“O homem da Areia” é o conto mais representativo do maior autor fantástico do século XIX, o mais rico de sugestões e o mais forte em valor narrativo. A descoberta do inconsciente ocorre precisamente aqui, na literatura romântica fantástica, quase cem anos antes que lhe seja dada uma definição teórica.” Italo Calvino Clássico do romantismo alemão, publicado em 1816, a história segue a vida do jovem estudante Nathanael, que se vê atormentado desde criança pelo homem da areia – uma figura sinistra que rouba os olhos das crianças. Confrontado por suas memórias infantis e pela incerteza da própria percepção, Nathanael navega os limites entre razão e loucura, imaginação e realidade. A narrativa fantástica de E. T. A. Hoffmann inspirou artistas, teóricos e cientistas como Freud, Dumas, Poe e Tchaikovsky, que povoaram com as próprias criações a zona de estranhamento explorada pelo conto. Esta é uma edição especial em colaboração com o artista plástico carioca Eduardo Berliner. O artista produziu um conjunto de obras que, em estreito diálogo com o texto, traduzem o fantástico e o horror da obra de Hoffmann. A obra conta também com um posfácio do filósofo e crítico literário Márcio Suzuki, que discorre sobre o lugar da máquina e do humano no conto.
Editora Ubu Editora; Edição especial (27 abril 2023)
Idioma Português
DVD-ROM 112 páginas
ISBN-10 8571261016
O Homem de Areia de E.T.A. Hoffmann, um hipertexto em construção
Do folclore ao conto fantástico
O homem de areia é um personagem habitual do folclore europeu. É tradicionalmente caracterizado como um ser mágico que aparece à noite provocando o sono nas crianças. Seja no caso dos contos de Hans Christian Andersen, jogando areia em seus olhos, dando-lhes bons ou maus sonhos de acordo com seu comportamento. Ou, no seu lado mais sinistro, como o ogro que arranca os olhos das crianças no conto “O Homem de areia” de E.T.A. Hoffmann.
Uma característica do conto fantástico é a problematização da realidade daquilo que vemos: acreditar ou não acreditar nas aparições fantasmagóricas, perceber por trás da aparência cotidiana um outro mundo, encantado ou infernal?
Rodriguez (s/d) destaca as 3 premissas do fantástico segundo Todorov (1975):
(1)O texto “obriga o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma sobrenatural dos acontecimentos evocados” é atingida, como já se falou anteriormente, pela interrupção do narrador garantindo realidade às cartas, pela gradação, pela ambigüidade mantida pela perturbada narrativa de Nathanael, pela frieza e racionalismo de Clara servindo de contraponto às sensações e intuições de Nathanael.
(2) A segunda premissa preenchida: a hesitação do leitor neste texto também é sentida pelo personagem principal, como requer Todorov. Nathanael entende estar sofrendo de reminiscências e confusões mentais e mesmo assim se entrega às revoluções aparentemente fantásticas que sua mente, ou a realidade, produzem. A narração inicial, em primeira pessoa nas cartas, estimula a identificação do leitor ingênuo com o personagem.
(3) A gradativa intensificação da loucura de Nathanael garante a ambigüidade da interpretação de seus pensamentos, fazendo com que a própria situação limite entre o real/imaginário, loucura/sanidade torne-se o tema do texto, assegurando-se dessa forma a terceira premissa de Todorov.
O simbolismo
O clássico texto de E.T.A Hoffmann, O homem de Areia, convida-nos a explorar suas linhas em um fantástico ir-e-vir de significados, fatos e interpretações.
A partir de uma passagem do conto de Hoffmann, podemos fazer uma breve análise da função simbólica dos contos de fadas.
Ao ler o texto de Hoffmann, “O homem de areia”, nos tornamos cúmplices do imaginário de Natanael. Podemos comparar a fantasia de Natanael com a antiga história que permeia a fantasia infantil norte-americana de Sandman, ou o homem de areia, que seria aquele que visita os pesadelos infantis. Ao acreditar que o senhor Coppelius fosse o homem de areia Natanael já está “transportando” pela primeira vez na sua infância um personagem do mundo fantástico para a vida real.
O momento da personificação do da fantasia infantil do Homem de Areia em Coppelius corresponde a uma perda da distinção entre o que é tomado como realidade e a imaginação infantil.
A visita de Coppola faz com que Natanael reviva os conflitos infantis.
É possível, então, explicar as repetições compulsivas de várias vivências da infância de Natanael através do conceito de compulsão à repetição.
A inquietante estranheza
No ensaio sobre o estranho, Freud (1919h) interpreta este conto de Hoffmann a partir do sentimento de estranho (Unheimlich), termo que é melhor traduzido por inquietante estranheza. Este é um sentimento que desperta quando passamos a rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações familiares com um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida. O estranho provoca medo e horror. Mas, de forma alguma o estranho é algo desconhecido, e sim algo conhecido e familiar.
Natanael viveu sua vida atormentado pela idéia do homem da areia.
Por que o Homem de areia aparece como um perturbador do amor?Quando Natanael encontra o suposto “homem de areia”, surge uma relação entre a perda dos olhos e a perda do amor, representada em um primeiro momento na figura do pai.
A questão da castração
Para Freud, o temor em relação à perda dos olhos e o temor de perder o amor do pai são questões que poderão ser respondidas se substituirmos o Homem de areia pelo pai temido, de cujas mãos é esperada a castração.
No conto, a ameaça da perda visual aparece relacionada à morte do pai.
Nesse sentido, o simbolismo do conto remete ao tema da ameaça da castração.
Natanael vive entre o seu verdadeiro pai e o Homem de Areia.
Em Natanael, o ódio e o amor seriam opostos que convivem no temor à castração.
Alguns pontos chamam atenção na história de Nathanael, tais como: o “Pai Bom” (pai do menino) e o “Pai Mau” (Coppelius), que é castrador, e, na sua fantasia, matou o “Pai Bom”; o retorno a certas fases da história evolutiva do sentimento do ego, regressão à época em que o ego não se encontrava ainda claramente delimitado em relação ao mundo exterior e ao outro, visto através da trajetória de identificação do personagem, confundindo realidade com imaginação.
O real e o imaginário em “O homem de areia”
Uma mudança na concepção de doença surgiu a partir do desenvolvimento da teoria psicanalítica. A idéia do determinismo psíquico fornecia o entendimento de que toda a manifestação psíquica tinha alguma origem no próprio sujeito. A partir do estudo de fenômenos como os sonhos, os atos falhos e os chistes, Freud investigou a existência de uma área do psiquismo que não estava disponível para a consciência. Com a comprovação da existência do inconsciente, pôde-se atribuir a ele a causa de muitas dessas manifestações. Diversas doenças que não possuiam causa aparente, e, portanto, eram alvo de especulações moralistas, encontraram, no inconsciente, sua explicação.
A partir de uma experiência na infância, Natanael criou seu próprio universo, imaginário, mesmo que em determinados momentos ainda estivesse ligado ao universo real. Os fatos somados a seu viés interpretativo corroboraram suas percepções, fazendo com que cada vez mais se distanciasse do real, convivendo apenas com seu universo imaginário. Tudo poderia ter permanecido apenas como lembranças do imaginário infantil.
É interessante observar o quanto a mistura de fantasia e realidade, vivenciados intensamente na infância, marcaram Natanael, tanto que os deflagradores de seus “devaneios” e surtos se relacionavam com tais experiências.
Se, já na universidade, Natanael não tivesse recebido a imprevisível visita de Coppola, vendedor debarômetros e de binóculos (olhos). O aspecto mais evidente do conto O Homem de Areia, de E. T. A. Hoffman, é o quadro progressivo de desestruturação psíquica do seu protagonista, Nathanael. Freud (1924) em Neurose e Psicose define a psicose em linhas gerais como um conflito do ego com o mundo externo, refletindo um fracasso no funcionamento do ego por este entrar em conflito com uma de suas instâncias governantes. E de fato, no conto, vemos o jovem Nathanael distanciando-se cada vez mais da realidade, culminando na sua loucura e subseqüente suicídio. Em Natanael, pode-se perceber a cisão entre seu ego e o senso de realidade, provocando os delírios.
O autômato
No conto, o narrador relata que desde o aparecimento do autômato Olímpia, por quem Natanael se apaixona, nunca mais se pôde saber com certeza a diferença entre os autômatos e os seres humanos. Esta passagem pode ser interpretada como uma ironia através da qual Hoffmann, antecipando Freud e Nietzsche, já esboça a noção de que o homem não é senhor da sua própria morada.
Natanael é envolvido pela imagem que faz de Olímpia.
Para Lacan, porém, o amor objetal e o amor narcísico são uma e a mesma coisa. Quando se ama o objeto, esse não passa nunca de suporte de uma representação ideal de si. O amor é, assim, defesa contra a castração, na medida em que ele é precisamente o meio de se amar a si mesmo, evitando que a falta de objeto abale a certeza do “eu”.
Natanael se conhece a partir de uma imagem que lhe é exterior, ao devotar amor objetal à Olímpia, um autômato, ao mesmo tempo que devota a si um amor narcísico. Quando diz: “(…) só no amor de Olímpia posso reencontrar o meu ser”, parece falar exatamente dessa estreita comunicação entre o amor objetal (Olímpia) e o amor narcísico (meu ser) estabelecida por Lacan. Olímpia é o espaço vazio perfeito para Natanael projetar tudo o que esperava da noiva.
Por que será que Natanael se encanta por Olímpia, a qual a todos causa estranheza e desconfiança? Natanael se via em Olímpia, porque Olímpia era vazia de significação. Era vazia por dentro. Em última análise, Natanael é Olímpia. Ele pode se projetar completamente nela.
A pulsão escópica
Natanael não pôde suportar a carga simbólica da lenda do “Homem da Areia”, temendo ser punido pela sua curiosidade. O Processo pulsional (Freud, 1915) inclui a transformação de uma pulsão em seu oposto (Verkehrung ins Gegenteil), os exemplos são os pares (1) sadismo-masoquismo, (2) prazer de olhar-exibição (Schaulust-Exhibition), assim como (3) beschauen-beschaut werden (contemplar – ser contemplado). Esses pares também são exemplos para o processo pulsional de voltar-se contra si próprio (Die Wendung gegen die eigene Person), o masoquismo como um sadismo contra si próprio, e o exibicionismo como contemplar o próprio corpo.
Quinet (2002) mostra que o conceito de pulsão escópica (Schautrieb) permitiu à psicanálise restabelecer uma função de atividade para o olho, não mais como fonte de visão, mas como fonte de libido. A psicanálise descobre a libido de ver, o prazer de ver (Schaulust), e o objeto olhar como manifestação da vida sexual. O olhar não é um atributo do sujeito, que dele se serve como instrumento; ao contrário, é o sujeito que é afetado pelo olhar enquanto objeto. Na saída do Édipo, duas instâncias estarão ligadas ao escópico: o ideal do eu, ponto em que o sujeito se vê como amável, e o supereu, olhar que vigia e pune. Aqui se mostra que o olhar é objeto causa de angústia.
O ver é equívoco
Na percepção, o perceptum (o que é percebido) é equívoco. Esta equivocidade permanece, no entanto, menos manifesta na percepção visual, devido ao poder unificador da imagem que dá forma ao visual. Nós reencontramos a equivocidade do visto quando incluímos o sujeito no campo do fenômeno, uma vez que ele deve sempre se situar em um ponto de vista.
O Olhar é invisível
O que constitui a visibilidade, para aquele que vê, é o olhar. O olhar é um objeto invisível que está no fundamento da visibilidade: que faz, do sujeito que percebe, objeto percebido. O olhar não é um olhar do sujeito e sim um olhar que incide sobre o sujeito, é um olhar que o visa: olhar inapreensível, invisível, pulsional. O campo da psicose tem a característica, afirma Quinet (2002), de ser aquele no qual o objeto olhar pode ser visto, na medida em que, por não ser barrado pelo simbólico, faz parte do campo da realidade do sujeito.
Quando Coppola lhe oferece óculos, Natanael vê imagens de óculos sendo compulsivamente jogados em cima de sua mesa e olhando para ele. Compra-lhe um pequeno binóculo e tem a impressão de que nunca enxergara tão maravilhosamente bem. Vê, através de sua janela, Olímpia. Vê raios de luar saindo de seus olhos. Tem a sensação de que seus olhos nunca haviam sido estimulados. E acaba por apaixonar-se por Olímpia, “a primeira visão de seus olhos”.
O delírio como tentativa de cura
Freud (1924) nos diz que poderíamos perceber duas etapas na formação de uma psicose: a primeira arrastaria o ego para longe da realidade e a segunda tentaria reparar o dano e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade. Será que essa segunda etapa não corresponderia ao momento em que Natanael descobre-se apaixonado por Olimpia, tentando restabelecer com ela uma relação amorosa que anteriormente tivera com Clara?
Quando o mundo subjetivo se desestrutura, o sujeito o reconstrói com o trabalho de seus delírios. Assim, “a formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (Freud, 1911).
Tratamento, escrita e elaboração
O Destino é imperativo enquanto não for reescrito. O sujeito poderia escapar à repetição?
Referências:
Freud, S. (1987). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas de S. F. CD-ROM. Rio de Janeiro: Imago. Pulsões e destinos da pulsão (1915); “O Estranho” (1919h).
Quinet, A. (2002) Um olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Calvino, I. (2004) Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino. São Paulo: Companhia das Letras.
Rodríguez, J. V. O Homem de Areia, o estranho e as estruturas do fantástico. http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/h00001.htm
Todorov, T. (1975) Introdução à Literatura Fantástica. Símbolo, São Paulo.
( Fonte: https://www.ufrgs.br/psicopatologia/homemdeareia/ )