Fido Nesti, duplipensador
Érico Assis
A primeira vez que Fido Nesti leu 1984 foi em 1984. Ele tinha treze anos. Pegou emprestado do irmão, um ano e meio mais velho, que estava lendo para o colégio.
“Lembro de ficar impressionado, como se um alarme tivesse disparado dentro da minha cabeça”, ele conta por e-mail. “O Brasil ainda estava na ditadura militar, então foi inevitável a identificação com boa parte do texto”
Trinta e cinco anos depois, ele recebeu o convite do editor Emilio Fraia para fazer a adaptação de 1984 em quadrinhos. “Não pensei duas vezes para largar tudo o que estava fazendo”, diz Nesti, que já tinha outro projeto iniciado.
A partir daí, foram exatos vinte meses de trabalho, desde voltar a ler George Orwell, fazer anotações, pesquisar, roteirizar, esboçar, nanquim, cor, finalização etc.
O painel marcava o avanço em cada página. A linha rosa significa que o lápis/esboço estava pronto; a verde, o nanquim; a azul, o nanquim aguado. Com texto encaixado, a página ganhava o risco preto. Com cores, a bolinha vermelha.
O rosto de bigode que se repete é o do Grande Irmão. As outras fotos, esboços, rabiscos são referências e estudos.
Uma referência era proibida. “Lembro de ter gostado muito da versão cinematográfica de 1984, de Michael Radford, que assisti um pouco depois de ler a obra nos anos 80. John Hurt parece ter nascido para interpretar Winston Smith. Então achei importante me afastar, durante a etapa de pesquisa, de qualquer referência sobre o filme, para achar o meu próprio caminho.”
As inspirações para Winston e Julia foram o próprio quadrinista e a esposa, fotografados em dezenas de ângulos. “Os rostos não são necessariamente os nossos, mas tem muito de nós ali.”
Outra referência é a própria Inglaterra de Orwell, ou a Inglaterra que Nesti viu no ano que morou por lá, entre 2000 e 2001. Personagens secundários ganharam rostos que ele encontrava nas ruas de Londres. As lembranças do famoso céu cinzento, dos tons dos tijolos das casas vitorianas e da arquitetura brutalista também ajudaram a definir a palheta de cores do quadrinho.
E temos David Niven, que virou o sr. Charrington. “Porque volta e meia ele aparecia nas Sessões da Tarde da minha tevê nos anos 70.”
Usar imagens e as memórias da Inglaterra real não foram a única técnica para montar o visual do mundo opressor de 1984. Nesti adotou o grid de nove páginas, o que os quadrinistas consideram uma espécie de ponto morto da quadriculação – como os quadros ficam proporcionais à página e todos do mesmo tamanho, passam uma sensação de monotonia, de tudo sempre a mesma coisa. Tal como é a vida de Winston Smith.
E temos o texto. Grandes blocos de texto, recortados direto do 1984 em prosa (na tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn) e colados ali com todos os trejeitos da Novafala. A impressão que se tem é de que a prosa de Orwell está integralmente no quadrinho – mas não está. Apesar de Nesti ter mantido a estrutura dos 24 capítulos do romance, muitos trechos foram traduzidos em imagem. Trezentas e noventa e duas páginas – na última edição Penguin Companhia – viraram 224 em HQ. A massa de texto está lá para contribuir com a atmosfera opressora. Tal como é na vida de Winston Smith.
Também é um pouco do que foi a vida de Fido Nesti nos vinte meses. “Acordava sempre na mesma hora, engolia um café, me fechava no estúdio, pegava uma lapiseira ou pincel, enfiava a cara na tela do computador. Os rascunhos, scripts, letterings, páginas desenhadas, iam todos crescendo à minha volta, em pilhas cada vez mais impressionantes. Moro próximo a um hospital e do lado de fora as sirenes das ambulâncias eram cada vez mais constantes, com a pandemia. Para completar, bolas de demolição levantavam nuvens enormes de poeira, anunciando dezenas de lançamentos gentrificadores. Penso que está na hora de fugir para as montanhas, procurar um pedaço de Terra Dourada.”
Mas claro que há os momentos na Terra Dourada. A vida de Winston Smith não é sempre a mesma e, portanto, nem o quadrinho é. São as cenas em que o grid se quebra, o texto se afina e o mundo ganha um pouquinho mais de cor. Se você nunca leu o livro, um spoiler: não tem muitas cenas assim.
Ficar com a cabeça em 1984 nos últimos vintes meses, especificamente nos últimos vinte meses do Brasil e do mundo, merecia um adicional de insalubridade. “À toda hora eu me via em 1984. Volta e meia me flagrava cometendo um ‘pensamento-crime’ envolvendo a política, seguido de um ‘rosto-crime’ em frente à câmera de vigilância do elevador, segurando uma pequena ‘teletela’ na palma da mão, na forma de celular – também sempre atenta aos meus movimentos.”
Entre livro, governo brasileiro e pandemia, Nesti se meteu em várias camadas de distopia. “Eu achava que nem mesmo Orwell tinha me preparado para, depois de tantos anos, começar a ver o mundo querendo engatar essa marcha à ré. Fake news, gabinetes do ódio, pessoas que não acreditam na ciência, não acreditam em vacinas, acham que a Terra é plana.”
Mas ele se enganou: o livro ajudou sim. De um jeito meio torto. “Eu quero acreditar que na verdade elas pensam diferente e estão apenas praticando o duplipensamento.”
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho e Minha coisa favorita é monstro.
Fonte: www.companhiadasletras.com.br)