A SOCIEDADE DA NEVE
A verdadeira história de como dezesseis jovens conseguiram sobreviver durante 72 dias num dos ambientes mais inóspitos do planeta depois da queda do avião em que viajavam. A história foi adaptada para filme, disponível na Netflix e indicado ao Oscar 2024 nas categorias Melhor Maquiagem e Melhor Filme Internacional.
Em outubro de 1972, um avião fretado da Força Aérea do Uruguai que rumava para o Chile se choca contra uma montanha nos Andes. Das 45 pessoas a bordo – a maioria fazia parte de um time de rúgbi amador -, 29 sobrevivem ao impacto, mas apenas dezesseis serão resgatadas, depois de improváveis 72 dias.
Durante esse longuíssimo período, os sobreviventes ficam cercados por rocha e gelo, sem roupas apropriadas, sob temperaturas de até trinta graus negativos, abrigados no que restara da fuselagem depois da colisão. Famintos, lançam mão de um recurso extremo: alimentar-se dos corpos dos amigos mortos.
Dez dias depois do acidente, a primeira notícia que ouvem do mundo exterior por um radinho recém-consertado é que as buscas pelo avião foram abandonadas. Como se não bastasse, uma avalanche soterra a fuselagem partida. Os que conseguem sobreviver ficam enterrados vivos durante três dias. Sem outra alternativa, decidem sair de lá por si mesmos. Mas para isso será preciso escalar o paredão de gelo que os separa de um horizonte desconhecido – que pode ser a salvação ou a desesperança final.
Editora Companhia das Letras; 2ª edição (14 março 2023)
Idioma Português
Capa comum 416 páginas
ISBN-10 655921351X
‘É como estar em Marte’, diz autor de ‘A sociedade da neve’ sobre expedição ao local do acidente nos Andes
Uruguaio Pablo Vierci era amigo de dois passageiros do avião que caiu na Cordilheira e escreveu livro que inspirou filme indicado ao Oscar
Por Talita Duvanel
O jornalista uruguaio Pablo Vierci se deu conta da finitude da vida aos 22 anos, em 1972, quando um ídolo e amigo de escola morreu. Era Guido Magri, “boa pessoa, inteligente, muito forte física e mentalmente”, passageiro de um avião fretado da Força Aérea por um time de rúgbi, que decolou de Montevidéu com destino a Santiago do Chile e caiu na Cordilheira dos Andes. Ele estava na cauda da aeronave e morreu imediatamente com outras 15 pessoas.
Este mesmo episódio, no entanto, ensinou a Pablo que tudo tem dois lados. Nas tragédias podem, sim, acontecer milagres. Outro grande companheiro de colégio, Nando Parrado, foi um dos 16 sobreviventes, que aguentaram 72 dias num dos lugares mais inóspitos da Terra até serem resgatados.
A perda de um amigo e a sobrevivência do outro — e o fato de conhecer vários dos envolvidos no episódio, já que a maioria estudava no mesmo colégio — levaram Pablo a escrever o livro “A sociedade da neve” (Companhia das Letras), base para o filme homônimo. Depois de estrear nos cinemas, o longa-metragem ficou, nas três primeiras semanas de janeiro, no topo da lista de filmes em língua não inglesa mais assistidos da plataforma Netflix. Dirigido pelo cineasta espanhol J.A Bayona, a obra concorre a dois Oscars: melhor filme estrangeiro e melhor cabelo e maquiagem.
— Estava em casa aqui em Punta del Este, esperando o anúncio dos indicados só com minha mulher, que é brasileira, do Rio — diz Pablo ao GLOBO, por chamada de vídeo, falando em espanhol e ouvindo as perguntas em português. — Sabia que se ninguém me ligasse era porque não tínhamos sido indicados. Mas aí comecei a receber mensagens, e Bayona me fez uma ligação de vídeo. Tinha certeza de que íamos passar. Bayona sempre diz que sou muito otimista.
Poesia no caos
Diretor de “Impossível” (2012), sobre uma família de turistas presa na Tailândia durante a tsunami de 2004, J.A Bayona diz que se inspirou no livro de Pablo durante essa filmagem. E escreveu para o uruguaio ainda em 2011, dizendo que sua história também merecia uma reprodução, que transmitisse “o frio, a fome, e que se expressasse no idioma em que realmente se desenvolveu”. A carta, inclusive, foi reproduzida numa edição especial de “A sociedade da neve” publicada no ano passado (a versão original saiu em 2008). Pablo releu sua obra e passou a enxergá-la com outros olhos.
— Me dei conta com o tempo de que, sem querer, num livro de uma situação tão dramática, há mais poesia do que eu imaginava no momento em que escrevia — diz. — Enquanto trabalhava, sempre tive em mente os meus amigos, os que morreram e os que estão vivos. Pensava: “O que eles diriam para mim?” Escrevi em estado de graça.
Não foi, no entanto, nada fácil chegar a esse lugar — literalmente. Quando começou o projeto de escrita, sentiu a necessidade de visitar o exato local onde o avião caiu. Em março de 2006, então, juntou-se aos sobreviventes Adolfo Strauch, Moncho Sabella, Gustavo Zerbino e Roberto Canessa e escalou os paredões.
— É um nada, é como estar em Marte — diz ele. — Foi uma experiência imprescindível para escrever, porém, difícil e perigosa. Passei mal, respirei muito mal.
Alguns desses momentos da expedição estão descritos na obra, que alterna os capítulos com depoimentos impactantes em primeira pessoa de cada um dos homens que viveu na montanha com uma narração factual do que aconteceu. Estão lá, em detalhes, toda a angústia dos conflitos éticos, religiosos e morais da principal estratégia de sobrevivência dos jovens: se alimentar dos corpos dos mortos.
— No pior lugar imaginável, abandonado do mundo, aconteceu o maior exemplo de generosidade que eu conheço. Houve um pacto de entrega mútua ao ponto de se dizer: “Estou pronto para entregar meu corpo para que você continue vivendo do outro lado da cordilheira, quando voltar para casa.”
A combinação de altruísmo, solidariedade e espírito de equipe — em que não houve heróis ou protagonistas — é, na opinião de Pablo, o que faz o interesse pela história perdurar por décadas:
— Quando você pensa numa situação adversa, logo vem à cabeça “Mad Max”, ficções apocalípticas, com o homem como lobo do homem. Mas, nos Andes, aconteceu o contrário. Era um lugar onde acreditávamos que podia haver egoísmo, “salve-se quem puder”, e não teve. A sociedade da neve é uma história contraintuitiva, rompe todos os estereótipos.
Sem famosos
“A sociedade da neve”, de Pablo Vierci, pode ter sido o livro que chamou a atenção do cineasta J.A Bayona, mas está longe de ser o único sobre o acidente. O próprio jornalista uruguaio escreveu com o sobrevivente Roberto Canessa as memórias “Tenía que sobrevivir” (“Tive que sobreviver”, sem edição em português), sobre o que se passou naqueles 72 dias. Vários outros daquele grupo também assinam livros — apesar de não terem se furtado a conversar com Pablo. Um dos mais famosos, esgotado em português, é “Viven”, publicado em 1974, pelo jornalista inglês Piers Paul Read. Este serviu de base para o filme “Vivos” (1993), estrelado por Ethan Hawke.
—A diferença do meu para os outros é o tempo. “Viven”, uma grande obra, é publicado muito perto do acidente — explica Pablo. — Os meninos tinham acabado de chegar quando foram entrevistados. Falo com eles 34 anos depois. Já haviam amadurecido.
Todos próximos, os sobreviventes não tiveram acesso ao roteiro do filme e confiaram na adaptação cinematográfica, já que Pablo entrou como produtor associado do longa. Ele esteve na maior parte das gravações, que aconteceram na Europa e na América do Sul. Os bastidores estão no documentário “A Sociedade da neve: quem fomos na montanha”, que estreou na Netflix na semana passada.
—Acompanhei toda a filmagem, menos nos Andes. Bayona me pediu que fosse, porque eu era uma espécie de guardião da história, mas respondi que preferia não ir. Disse para ele: “Se for absolutamente imprescindível, vou. Mas se não for, não vou.” E não fui — disse o jornalista, que preferiu não se arriscar fisicamente.
Conseguir financiamento para o filme foi outro desafio, conta Pablo.
— Quando começamos a trabalhar em 2016, nos reuníamos com produtores europeus, contávamos a história, dizíamos que era em espanhol, e eles falavam que havia um teto de orçamento — relembra Pablo, elencando a língua espanhola como um grande entrave visto pela indústria. — Não podiam passar daquele teto senão seria um suicídio. Demorou muito para a Netflix aparecer.
O fato de não haver grandes estrelas no elenco também era um obstáculo. A maioria dos rapazes é jovem e da Argentina, sem muita projeção. Alguns deles, inclusive, nunca haviam trabalhado com cinema.
— Queríamos um filme sem atores conhecidos porque tínhamos que montar uma sociedade de neve homogênea — diz o jornalista. —E se você colocasse ali um bastião do cinema universal, tipo um Tom Holland, que é amigo do Bayona… Por isso demorou tanto para conseguirmos financiamento. O filme era muito, muito complexo, e o projeto esteve prestes a desmoronar diversas vezes.