Aquarius

Estava devendo há meses a resenha de “Aquarius”, filme que me impactou bastante quando assisti. Mas acabei deixando pra depois e somente agora, tendo assistido novamente ao filme agora em DVD, saldo essa dívida. Uma observação de cara: o filme não perde a força na tela pequena, portanto não se impeça de assisti-lo por nenhum motivo.

É importante ressaltar que a luta da personagem Clara não é simplesmente por seu apartamento, e isso fica claro desde as primeiras sequências da fase de Sonia Braga como a protagonista, mas também quando o conhecemos logo no início da trama — há uma bela história familiar ali, afetividade sobretudo, mas uma força de resistência humana bem clara nos discursos de aniversário. O excelente roteiro belamente dirigido por Kleber Mendonça Filho permite que possam ser feitas várias analogias ao cotidiano de cada espectador desde esta primeira fase, mas a força de Clara mora sobretudo na vontade de ser feliz defendendo seus pensamentos e desejos. Sua posterior batalha não é, portanto, uma questão imobiliária ou geográfica, mas o direito de manter direitos, de não se adequar a um “novo padrão” simplesmente porque este foi “criado” (quando? como? por quem? para quê?), de não simplesmente ter que aceitar as expectativas dos outros (filhos, inclusive) como suas.

Toda a (necessária) polêmica posterior ao lançamento do filme poderia nos levar a acreditar que “Aquarius” seria um filme panfletário, palavrinha que muitas vezes remete erroneamente a balbúrdia, a “grita” por isso ou aquilo, mas “Aquarius” é sutil, silencioso em um balançar de rede… eu diria melodioso, inclusive pela trilha sonora incrível, mas especialmente pela fluidez pela qual o filme navega. As ondas fortes estão sim ali, as ondas reais as quais Clara desafia, e as tantas metafóricas. Mas é preciso perceber “Aquarius” como um filme bastante “pé no chão” sem tampouco perder a doçura e a delicadeza.

E o filme mostra ao espectador que nem tudo que se destaca no cinema nacional precisa ser óbvio e escrachado, ou quiçá “reducionista” à realidade cruel dos noticiários. Nas cenas iniciais, do passeio de carro na praia na primeira fase de Clara, pode parecer que será mostrado ali algo transgressor ou “errado”, mas é apenas a alegria de amigos e família; o mesmo acontece no exercício de Risoterapia, onde rir é se soltar, e estar jogado na areia de uma praia não é errado ou arriscado, apenas libertador e, por que não, natural. Em outros momentos, o que pode parecer inocente ou banal no fundo tem mensagem subliminar transgressora: Kleber Mendonça Filho foi brilhante, especialmente nas escolhas do “como” e não simplesmente do “o quê”, deixando o óbvio de lado sem, contudo, criar um filme “difícil”, hérmetico: ao contrário deste meu texto, é um filme sem aspas, é direto e franco, de fácil leitura apesar de muitas nuances.

Na primeira meia hora, parece que conheceremos muito mais a tia de Clara do que a própria protagonista, mas na verdade ali está a essência da Clara madura já previamente apresentada: aquela “senhorinha” que completa 70 anos e que, para sobrinhos e netos, pode ser enxergada apenas com candura, na verdade mantém dentro de si a chama da juventude calcada em suas ricas experiências, apresentadas seja por suas lembranças sexuais, seja no discurso sobre seu companheiro de tantos anos. O filme também trata, portanto, desse viés quase maligno de transformar o envelhecimento em uma sala cuja porta tenha que ser fechada para todo o resto. Clara não se transformou em (sua) tia, mas aprendeu muito com ela. E por que não sair para beber e dançar com as amigas da mesma idade, por que não ceder à paquera, ter vida sexual ativa, ter escolhas, ter desejos, sem pensar em morte se aproximando mas numa vida intensa pela frente? Um mundo sem crochê, com música e cabelos soltos compridos… integral e íntegro.

Eu poderia me estender aqui falando de cada sequência incrível e não somente das consideradas mais “impactantes” ou fortes, mas especialmente sobre as bem simples e cotidianas, como a do carro com o sobrinho, a das descobertas de fotos antigas, o passeio a pé a três pela areia da praia, a da festa na laje, são tantas… mas é preciso encerrar este texto incensando a interpretação de Sonia Braga, incrível e deliciosa em/como sua Clara, talvez o maior papel da carreira de quem já se destacou tanto no cinema e na TV. Em meio a um ótimo elenco, Sonia brilha e, como o filme, merece todos os prêmios e homenagens: sua interpretação tão bem dirigida fez com que o filme jamais possa ser considerado como sobre “especulação imobiliária”, mas um filme humano, sobre gente real, das que andam por aí, lutando “apesar de”.

No fundo, “Aquarius” trata de violências: as (consideradas) pequenas, muitas vezes imperceptíveis, a de não poder rir quando se quer, de não poder se morar onde se deseja, de não poder exercer sua sexualidade, de não aproveitar seus silêncios ou de não se expressar da maneira livre…

Quanto ao Oscar… o filme foi tão amplamente premiado pelo mundo que o Oscar virou um mero detalhe. Melhor que qualquer outro filme brasileiro de 2016, “Aquarius” é um sopro de luz na atual filmografia nacional de tantas bobagens histéricas, e um filme necessário, ainda mais em tempos tão sombrios. Recomendo imensamente.

Tommy Beresford

Fonte : ( Fonte : www.cinemagia.wordpress.com )

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