Apesar de irregular, “Bob Marley: One Love” transmite a visão de mundo e a energia radiante do músico jamaicano
Texto de João Paulo Barreto
Em dezembro de 1976, Bob Marley sobreviveu a uma tentativa de assassinato após anunciar um show gratuito, o “Smile Jamaica Concert”, que aconteceria durante o período eleitoral que iria definir o novo primeiro-ministro do país, processo este posto na berlinda da competição entre o Jamaican Labour Party (JLP), partido que tinha o suporte da CIA, e o People’s National Party (PNP), partido ligado à Cuba e à Rússia. Recuperado, o cantor acabou por se apresentar no concerto em uma demonstração pulsante de força e resistência, ao exibir as marcas deixadas em seu corpo pelas balas que não o mataram.
É neste recorte e de consequências físicas e psicológicas para o músico que se baseia o filme de Reinaldo Marcus Green, “Bob Marley: One Love” (2024). E na escolha desse recorte temporal específico da breve vida do músico, o longa traz uma unicidade e um direcionamento ao ritmo de seu roteiro que acaba por torná-lo mais ágil. No entanto, o aspecto episódico e superficial não deixa de incomodar.
Vale frisar que se trata de um filme que, dentro de seus concisos 104 minutos, não pretende retratar de maneira documental ou didática toda a trajetória do cantor desde seu nascimento na explorada colônia britânica da subdesenvolvida Jamaica, até sua precoce morte aos 36 anos, vítima de câncer. A proposta aqui de ilustrar o choque de seu protagonista diante da realidade que se apresentou a partir daquele violento e sanguinário ponto de virada, capta bem o turbilhão emocional pelo qual ele passava e, consequentemente, delineia o norte do filme, se não de forma ideal, uma vez que a obra falha ao não aprofundar os outros aspectos de vida e morte que se apresentaram a Bob anos depois, ao menos consegue, de maneira até competente em sua linha de construção da figura mítica central, transmitir ao seu público, seja ele o familiarizado ou não com aquela trajetória, a dimensão da grandeza daquele homem.
Assim, o acertado caminho escolhido pelo roteiro é o da utilização de tais conflitos internos a partir do momento do atentado que o levou a um autoexílio da Jamaica quando, dia depois do ocorrido, partiu para uma temporada em Londres. O reflexo desse período distante do calor de seu país natal se refletiu na criação da obra-prima “Exodus”, disco lançado em 1977 que traz as faixas “Three Little Birds”, “One Love”, “Waiting in Vain”, “Jamming” e a própria faixa-título, como um resultado criativo dos mais proveitosos para o modo como a saída da Jamaica refletiu no estado mental de Bob Marley como compositor.
Nessa mergulho do protagonista em sua introspecção após a experiência de quase morte, o roteiro escrito a quatro mãos, dentre elas a de Terence Winter, responsável pelo texto de “O Lobo de Wall Street” (2013), de Martin Scorsese, insere (ou ao menos pincela) as raízes religiosas de Marley dentro do rastafarianismo, seu contato com a literatura de Haile Selassie, o imperador etíope gênese da citada religião e a maneira como a mesma pavimentou o caminho e o modo de Bob enxergar o mundo a sua volta.
Mas, infelizmente, uma das falhas do roteiro nessa inserção dos aspectos religiosos da vida do músico está exatamente no modo superficial como a religião é explorada pela trama. É notório, por exemplo, que o melanoma que matou Bob Marley poderia ter sido facilmente evitado caso ele tivesse seguido as orientações médicas para amputação de parte do seu pé, cuja ferida no dedo havia infeccionado a partir do câncer de pele que surgiu ali. Na sua crença, porém, o ato de decepar parte do seu corpo, mesmo em um caso de emergência que poderia salvar sua vida, não era algo visto com naturalidade e aceitação. O filme, porém, opta por trazer a decisão do cantor calcada apenas em sua inércia para com aquela questão, algo que diminui bastante a sapiência pela qual a figura de Bob era conhecida. Possivelmente, o roteirista não quis ir de encontro aos preceitos do rastafarianismo, algo compreensível, mas que não deixa de prejudicar a carga dramática de sua história.
Mas ainda focando nos aspectos estruturais de sua história, “Bob Marley: One Love”, dentro de sua metragem até curta para uma obra que aborda a vida de uma figura tão mítica, consegue criar uma cadência de acontecimentos equilibrada em sua montagem. Isso porque, entre o recorte temporal escolhido nos poucos anos passados desde o atentado que abre o filme até o histórico concerto “One Love”, que o artista viria a realizar no retorno ao seu país natal, o longa mescla tal elipse com as lembranças da juventude do futuro ídolo, trazendo sua aproximação com a religião que lhe orientaria a vida, seus passos precoces na música, além do encontro inicial com Rita Marley, que se tornaria, além da esposa e mãe de seus filhos, parceira de palco como cantora de sua banda, The Wailers.
E é crucial citar aqui a força da interpretação de Lashana Lynch no papel. A atriz, que já havia demonstrado poder semelhante em cena ao compor o elenco de “A Mulher Rei” (2022), dá à sua composição de Rita Marley uma junção necessária de dureza e afeto diante do conflito interno pelo qual passa o Bob Marley interpretado com sorrisos cativantes, carisma latente e energia corporal por Kingsley Ben-Adir, que recria, com postura e voz, os marcantes trejeitos do músico jamaicano, transparecendo nos momentos de palco esse poder de liderar multidões. Ben-Adir, inclusive, teve sua voz mesclada a do ídolo jamaicano nos momentos musicais, o que torna as recriações de tais apresentações ainda mais impactantes para o público.
Assim, mesmo reconhecendo as limitações da obra em seu modo de apresentar a trajetória da vida de Marley, principalmente ao não aprofundar os aspectos de sua relação com o rastafarianismo, é difícil permanecer indiferente e cínico, como boa parte da “crítica especializada” vem se mantendo, diante da recriação dos momentos de encontro do leão jamaicano com o povo que o elegeu como próprio rei. A música de Robert Nesta Marley tem essa capacidade de nos transcender.