido como “cuidadoso com as pessoas, flexível, de temperamento dócil”. Depois de sucessivas provocações, com ênfase naquelas com potencial de parar nos jornais e que tratavam o compositor como um letrista ruim, ele estourou. Outro incômodo era com Elis Regina, que liderou a marcha contra a guitarra elétrica, à qual Chico não aderiu. Ela ficou de fora da música Para todos, mas o compositor garante que foi por falta de espaço, e não por ressentimento, segundo o autor. A vaia de Gilberto Gil durante a Bienal do Samba, organizada pela Record em 1968, também está no capítulo. Barrados do festival, os tropicalistas ficaram irritados e protestaram. Mas, segundo Cardoso, a vaia de Gil, o baiano revelaria anos depois, não foi vaia e sim uma tentativa de calar o protesto enquanto Chico cantava o samba Bom tempo. “Até existir a explicação do Gil, Chico ficou muito chateado. Eles sempre foram amigos mas, nesse período de discussões acaloradas, eles andaram se estranhando”.
No capítulo Fama, surge o antiartista, assustado, no início, com a repercussão de A Banda e a transformação instantânea em celebridade. Em vários momentos o autor expressou, em entrevistas, o desconforto com o palco e confessou que queria mesmo era ser escritor. “O Chico era o antiartista, tem fobia de palco, chegou a ficar um tempão sem se apresentar, tinha que tomar lexotan”, conta Cardoso. Foi Nara Leão quem deu o empurrão para destravar o compositor de Apesar de você. Chico gostava mesmo era de devorar os livros da biblioteca do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil.
Mas, como o pai, que era professor universitário para poder pagar as contas, o compositor fez da música um meio para viabilizar a carreira de escritor. “É o que o Chico sempre quis fazer”, garante Cardoso, ao lembrar de entrevista ao jornal argentino Clarín na qual o compositor diz se considerar um escritor mais completo do que um músico. “Ele acha que é um escritor que está acima do compositor. Não concordo, ele é genial como compositor e é um bom escritor, mas não no mesmo nível.”
Algumas entrevistas — especialmente com Ana de Holanda, irmã de Chico, Silvia Buarque, filha do compositor e músicos com os quais trabalhou — ajudaram a orientar a pesquisa do livro, mas o grosso, Tom Cardoso buscou em entrevistas de arquivo. “Não tive a preocupação de entrevistar o Chico. Ele é a pessoa menos interessante para falar dele mesmo. Acho muito mais interessante resgatar o Chico de jornais que nem existem mais e que se tornaram entrevistas inéditas porque, se você procurar no Google, não acha”, diz o autor, que encontrou parte do material na Biblioteca Nacional. “Isso é mais rico do que 40 minutos numa sala e ele falando de forma mais protocolar.”
CBN Noite Total – Entrevista
Autor fala sobre o livro ‘Trocando em miúdos: Seis Vezes Chico’
No CBN Noite Total, Tania Morales conversa com o autor Tom Cardoso sobre a obra.
Ver no link:
Chico Buarque em 80 canções
Em junho de 2024, Chico Buarque chega aos 80 anos com uma obra que é um verdadeiro monumento da cultura brasileira. Embora tenha atuado em diversos gêneros literatura, teatro, cinema , foi como cancionista que primeiramente se destacou e produziu de maneira mais prolífica, sendo suas canções seu maior legado para as artes nacionais. Celebrando as oito décadas de vida de Chico, o jornalista André Simões analisa 80 canções do compositor, traçando um painel representativo de toda a sua carreira.
De “Pedro pedreiro” (1965) a “Que tal um samba?” (2022), cada um dos breves capítulos mantém a ideia central de que uma canção não pode ser satisfatoriamente entendida e avaliada quando se trata isoladamente de música ou letra. As análises consideram não apenas a interação lírico-musical, mas também elementos como arranjo, interpretação, contexto histórico e recepção, entre outros. Repassando a carreira de Chico, também se mostra parte relevante da história do Brasil nos últimos 60 anos.
O autor trata as canções com o respeito que merecem, produzindo um estudo com rigor e profundidade, sem abrir mão de uma linguagem acessível, com sabor de crônica. Não se precisa de muita reflexão para perceber as canções de Chico como belas; ao entender-se por que há tanta beleza nelas, porém, a experiência de audição se torna mais rica e prazerosa: é como se velhos conhecidos de repente pudessem ser vistos sob nova luz.
O volume inclui ainda vasta iconografia dos álbuns e a discografia completa do artista.
Contracapa
Em 2006, por ocasião do lançamento do álbum Carioca , Chico Buarque concedeu uma entrevista à Folha de S. Paulo , onde eu trabalhava. A certa altura da conversa, comentei que ele transmitia a sensação de que gostaria de ver seu trabalho mais bem compreendido. Veio então a resposta: “Sei que é difícil falar do disco. Até para mim é difícil. Em jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É compreensível que seja assim a letra vai impressa, o crítico destaca este ou aquele trecho. Funciona assim. Eu cada vez mais dou importância à música e tenho vontade de dizer: ‘Olha, só fiz essa letra porque essa música pedia. Isso não é poesia, é canção’. Enfim, fico um pouquinho chateado com essas coisas, mas sei que é difícil”.
O livro que o leitor tem em mãos leva a sério o desabafo de Chico feito quase 20 anos atrás e encara o desafio. Já no prefácio, André Simões diz que “para analisar uma canção, requer-se a utilização de critérios próprios e adequados. A indissociabilidade entre música e letra é apenas o mais básico deles”. Depois de enumerar outros elementos que devem ser pesados arranjo, interpretação, performance etc., ele conclui que a canção é “um objeto de estudo fortemente interdisciplinar”.
É com essa disposição que o autor se debruça sobre 80 canções de Chico Buarque, dispostas ao longo de quase seis décadas de criação. O livro abre com “Pedro pedreiro”, de 1965, e se encerra com “Que tal um samba?”, de 2022. Mas, antes de falar sobre a setlist , vale a pena insistir mais um pouco na caixa de ferramentas que o autor mobiliza.
Arpejo, cromatismo, harmonia, intervalo dissonante, melodia, paronomásia, redondilha menor, síncope, tessitura, trítono esses e outros conceitos, mais ou menos cabeludos, constam do glossário que antecede a leitura das canções. Sem ele muita coisa se perde na leitura. A formação híbrida do autor Simões é um jornalista que estudou música e literatura faz com que ele transite entre análise formal, contextualização histórica e comentários circunstanciais, iluminando de vários ângulos cada canção. A ênfase pode cair sobre um ou outro aspecto, sem que a análise seja engessada numa fórmula, mas com a preocupação constante de não baratear a complexidade de cada obra. Para quem é leigo em música, meu caso, não é por vezes uma leitura fácil, mas o esforço quase sempre é recompensado pela descoberta de aspectos não evidentes de canções que eram nossas velhas conhecidas desde sempre.
Ao eleger as 80 canções do livro, Simões não se preocupou em selecionar as melhores ou os maiores sucessos. Obrigou-se apenas a contemplar o conjunto da trajetória de Chico, pinçando pelo menos uma canção de cada álbum solo do artista. Clássicos como “Construção”, “O que será” e “Beatriz” dividem as atenções com músicas menos consagradas, como “Embarcação”, parceria com Francis Hime, “A ostra e o vento” e “Tua cantiga”, esta última com Cristovão Bastos.
Chico Buarque em 80 canções é um livro exigente, que pode ser lido em qualquer ordem, de acordo a preferência musical ou a curiosidade de cada um. Mas é sobretudo um livro para ser ouvido ? e o autor sugere uma gravação específica de cada canção, que pode ser acessada pelo QR Code nas páginas iniciais da obra.
Ao concluir a leitura, me lembrei do que Carlos Drummond de Andrade escreveu a respeito de Pelé: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Chico nunca se preocupou em contar seriamente o número de canções que já compôs. Ele estima que seja algo em torno de seiscentas, um pouco menos, entre originais e versões. Não é o que importa. O difícil, o extraordinário, não é fazer 600 canções, como Chico Buarque. É fazer uma canção como Chico Buarque.
Fernando de Barros e Silva
Editora Editora 34; 1ª edição (10 junho 2024)
Idioma Português
Capa comum 368 páginas
ISBN-10 6555251875
ARTIGO
CHICO BUARQUE 80 ANOS – Livro traz análises, histórias e opiniões sobre 80 músicas do compositor aniversariante
Estendida em maio com a edição de Trocando em miúdos – Seis vezes Chico, livro de Tom Cardoso, a bibliografia sobre Chico Buarque ganha dois títulos neste mês de junho de 2024 por conta do 80º aniversário do artista carioca, a ser celebrado em 19 de junho.
Um é O que não tem censura – nem nunca terá: Chico Buarque e a repressão artística durante a ditadura militar, livro em que o jornalista Márcio Pinheiro historia a luta do artista contra o autoritarismo e a censura decorrentes do golpe militar deflagrado em 1964 e arrochado em 1968.
O outro, Chico Buarque em 80 canções – escrito por André Simões e publicado pela editora 34 com capa que estampa foto do artista em 1984 diante das lentes de Cafi (1950 – 2019) – é o assunto do segundo texto da série de posts do Blog do Mauro Ferreira sobre os 80 anos de Chico Buarque.
Como o título já explicita, o autor aborda a trajetória de Chico Buarque através da exposição de histórias e das gêneses de 80 músicas do compositor. O lançamento segue a linha do apurado Chico Buarque – Histórias de canções, livro editado por Wagner Homem em 2009.
A seleção de Simões vai de Pedro Pedreiro (1965), samba que marcou a estreia de Chico no mercado fonográfico com single editado pela gravadora RGE em 1965, até Que tal um samba? (2022), música lançada há dois anos em single que anunciou o show homônimo com o qual Chico percorreu o Brasil entre 2022 e 2023.
Após um desanimador texto de apresentação em que Simões ecoa e demole críticas dos detratores do artista, o livro traz… (LEIA COMPLETO)
O que Não tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar
“Durante anos, o Brasil viveu dentro de uma jaula do medo. […] O [período] mais recente pode ser resumido nas pouco mais de duas décadas que vão do começo de 1964 a meados de 1985 e que foi marcado por uma forte repressão.
Chico Buarque foi o maior símbolo desta perseguição cultural e política.
Quando a ditadura se declarou vitoriosa, ele não havia completado vinte anos. Quando o AI-5 foi decretado, Chico recém fizera 24 e era um veterano, com seu nome já inscrito na história da MPB […]. E já era visado pela Censura.
A partir de então, Chico não teve descanso. Foi perseguido, censurado, vetado, exilado, cortado e até, de forma temporária, calado. […]
Nunca alguém havia recebido uma marcação tão forte e injusta na cultura brasileira. Em determinado momento, […] três de cada quatro composições que ele produzia eram censuradas, tornando impossível a montagem de um repertório mínimo para um show ou um disco. Em última análise, Chico atravessou boa parte dos anos 70 proibido de criar.”
O gênio censurado
A ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985 coincidiu com a fase inicial da carreira de Chico Buarque (1944-), um dos maiores compositores da história da música brasileira. Foi em 1966 que o jovem estudante de arquitetura lançou “A banda”, seu primeiro grande sucesso. Nesse mesmo ano, “Tamandaré”, outra composição sua, foi proibida pelo Serviço de Censura, por ofender o almirante Tamandaré, o patrono da Marinha. Era o primeiro encontro de Chico com a Censura – o primeiro de muitos.
No ano seguinte, seria a vez de Roda viva (peça de sua autoria dirigida por José Celso Martinez Corrêa) ser alvo dos censores. Em dezembro de 1968 era baixado o Ato Institucional no 5, que suspendia todas as garantias constitucionais e dava início aos “anos de chumbo”. A partir daí, os artistas brasileiros não teriam mais paz. Para Chico, veio o autoexílio na Itália, a atividade de correspondente informal do contracultural O Pasquim e a criação de músicas antológicas, sob o tacão da Censura.
Foram dezenas de composições; algumas proibidas de imediato, e outras – como “Apesar de você” (1970) – que passaram inicialmente despercebidas pelo radar dos censores (não muito versados em sutilezas). Chico, articulado e bem-humorado, defendia-se concedendo inúmeras entrevistas. Resultado: tornou-se a face mais expressiva da resistência democrática. Algumas de suas criações, como “Cálice” (cale-se?), com Gilberto Gil, se tornaram hinos de oposição ao regime militar. Talvez nenhum outro artista tenha sido tão sistematicamente perseguido como Chico. Isso durou até o álbum Francisco, lançado em 1987 – quando se preparava a Constituição Cidadã, que, promulgada em 1988, passou a garantir a liberdade de criação artística.
Este livro traz um relato da relação conflituosa entre um dos artistas mais geniais já produzido pelo Brasil e a Censura oficial do regime militar. Ao mesmo tempo, trata-se de um magistral resgate da perseguição e da repressão artística no mais recente período em que todas as liberdades foram suspensas em nosso país. Um deleite para fãs e não fãs; para os que viveram durante a repressão militar e para as novas gerações que pouco ou nada sabem sobre o que é viver e criar sob o autoritarismo.
Editora L± 1ª edição – Edição convencional (29 maio 2024)
Idioma Português
Capa comum 224 páginas
ISBN-10 6556664812
ARTIGO
O QUE NÃO TEM CENSURA NEM NUNCA TERÁ – O DUELO DE CHICO BUARQUE COM A REPRESSÃO POLÍTICA
Censura rima com ditadura – e não por acaso. O primeiro departamento de Censura do país foi inaugurado em 1934, pelo Estado Novo de caráter fascista, do ditador Getúlio Vargas. Era o famigerado DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) como ficaria mais conhecido, após algumas mudanças de siglas. Entre outros absurdos, perseguia-se sambistas que pregavam a malandragem ao invés do trabalho. O que fez os compositores malandros Wilson Baptista e Ataulfo Alves botarem nos trilhos um certo regenerador “Bonde São Januário”. O que “leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”. Em cartaz no Cassino da Urca, a dupla caipira humorística Alvarenga e Ranchinho caricaturava o ditador e ia lustrar banco de espera das delegacias. Até que o populista Getúlio percebeu que era mais lucrativo ter críticos simpáticos. Os recebeu no Palácio e os liberou das detenções noturnas. Outros arreganhos posteriores da censura importunaram da ingênua libidinagem de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, propagada por Jorge Veiga no carnaval de 1947, (“Que me importa que a mula manque/ o que eu quero é rosetar”) ao oportunista “Menestrel Maldito” Juca Chaves que, entre afagos e farpas, entronizou Juscelino Kubitschek, como o “Presidente bossa nova”.
Mas a partir do golpe militar de 1964, o jogo passou de amistoso a bruto. Chico Buarque levou a primeira canelada ainda aos 22 anos, com sua satírica “Tamandaré”, onde debochava do fato do almirante de tantas glórias na Marinha ilustrar a nota de um cruzeiro, a de menor valor na época. Por conta do desrespeito ao insigne militar, a música, incluída num show com a atriz Odete Lara e o conjunto MPB4, foi censurada, mas Chico se defendeu nos jornais. “A música não ofende a ninguém, porque ofensivo ao Almirante é sua efígie na insignificante nota de um cruzeiro”. A saga do compositor entre 1966 e 1987 está decantada em minúcias e densa pesquisa no livro “O que não tem censura nem nunca terá – Chico Buarque a repressão artística durante a ditadura militar” (Editora L&PM), do jornalista gaúcho Márcio Pinheiro, autor entre outros do emblemático “Rato de redação – Sig e a história do Pasquim” (Matrix 2022). O hebdomadário humorístico/politico carioca, aliás, foi uma das fontes vasculhadas pelo autor, junto com coleções de o Globo, Jornal do Brasil e toda a obra do artista, que desde a década de 1980 afastou-se da imprensa e não concede entrevistas.
No livro, Márcio faz desfilar lado a lado a história do compositor – que se tornaria unanimidade nacional a partir do estouro da álacre marchinha “A banda” – e a resenha política do país, com o recrudescimento da repressão e da censura. A proibição da montagem da peça “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams, estrelada pela atriz Marta Fernanda (filha da poeta Cecília Meirelles), em fevereiro de 1968, redundou num movimento da classe artística contra a censura, incluindo Chico Buarque entre seus participantes. Ele logo seria mais um alvo dos catões por sua peça “Roda viva” do mesmo ano, onde fustigava a indústria de moer carne do show bizz, de que ele logo tomou consciência após os primeiros sucessos. A música título foi uma das principais protagonistas do Festival da Record de 1967, ao lado de “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinan, “Alegria alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no parque”, de Gilberto Gil. Mas a peça, encenada por José Celso Martinez Correa, além da censura teve atores atacados pelos paramilitares do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Era ao mesmo tempo a detonação definitiva do perfil inicial do compositor. “Eu nunca disse a ninguém que era bonzinho, eles é que criaram essa imagem”, declarou em entrevista.
Com a oficialização do fim das liberdades através do AI-5 (Ato Institucional nº 5) do regime militar, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e tiveram que partir para o exílio. Também para fora do país embarcou Geraldo Vandré, autor do hino de protesto “Caminhando” ou “Pra não dizer que não falei das flores” (“há soldados armados amados ou não/ todos eles perdidos de armas na mão/ no quartel lhes ensinam antigas lições/ de morrer pela pátria e viver sem razão”), derrotado pela canção do exílio “Sabiá”, pelos intensamente vaiados Tom Jobim e Chico Buarque. O impedimento da vitória de Vandré foi ordem expressa do alto Comando do i Exército, segundo relatou em sua biografia Walter Clark, então diretor da TV Globo, palco do FIC (Festival Internacional da Canção), onde ocorreu a disputa, em 1968. Só este episódio já dava uma ideia de como a cultura incomodava a até a cúpula dos tiranos.
Embora sem uma perseguição formal, Chico Buarque também auto exilou-se. Escolheu a Itália, onde havia morado na infância e conhecia a língua. Conviveu com Elza Soares e o jogador Garrincha. Tentou empreender uma carreira que desaguou numa turnê com a diva americana do jazz cabaré, Josephine Baker, já no ocaso. Era imperioso voltar e enfrentar a ditadura. Foi o que Chico fez, desembarcando no aeroporto do Rio, após 14 meses, recepcionado por uma verdadeira comitiva formada por Paulinho da Viola, Trio Mocotó, MPB4, Altamiro Carrilho, e a atriz Betty Faria que desfraldou uma bandeira do Fluminense, time do homenageado, enquanto era executada “A banda”. Chico estava seguindo os conselhos do amigo e parceiro Vinicius de Moraes: “Quando voltar, volte fazendo barulho”.
Mais que barulho foi o estrondo provocado pelo espetacular samba “Apesar de você” (“você vai se dar mal/ eticetera e tal”), lançado logo em seguida, em 1970, um petardo contra o governo Médici que os censores só descobriram não ser uma desavença de namorados após o disco ter vendido 120 mil cópias. Oficiais da polícia invadiram a sede da gravadora Philips, no Rio, e destruíram o estoque restante do disco. Houve punições na censura e o órgão elegeu Buarque seu inimigo número 1. Ele seria o alvo preferido, marcado de forma implacável tendo muitas de suas letras rejeitadas pelas mais absurdas justificativas.
Em 1973, a peça “Calabar, o elogio da traição”, parceria com o cineasta moçambicano Ruy Guerra teve a encenação proibida (e até o título vetado, daí o disco ficou “Chico canta”), mas a trilha infiltrou-se no repertório de Chico e outros intérpretes, incluindo o antológico show/disco realizado em parceria com Caetano Veloso na Bahia. Entre elas, “Barbara”, uma cena homo afetiva feminina, da qual a sonoplastia foi obrigada a abafar algumas palavras. “Cálice”, parceria de Gilberto Gil e Chico, por seu refrão título anfíbio, teve a execução pateticamente impedida no show “Phono 73”, numa orquestração paranoica de microfones desligados.
Um novo e espetacular drible do craque do time de futebol Polytheama que fundou, criou sede e dirige, veio a seguir. Com o repertório quase todo vetado, ele teve ideia de lançar o álbum “Sinal fechado”, só com composições alheias (a começar para faixa título, de Paulinho da Viola). Exceto uma certa “Acorda amor” (marcado pelo refrão: “chame o ladrão!”) dos compositores Julinho da Adelaide e Leonel Paiva. Escudada nestes nomes verossímeis (com direito a biografias fictícias na imprensa) a música passou, mas era do próprio Chico. O que provocou novas punições no órgão censório (que Márcio biografa com maestria, junto com o entorno musical da época) e uma passagem do compositor para outro patamar persecutório. A partir do episódio, a Censura passou a exigir cópia do RG e CPF dos autores, impossibilitando novas pegadinhas.
Num tour de force de alta densidade, Márcio acompanha também as trajetórias de outros artistas próximos e as várias facetas do biografado, autor ainda de trilhas de cinema como “Quando o carnaval chegar”. E o Chico teatrólogo (mais uma peça com sucessos musicais, “Gota d’água”, parceria com Paulo Pontes) e escritor (de “Fazenda modelo” em diante) enquanto narra os embates do autor com a Censura, o mote do livro. “Mulheres de Atenas”, em parceria com Augusto Boal, do disco “Meus caros amigos”, foi mais uma alvejada, embora “O que será”, do mesmo repertório, que forneceu o título do livro- “o que não tem censura nem nunca terá”, espantosamente passou. Não apenas as obras, mas o próprio artista era visado pela repressão. Em fevereiro de 1978, Chico foi interrogado de maneira oficial pelo Departamento de Polícia Política e Social, sendo questionado por sua ida a Portugal e os possíveis contatos que manteve com exilados brasileiros naquele país. Os interrogadores ainda queriam saber da participação de Chico no concurso literário Casa de Las Américas, em Cuba. Até sua bagagem de discos e livros foi vasculhada pela polícia. Ao mesmo tempo, seguia o baile macabro na Censura.
No mesmo ano de 78, uma peça sem nome e vertida do inglês foi inteiramente vetada. Era a transcriação que Chico pretendia fazer do texto do britânico John Gay, de 1728, posteriormente adaptado por Bertold Brecht, sob o título de “A ópera dos três vinténs”. O veto foi baseado numa lei de 1946, que tratava do “atentado ao decoro público capaz de provocar incitação contra o regime”. Mas a peça sob o nome de “Opera do malandro” acabou liberada e montada com grande sucesso (ainda virou filme) também extensivo à trilha musical, de clássicos como “Pedaço de mim”, “Homenagem ao malandro”, “O meu amor” e principalmente “Geni e o Zepelim”. Baseada na personagem Jenny, da “Ópera dos três vinténs” que sonha com a chegada de um navio pirata com 50 canhões que vai destruir toda a cidade e liberta-la, a Geni da transposição de Chico é uma prostituta execrada na cidade até que o despertar da cobiça de um poderoso homem que, no comando de um zepelim, ameaçava destruir a cidade e aniquilar sua população. Ao tomarem conhecimento do interesse do comandante, muitos habitantes (o prefeito, o bispo, o banqueiro…) que antes desprezavam Geni passaram a bajulá-la. A personagem sucumbe aos apelos dos conterrâneos e se entrega ao forasteiro, a cidade é salva, mas, assim que o local volta à normalidade, Geni é mais uma vez escorraçada e humilhada.
Disseca Márcio: “Além da temática que explora o caráter falso-moralista e hipócrita de uma sociedade (qualquer sociedade), ‘Geni e o zepelim’ é ainda mais genial por ser uma longa reportagem construída em versos heptassílabos metrificados e rimados”. O problema é o final catártico do refrão “joga pedra na Geni/ joga bosta na Geni ou merda num segundo verso)/ ela é feita pra apanhar/ ela é boa de cuspir”. O então ministro da Justiça Petrônio Portela pediu providências, contra a liberação dos palavrões, mandou centralizar a censura em Brasilia (mais uma mudança na ação do órgão provocada por Chico) e proibiu a execução da música, embora o disco circulasse livremente.
Enquanto a ditadura desmoronava e várias de suas composições proibidas acabaram liberadas com anos de atraso, Chico foi despindo o papel de contestador oficial. “Acho muito mais útil a minha atuação fora da música, aproveitando a popularidade que a música me dá para me manifestar como cidadão”. Mas a chamada abertura “lenta, gradual e segura” ainda sofreria graves tropeços como o atentado ao show de 1º de maio de 1981, no Riocentro, organizado pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade) uma entidade presidida pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer. Mas ao invés de atingir o evento alvo, que congregava 30 mil pessoas, principalmente jovens, o tiro da extrema direita saiu literalmente pela culatra, com a morte de um dos militares que foram sabota-lo e gravíssimos ferimentos em seu comparsa.
No disco seguinte lançado por Chico, em “Angélica”, ele rememorava a história da estilista Zuzu Angel, que teve o filho torturado e morto pela ditadura, e cujo corpo foi atirado ao mar, como diz a pungente letra. A própria Zuzu, depois de muito protestar contra o crime, acabaria morta num acidente provocado em seu carro, na saída do Túnel Dois Irmãos (hoje Zuzu Angel), na estrada Lagoa-Barra, no Rio. A estilista havia deixado com Chico um documento em que pedia a divulgação pública caso algo lhe acontecesse. Chico divulgou o episódio na música que não menciona o nome da protagonista, mas fica claro para quem conhecia a história. “Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”.
Para não dizer que livrou-se inteiramente da censura Chico ainda teve podado um pueril “pentelho” de sua “Ciranda da bailarina” da bela trilha “Grande circo místico”, de 1983, em parceria com o ex-rival dos festivais Edu Lobo. Depois de envolver-se com a campanha das diretas e diversas candidaturas eleitorais, Chico finalmente compôs o hino que fechou a tampa daqueles tempos sombrios. Não por acaso, um samba enredo, o afirmativo, “Vai passar” escrito com o parceiro Francis Hime. Descreve Márcio: “Um Chico inspiradíssimo, com criações poéticas únicas – que outro compositor conseguiria encaixar um “paralelepípedo” numa canção popular? –, realizava em um único samba um acerto de contas com um tempo passado (“Página infeliz da nossa história/ Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações”). Meticuloso caçador de declarações surpreendentes do compositor, Márcio pescou uma com que encerro a resenha: “Eu tenho consciência de que a censura me deu várias páginas de jornal, de notícia, ao mesmo tempo que eu também dei muita notoriedade à censura. E me orgulho disso. Eu denunciei a censura”. (Tárik de Souza)