O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo: Ensaios
Embora Djaimilia Pereira de Almeida tenha deixado registrado que falava por si mesma, desobrigando-se do peso de ter que, por sua voz, representar milhões de mulheres negras em espaços de interação com não negros, é impossível não encontrar conexão com sua narrativa como mulher negra escritora que sou. Ou como Djaimilia nos propõe: como escritora que sou. E tão somente.
O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo reúne dois ensaios e uma conversa, sendo essa última fruto da interação entre Djaimilia Pereira de Almeida e Stephanie Borges, poeta e tradutora brasileira, em evento promovido pelo Instituto Moreira Salles.
A leitura desse livro de Djaimilia foi contraditória. Eu o li em uma sentada, durante a viagem da livraria até minha casa, depois de um dia tão exaustivo que jamais imaginaria que uma autora pudesse reunir as condições para prender minha atenção e garantir minha concentração. A leitura foi como um ato violento de devoração. E, logo depois de lê-la, fui arrebatada pelo silêncio. O texto me atravessou de forma felina e ferina. Algo assim, desse modo de reverberação por horas e dias, só havia acontecido com Audre Lorde, Paulo Lins e Virginia Woolf. E com Paul Preciado.
Afinal, existe essa coisa-objeto de “escritora negra”? E, se existe, para que e para quem serve? Coisa e objeto não estão nessas linhas por acaso. Ao ler as palavras de Djaimilia sobre identidade, privilégios, autoconsciência, estabeleci diálogos e conexões com o já lido em bell hooks, Audre Lorde, Virginia Woolf, Gloria Anzaldúa, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e tantas outras autoras e autores que não darei conta de citá-los.
As conexões já começaram com sua afirmativa de que ter nascido em 1982 foi um acontecimento privilegiado. Bem, essa que vos escreve nasceu em 1982. Teria sido possível à minha mãe ser escritora? Teria sido possível à minha avó? A impossibilidade e demarcação do tempo, do que significa o hoje e o ontem por Djaimilia, nos alivia e nos assombra. Não foi difícil pensar em minha tia-avó, que sonhou ser atriz de teatro e teve seus sonhos despedaçados porque precisou trabalhar desde menina para ajudar nas despesas da casa e porque, no período de sua mocidade, ser atriz era considerado “coisa de puta”. Quem me apresentou a riqueza de Solano Trindade, o interesse pela leitura e pela cultura em geral foi ela. Talvez porque projetasse em mim tudo que o seu tempo a impediu de ser.
Só discordo de Djaimilia quanto ao privilégio do tempo porque acredito que, em seu próprio texto, é desenvolvida a chave de que a mulher negra escritora, objeto e coisa do nosso tempo, seja uma vantagem que herdamos em relação à luta e às aspirações de nossas ancestrais, mas também um assombramento, dado o fetichismo que nos consome pelo mercado editorial. A própria autora nos aponta que o confinamento ao tema do racismo em nossos escritos, ou ao que falamos, são esse caminho de assombração e certa maldição para se carregar pela audácia de nos afirmarmos escritoras sendo mulheres negras. Nesse sentido, ainda seguimos desprovidas de poder, o que, por sua vez, não nos garante o status de privilegiadas.
Mas o fato é que há autoconsciência e — para aludir a Patricia Hill Collins — autodefinição de que somos pessoas negras que escrevem e que produzem literatura tanto quanto brancos que escrevem e produzem suas páginas literárias. Teríamos que lançar mão, portanto, da dialética para lidar com essa situação que, se por um lado busca nos confinar, carrega o sentido de uma reafirmação pela palavra. Sim, somos pessoas negras que escrevem e nossos escritos carregam um conjunto de vivências e experiências que se interconectam de algum modo, nessa experiência de não lugar e reinvenção produzidos pela diáspora forçada.
Margens
Esse é o caminho pelo qual Djaimilia nos conduz para seu último ensaio sobre o direito à interioridade de pessoas negras, em que se posiciona e reafirma seu compromisso como escritora que fala de “coisas de negro”, de um “lugar de negro”, com a mesma pergunta: “As vidas das margens não são do interesse central da humanidade?”. As vidas das margens importam?
O compromisso assumido no último ensaio remete a um brilhante texto de bell hooks, ainda não traduzido ao português, em que a teórica norte-americana fala de um compromisso que se assume em relação à negritude em diáspora reafirmando a coletividade relacionada à própria voz. Ou seja, o sentimento e os sentidos são reafirmações de humanidade. E não seria essa nossa principal reivindicação? Humanidade. Com isso, as humanidades e as literaturas se dimensionam para a reconstrução de nossas interioridades, de nos darmos “uma mente que sempre esteve aqui”.
O ponto, aqui, é que a escrita é uma necessidade dilacerante para Djaimilia e para mim. E o que posso fazer é reafirmar essa posição e contrariar um público ávido pela reafirmação do óbvio. Sou uma escritora negra. Sou uma pessoa negra que escreve para organizar minha raiva e para não morrer sufocada por ela.